Índice de Capítulo

    Percorri uma viela estreita até chegar em uma rua, sob o reflexo das chamas, onde as sombras se contorciam. O ar pesava como algodão encharcado de fuligem, e cada respiração exigia um esforço. Labaredas ondulavam nos telhados, que mastigavam madeira e concreto com estalidos semelhantes a risadas. A luz alaranjada distorcia tudo: os postes pareciam gigantes retorcidos e as vidraças derretidas choravam lágrimas de silício.  

    Foi o frio que me fez parar. Um arrepio cortou o suor nas minhas costas, mais afiado que uma navalha. E então vi.  

    Ele estava deitado entre escombros carbonizados, com o braço estendido como se ainda tentasse rastejar. Lewis. Aquele nome ecoou na minha cabeça antes mesmo de eu reconhecer o rosto. O seu queixo estava caído, os olhos abertos, mas sem brilho, fixos em algo para além do inferno que os rodeava.  

    — Não… não é possível.  

    A minha perna esquerda vacilou, o joelho bateu no chão antes que eu desse por isso. A fumaça queimava os pulmões, mas o que me sufocava era outra coisa. Apertei as mãos até as unhas marcarem as palmas. 

    Era uma ilusão. Tinha de ser. 

    Lewis nunca falhava. Lewis era a piada pronta, o soco no ombro depois de tudo o que se passou. Não… isso.  

    Comecei a aproximar-me a arrastar os pés, como se o chão fosse areia movediça. O seu uniforme estava colado ao peito por algo escuro e viscoso. Não era sangue – o sangue seco ainda brilhava sob a luz do fogo. Uma ferida aberta, irregular, como se algo tivesse crescido de dentro para fora.  

    — Que porra você aprontou? — Minha voz saiu quebrada, misturando-se ao estalo das madeiras queimando.  

    Nada respondeu, só o vento assobiando através de um buraco onde deveria estar o coração dele. Olhei em volta, desesperado por lógica: uma armadura de loja de antiguidades derretida, placas de rua torcidas, até um carrinho de sorvete virado. Nada explicava ele ali.  

    Apertei os olhos, esperando que a imagem se desfizesse. Quando abri, ainda estava lá. E pior: uma mosca pousou em seu lábio, caminhando sem pressa.  

    — Levanta. — Sussurrei, mais pra mim mesmo. — Levanta, seu desgraçado. Isso não é engraçado.  

    Meu pulso tremeu ao tocar seu ombro. Frio. Rigidez. Não. Não, não, não. A náusea subiu como uma maré, e cuspi no chão, o suco gástrico queimando a garganta.  

    — Você sempre foi péssimo para despedidas.

    A voz brotou nas minhas têmporas, melíflua e venenosa. Mephisto. Não precisava vir à tona — ele estava lá, um sussurro grudento nas minhas fissuras mais profundas.  

    — Cala a boca.  

    — Por que o choro? Sabia que ele morreria. Todos morrem. Até você, eventualmente.

    Um espasmo percorreu minha mandíbula. Ergui-me tão rápido que quase tropecei no próprio cadáver.  

    — Tira ele disso. — ordenei. — Você pode, não pode? Faz parte do seu… teatro do caralho.  

    Risadas. Sempre risadas.  

    — Teatro exige plateia. E ele… já deixou o espetáculo.

    O punho cerrado atingiu minha própria coxa, uma tentativa patética de extrair dor real, não essa coceira mental.  

    — Não me enche! Tira ele disso, ou eu juro que…  

    — O quê? Vai me expulsar? Você nem pode fazer isso. 

    — Dessa vez é diferente.  

    — Tudo é diferente até ser igual. 

    O cheiro de carne queimada encheu minhas narinas de repente. Não a dele – algo mais próximo. Olhei para baixo: minha manga fumegava, uma brasa perdida grudada no tecido. Sacudi o braço como um animal encurralado, as chamas se apagando, mas a pele já avermelhada.  

    — Cuidado. Vai precisar dessa mão.  

    — Para de jogar! — gritei, ignorando o ardor. — Você quer alguma coisa. Sempre quer. Então negocia.  

    O silêncio durou três batidas cardíacas.  

    — Quer um milagre? Tudo bem. Traga-me o outro. 

    — Que outro?  

    — Você sabe.  

    — Eu não sei, porra! Não faço a mínima ideia do que você quer!

    — Então divirta-se com o luto.

    Algo estalou dentro de mim, uma corda de violino arrebentada. Agarrei Lewis pela gola, sacudindo-o como se pudesse acordá-lo da pior ressaca da história.  

    — Levanta! Caralho, levanta! Você não… você não pode…

    A voz quebrou antes que o resto da frase escapasse. Os músculos se recusaram a soltar o tecido, como se segurá-lo firme fosse o bastante para impedir que tudo desmoronasse. Mas desmoronava mesmo assim. O peso morto caiu com um baque surdo, e a mosca, impassível, pousou em sua pálpebra aberta.

    — Bonita cena. Quase poética. Devia pintar um quadro.

    — Cala. A. Boca.

    — Vai chorar? Vai gritar? Vai…

    O rugido que saiu da garganta não tinha nada de humano. Não foi um som planejado, nem desejado. Apenas explodiu, feroz e bruto. Até as chamas pareceram hesitar por um segundo. As costas bateram contra a parede mais próxima, e os punhos encontraram tijolos velhos e ásperos, golpeando com força até que os nós dos dedos rachassem e o vermelho quente manchasse a superfície áspera.

    — Isso. Assim é mais honesto.

    Meu corpo deslizou até o chão. Os pulmões puxavam o ar quente e carregado de fuligem, mas nada disso importava. Do outro lado, o cadáver imóvel não se importava. A mosca explorava a ferida com a indiferença de um rei sobre seu trono de podridão.

    — Por favor…

    A risada cortou o ambiente, como unhas arranhando metal enferrujado.

    — Olha só. Agora vem implorar. Um momento bonito, de fato.

    Os olhos se fecharam com força. Não tinha espaço para orgulho ferido ou para provocações velhas. 

    Só restava uma opção.

    — Tá, tá, foi mal. Mas… agora eu realmente preciso da sua ajuda. Eu posso fazer qualquer coisa. Aceito qualquer condição que tiver em mente. E aí? Pode ser?

    O silêncio se estendeu, longo e cruel. O ar ficou mais pesado. E então, do vazio, um som começou a ecoar. Algo que nunca deveria ter existência física, mas ali estava: uma voz que não era apenas ouvida, mas sentida, reverberando dentro do crânio, como um pensamento implantado à força.

    — Você tem coragem de implorar por um milagre?

    A figura surgiu como algo que nunca esteve lá, mas que sempre existiu. Uma presença impossível de ser ignorada. Alta, longilínea, quase humana, mas não o suficiente. Olhos brancos e fixos, vazios como o espaço entre as estrelas.

    — É isso que quer? Pois bem, considerando as circunstâncias, vou conceder uma extensão compassiva da minha influência. Mas sob algumas… condições.

    Meu coração acelerou de forma irracional, mas a esperança era uma doença difícil de matar.

    — Tá… Quais condições?

    A coisa inclinou a cabeça, quase em curiosidade. Um sorriso sutil, feito de nada além de intenção.

    — A primeira delas… arranque o coração dele.

    O tempo congelou. Um calafrio rastejou pela coluna, espalhando paralisia até os dedos.

    Meus olhos foram até o corpo no chão. Depois voltaram para aquilo diante de mim, tentando compreender se tinham ouvido direito.

    — E-espera… o quê? Arrancar o coração dele? Como isso ajuda?

    — Questione menos. Obedeça mais. Quer ajuda? Então essa é minha primeira condição. Traga o coração até mim, e eu… reconsidero.

    O chão parecia ter se tornado líquido. A garganta, um poço seco de areia e ferro.

    O ser se inclinou um pouco mais, o suficiente para seu rosto se deformar na luz incerta.

    — Isso é loucura…

    A risada que veio em resposta trouxe consigo a mesma sensação de um osso sendo quebrado.

    — Loucura?

    O braço esquelético ergueu-se e apontou para Lewis.

    — A loucura está bem ali. Um cadáver onde deveria haver um futuro. E mesmo assim, é em mim que você joga as pedras? Vamos lá, garoto. Admita. Eu sou a solução que você não tem coragem de aceitar.

    O peito queimava em ódio. Não contra a coisa. Não contra o que dizia. Mas contra o fato de que…

    — Que tipo de ajuda é essa? Que porra de milagre precisa que eu… que eu faça isso com ele?

    O olhar do Mephisto não mudou.

    — Você quer um milagre, mas não quer se sujar? Você quer a vida dele, mas não quer pagar o preço? Sabe, sua inocência me diverte. Achou mesmo que a vida fosse generosa?

    Os seus olhos brancos faiscaram outra vez e ele recuou um passo, com os braços abertos num gesto amplo, consoante o inevitável.

    — Dou o que posso, sob as condições que me agradam. Se isso é demais para você, então talvez seja mais fraco do que pensei.

    O ódio cresceu como uma labareda, fervilhando na garganta e contraindo os músculos. Todas as células do meu corpo exigiam um grito, uma ordem para que ele desaparecesse e levasse consigo toda aquela perversidade. No entanto, havia outra parte, menor, sufocada sob o peso da decisão, que sabia que estava encurralado.

    — Por favor… Não tem outro jeito? Ele é meu amigo… só estou pedindo que você o cure. Isso é pedir muito?

    O Mephisto jogou a cabeça para trás, rindo como se minha súplica fosse a coisa mais absurda que já ouvira. Seus ombros sacudiram com a risada, mas os olhos permaneceram fixos em mim.

    — Milagres, milagres… Sempre tão baratos, não é? — disse, e então deu mais um passo à frente, até que eu pude ver as sombras dançando ao redor de seu rosto, como uma máscara mutante de ossos. — O coração dele…

    Ele levantou uma das mãos, esticando o dedo fino e comprido em direção ao peito de Lewis.

    — Arranque-o, e eu talvez considere. É esse o preço. Vamos lá, moleque. Mostre que você realmente quer salvar seu amigo.

    Engoli em seco, tentando processar o que ele estava pedindo. Olhei para o corpo de Lewis, em busca de descobrir se eu tinha forças para isso.

    O Mephisto percebeu minha hesitação e aproximou-se mais uma vez, colocando uma mão no meu ombro. O toque era gelado, mas a pressão era firme, como se quisesse me esmagar.

    — Vai mesmo fraquejar? O que há de tão difícil em aceitar uma verdade tão simples? O coração dele pelo milagre que você implora. Uma troca justa, não acha?

    Suas palavras foram cortantes, e pude sentir o aperto da proposta em torno de mim. Ele me olhou da cabeça aos pés, de modo que dissecou cada resposta, cada nuance de minha expressão.

    — Então, qual é a resposta? — Afastou-se apenas o suficiente para erguer uma sobrancelha zombeteira. — Se vai continuar suplicando pela vida dele, que seja com o coração nas mãos.

    Minhas palavras estavam presas na garganta, e minha boca estava seca, como se eu não pudesse falar.

    Embora ele não parecesse ter pressa, eu não conseguia me mover. Apenas ficou ali, me olhando com uma expectativa provocante.

    Comecei a sentir minhas mãos tremendo e o mundo perder o equilíbrio ao meu redor. Passou diante dos meus olhos a imagem de Lewis, estendido ali, o rosto apagado, mas ainda familiar. Arrancar o coração dele significaria matá-lo completamente, destruir qualquer traço de vida que pudesse restar.

    Eu mal conseguia pensar direito. As palavras dele ressoavam na minha cabeça, como o som de uma tempestade abafada, arranhando cada centímetro da minha razão.

    Parte de mim queria ceder, virar as costas e sair dali, aceitar que a morte de Lewis era um fato consumado, que não havia nada a ser feito. Mas outra parte — aquela que me trouxera até aqui, que ainda gritava em cada batida do meu coração — recusava-se a aceitar a derrota, negava-se a aceitar que não havia outra saída.

    — Claro que não, porra! Por que eu faria isso?!

    Ele deu de ombros.

    — Você realmente precisa perguntar isso de novo? Deixe-me explicar uma coisa. Neste mundo onde sobrevivem apenas os fortes, onde as regras foram criadas para serem distorcidas pelos poucos que compreendem a verdadeira natureza do poder… o que realmente importa é a vitória.

    Enquanto falava, movia as mãos em gestos lentos. Ele passou um dedo pelo lábio inferior, contemplativo, como se ponderasse se eu seria capaz de entender as implicações do que ele estava prestes a dizer.

    — Neste jogo… neste jogo da vida, sacrifícios são o preço a se pagar para atingir aquilo que desejamos. Para alguém como eu, como nós, sacrifícios… são mais do que um simples ato de crueldade. São um combustível, uma força poderosa que pode mover montanhas, ou, no nosso caso, trazer aqueles que você pensa que perdeu, bem de volta aos seus pés.

    Eu mal podia acreditar no que ele estava dizendo. Meu corpo tremia e meu coração pulsava tão forte que eu quase podia ouvir as batidas nos meus ouvidos. Mas, de alguma forma, ele sabia. Ele sempre soube exatamente como manipular meus piores medos e desejos.

    — Aqueles que se opõem a nós, eles são os alicerces. São eles que nos dão… poder. Quanto mais íntimo, quanto mais importante, quanto mais puro… mais intensa é a força que emana do sacrifício. É assim que funciona. É assim que eu funciono.

    Aquela coisa parou e sorriu, como se estivesse satisfeito com a explicação. Como se sua lógica fosse inquestionável, clara como água.

    — Você acha que eu te acompanho por escolha? Que estou aqui porque quero? — Riu-se, aquele som oco e perverso. — Não, moleque, nós somos duas partes de um mesmo ser. Eu sou uma extensão de você, como você é uma extensão de mim. A minha alma está entrelaçada à sua, presa… como dois espinhos numa mesma ferida que nunca cicatriza. E assim sempre será, até o fim dos tempos.

    A voz dele tornava-se mais baixa, e eu sentia cada palavra penetrando minha mente, rasgando o que restava de minha resistência.

    — Estamos presos. — Inclinou-se mais perto, até que seu rosto estava a centímetros do meu, os olhos dele fixos nos meus, frios, mas repletos de uma fome impiedosa. — Para sempre.

    Ele sorriu outra vez, e aquele sorriso frio, que nunca chegava aos olhos, fazia o ar ao redor ficar ainda mais pesado.

    — E então… o que será? Quantas pedras você está disposto a mover? Quantos sacrifícios está disposto a fazer… para que Lewis e tudo o que você deseja possa finalmente estar ao seu alcance?

    Cada pensamento foi amplificado, ganhando um peso desproporcional, e a incerteza se transformou em uma densa névoa que obscureceu a clareza do momento.

    — Deixe de lado essas noções frágeis de humanidade e moralidade. Todos estão flutuando em uma rede que se divide entre o que você chama de certo e errado.

    Meus músculos ficaram tensos, minhas mãos se inquietaram ao mesmo tempo em que a respiração era uma dança desorganizada entre inalações rápidas e exalações bruscas.

    — Todos não passam de fragmentos de matéria, tão frágeis quanto o vidro mais resistente. Agora, obedeça às minhas ordens. Caso contrário, você estará carregando um fardo ainda mais pesado em seus ombros. 

    Encarei Lewis com o olhar ainda transtornado.

    — Muito mais pesado do que este morto.

    — E-eu… — Tentei falar, mas nada saía. Parte de mim sentia repulsa, mas havia algo ali, uma ponta de… curiosidade. De desejo.

    Ele percebeu. Aquele monstro percebeu.

    — Você sente, não sente?

    Um toque frio acomodou-se no meu ombro e deslizou lentamente até ao cotovelo, com dedos longos e rígidos que mais pareciam lâminas do que carne. A sensação queimava, mas de um modo perverso, como se não fosse apenas físico, como se estivesse dentro de mim corrompendo algo. 

    — Esse desejo dentro de você… Eu não o criei. Ele sempre esteve aí, enterrado, esperando para ser despertado. Tudo o que faço… é refiná-lo.

    Ao afastar-se, levou consigo o gelo que deixava um formigamento residual na carne. As feições da criatura, tão maleáveis quanto uma obra inacabada, assumiram um ar avaliativo. Era como se estudasse cada centímetro do que restava de mim, ponderando se ainda valia a pena.

    — A ironia dos humanos me diverte. Passam a vida fugindo do que realmente os move. Se escondem atrás de desculpas, fingem que o poder é algo distante, um presente dos céus ou uma maldição imposta. Mas o verdadeiro poder, quanto mais você dá de si, mais se torna parte dele. Quanto mais se entrega, mais longe consegue ir.

    Minha cabeça estava à beira do caos, mas não era apenas a ameaça dele que pairava sobre mim. Era o que eu havia feito, o que eu sabia que nunca seria capaz de desfazer.

    O massacre.

    As lembranças daquele dia voltaram com uma nitidez que eu odiava. O cheiro de sangue, o som dos gritos, os passos que dei pelos corredores da escola com uma estranha calma que até hoje me fazem questionar quem eu realmente era.

    — Você escolheu aquilo. Acreditou que o poder viria sem custo? Que bastaria carregar sua dorzinha patética e o mundo, por algum milagre, finalmente te respeitaria?

    Minha boca abriu, mas nenhuma resposta veio. Só o gosto da culpa.

    — Eu… queria proteger ela. — A frase saiu arrastada, fraca. — Foi mais fácil assim.

    — E desde quando o que é fácil tem valor? Você ainda acredita que suas ações tiveram um significado profundo? Que o que fez foi além de um capricho mesquinho? Você matou porque queria apenas o desejo de ver o mundo sangrar como você.

    Cerrei os olhos, tentei afastar a cena, mas era tarde demais. O sangue não se dissolvia. O olhar aterrorizado dos outros permanecia gravado na mente. A sensação mórbida de controle, de ser a força dominante naquele instante… aquilo ainda estava em mim.

    — Não se torture. Apenas aceite. — O Mephisto soava quase indulgente, como um mentor orientando um aprendiz relutante. — Eu apenas ofereci uma saída. A raiva já estava lá. Você queria que eles sentissem um pouco dela, queria que pagassem pelo que fizeram.

    Queria?

    Minha própria voz se perdeu em pensamentos que se cruzavam e colidiam sem trégua. Qualquer justificativa parecia pequena diante do que havia acontecido. E ainda assim, a ideia de que talvez ele estivesse certo…

    O riso baixo da criatura interrompeu qualquer linha de raciocínio.

    — Você é patético, Krynt. Se agarra à culpa como se isso te redimisse. Como se houvesse um outro caminho. Mas sabe que não há. Sabe que no final, inevitavelmente, você sempre volta para mim.

    — Não! Nunca! — O grito saiu antes que pudesse contê-lo.

    — Claro que sim. — Seu sorriso se alargou em um ângulo impossível. — Continue negando. Se agarre à sua ilusão, se isso te conforta. Mas um dia, quando não houver mais desculpas para se esconder, entenderá o que eu já sei.

    Ele se endireitou antes de deixar um último vislumbre daqueles olhos opacos e desumanos perfurar minha alma.

    — O necessário pode parecer errado. Mas, no fim, é a única saída. Você aprenderá isso da maneira mais dolorosa… a menos que mude de ideia.

    Um desejo absurdo de desaparecer, de me dissolver na promessa de esquecimento que ele insinuava, tomou conta de mim.

    Aquele olhar me atravessava como se eu fosse nada além de um fragmento insignificante da realidade, uma aberração passageira. Meu sofrimento não o incomodava. Pelo contrário, carregava uma espécie de fascínio mórbido, como se minhas angústias fossem uma peça teatral encenada exclusivamente para seu deleite.

    A forma distorcida começou a perder nitidez. O breu se espalhou como fumaça sufocante, infiltrando-se em cada canto do espaço vazio. Antes de sumir por completo, os olhos brilharam com um prazer impiedoso, como se soubessem que aquilo estava longe de acabar.

    A voz reverberou, gélida, sem pressa.

    — Não espere nada de mim.

    E então, o vazio.

    Os pulmões protestaram contra o ar pesado que entrava em golfadas. As pernas cederam antes mesmo de perceber que estava me movendo. Caí de joelhos ao lado do corpo inerte de Lewis.

    As palavras do Mephisto ainda se enroscavam na minha mente, afiadas como lâminas. Para o salvar, havia um preço a pagar. Mas o que exatamente teria de pagar? Qualquer resposta seria uma aposta feita no escuro, uma roleta onde as fichas eram feitas de sangue e alma.

    O meu coração batia rápido demais, descompassado, uma dor pulsante na têmpora que sufocava qualquer outra sensação.

    O que era certo? O que era errado? As fronteiras entre o certo e o errado já não existiam. Tudo o que restava era um precipício de onde cada escolha levava a uma queda sem fim.

    Fechei os dedos involuntariamente.

    — Ei… você… vai me ajudar, não vai?

    Claro que não. A resposta eloquente a indivíduos que não merecem seu tempo ou atenção era o silêncio. 

    — Mas que merda!

    A raiva, quente e ácida, subia pela minha garganta enquanto eu golpeava o chão. Sentia a pele dos meus punhos abrir, a carne rasgar como papel molhado.

    O sangue quente começava a escorrer, sujando minhas mãos, deslizando por meus braços e gotejando no chão. Era um vermelho denso e viscoso, quase vivo.

    Continuei, como se cada golpe fosse uma tentativa inútil de esmagar aquela dor que me consumia por dentro e de sangrar todo o ódio que aflorava.

    Minha respiração saía entrecortada, pesada. O suor se misturava ao sangue, as gotas escorrendo pela minha testa e queimando meus olhos.

    Minha mente, no entanto, estava cega para a dor física; tudo o que eu via era a lembrança daquele sorriso cruel, o rosto debochado dele flutuando na minha frente, zombando de cada uma das minhas fraquezas.

    — Seu desgraçado, seu pedaço de merda!

    Meus punhos cerraram-se novamente, e eu desejei que ele estivesse ali na minha frente, para que eu pudesse esmagar aquela expressão nojenta que me encarava com um misto de desprezo e prazer.

    — Vou fazer você desaparecer! Vou te arrancar desse lugar nem que seja na porra da força!

    Eu sabia que o Mephisto se alimentava desse meu desespero, desse ódio fervendo, dessas explosões que só faziam me consumir cada vez mais. E, ironicamente, ele estava certo. Cada vez que eu me rendia a essa raiva, ele ganhava mais força, penetrava mais fundo, se enraizava em cada parte da minha alma, fazendo de mim um reflexo ainda mais sombrio do que eu temia.

    — Eu te odeio! — cuspi, a voz áspera e rouca de tanto gritar.

    Meus estavam lábios secos e rachados de tanto manter o rosto crispado numa máscara de pura fúria. Odiava o que ele era. Mas, no fundo, odiava mais o que ele havia feito comigo.

    Meus olhos, dilatados e selvagens, miravam o vazio à minha frente, e a visão borrada do sangue me fez sentir como se estivesse olhando para o próprio inferno.

    Senti cada músculo do meu corpo tenso, pulsando. Queria estraçalhá-lo, apagar aquele sorriso zombeteiro, fazer cada palavra nojenta dele morrer no eco do meu grito.

    — Eu te odeio com cada pedaço de mim, com cada maldita célula!

    O Mephisto estava certo de que tinha me quebrado, de que minha raiva era apenas mais uma fagulha para alimentá-lo, de que no final, eu só estava afundando ainda mais. E talvez estivesse.

    A mancha em meu braço se expandiu como uma praga viva, vagarosamente consumindo a pele e inflamando a carne com uma dor quente e latejante. Observar aquilo me encheu de nojo e desespero, mas eu sabia que não tinha mais tempo para me lamentar.

    Em um impulso frenético, agarrei a coleira em meu pescoço. Minhas mãos tremiam enquanto eu puxava com força brutal, sentindo as veias incharem sob minha pele, e meus dedos queimavam, presos na borda afiada daquele maldito pedaço de metal.

    Quanto mais eu lutava, mais o aço cortava. Cada puxão fazia com que a coleira penetrasse em minha carne, perfurando-a, e a dor se transformou em uma onda sufocante que me fez soltar um gemido baixo e frustrado.

    — O nosso papel é separar o mal das pessoas para que essa espécie desapareça. Você, como um novo funcionário, tem esse dever agora. Você acha que consegue?

    E essas palavras me lembraram de meus deveres na U. E. C.

    Meu desejo de vingança era como uma pequena pedra jogada em uma piscina profunda de emoções conflitantes, intensificou o ódio e a raiva. Minhas esperanças e ideias foram obscurecidas por misérias, o que me fez sentir muito mais perto de enlouquecer. 

    Naquele momento, lutei com a ideia se deveria combater o mal que estava ao meu redor e resistir ao ódio. Eu tinha uma paixão ardente pela justiça que permeava cada pensamento, respiração e batimento cardíaco, e sabia que tinha de encontrar um método para direcionar esta força destrutiva para algo que pudesse realmente fazer a diferença. 

    Se não, o mesmo ódio poderia ser minha ruína e consumir todos. Com este esmagador obstáculo à frente, revisei os meus critérios, e apesar da diferença de altura e peso, forcei-me para erguer o corpo do Lewis. 

    Embora as fibras dormente dos meus músculos gritassem, a força que me restava dentro de mim tornou-se uma força crítica. Com o conhecimento de que era um pequeno preço a pagar pela oportunidade de salvá-lo, ignorei um gemido agonizante que escapou dos meus lábios.

    — Espero que Raven esteja no carro. Vou te levar até lá.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota