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    1h antes, na Sala de Reuniões.

    A sala estava gelada, não por causa da temperatura, e sim pelo silêncio tenso por onde passava. Era como se até as paredes soubessem de algo importante. 

    Arthur estava de pé ao lado da mesa central, olhando para os documentos espalhados à sua frente. Ele não precisava dizer nada para que a sala parecesse menor e mais opressiva.

    — Você sabe por que escolhemos você para isso, Krynt? 

    Eu sabia. E odiava saber.

    — Benjamin Moore. — Ele disse o nome lentamente, como se o testasse. — Uma criança que matou a própria família.

    Meu estômago revirou, mas não respondi.

    — Ele está vivo. Você entende o que isso significa?

    Assenti levemente.

    — Possessão…? — respondi, mantendo o tom baixo, como se a própria ideia pudesse provocar algo.

    — Isso. Possessão parcial para ser mais exato. — Ele deu um passo em direção à mesa, pegando um arquivo e o colocando diante de mim. — Menos de 3% dos casos de possessão parcial documentados envolvem hospedeiros sobrevivendo ao contato direto com um Mephisto. E o mais perturbador é que está acontecendo de novo.

    — De novo?

    — Desde 1972, os registros mostram que casos de possessões de Mephistos em larga escala têm um padrão. Em 1982, foi a San Jose. Dez anos depois, em 1992, Dallas. Depois, Frankenmuth, em 2002. San Diego, 2012. E agora, Hill City, em 2022.

    — Sempre a cada década. 

    — E não estamos falando de incidentes isolados. Em todas essas ocasiões, o padrão foi o mesmo. Destruição quase total, uma população massacrada e, ocasionalmente, um ou dois sobreviventes que nunca deveriam estar vivos.

    O nó na garganta ficou ainda mais apertado.

    — Mas por quê? 

    — Essa é a grande questão. — Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como se organizasse os pensamentos. — Não sabemos se é um ciclo natural dos Mephistos ou algo mais. Pode ser que eles esperem esse tempo para reunir energia suficiente, ou talvez o padrão esteja ligado a algum fator que ainda não identificamos. O que sabemos é que, a cada década, eles retornam mais fortes, mais crueis.

    Ele parou, apontando para um dos relatórios na mesa.

    — Em 1992, San Jose, teve 80% da população eliminada em menos de uma semana. Em 2002, Frankenmuth foi completamente erradicada. E agora, Hill City. Destruição quase total, mas com uma diferença.

    Ele virou o olhar para mim, e o peso em sua voz aumentou.

    — Possessões parciais são raríssimas. Menos de 3% dos casos registrados. — Ele gesticulou novamente para os papeis. — Na maioria das vezes, o Mephisto consome completamente o hospedeiro. Não deixa nada para trás. Mas em alguns casos, algo dá errado. Pode ser que ocorra uma interrupção no processo, possivelmente um vínculo emocional, um evento traumático ou um fator desconhecido. E o resultado… é alguém como Benjamin.

    Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras se assentar.

    — Ou como você, afinal, vocês são as anomalias no padrão. Vocês sobreviveram e fizeram coisas que nunca poderão apagar. Mas há uma diferença crucial. — Ele apontou um dedo na minha direção. — Você conseguiu se controlar. Ele pode não ter essa chance.

    Tentei segurar o olhar dele, mas era como encarar um abismo.

    — E se ele ainda estiver… 

    — Se o Mephisto ainda estiver nele, não podemos hesitar.

    Olhei para os papéis na mesa, mas tudo o que via eram os fantasmas das cidades mencionadas, os ecos de gritos e destruição.

    — Benjamin matou a própria família. Você matou seus colegas. Vocês dois estavam sob influência, mas isso não muda o fato de que foram as suas mãos que fizeram o trabalho.

    Fechei os punhos, sentindo a tensão se acumulando nos ombros. Ele não estava errado, mas ouvir isso em voz alta era insuportável.

    Arthur percebeu minha reação, mas não suavizou o tom.

    — Ele vai ver em você algo que nenhum de nós pode oferecer, que é compreensão. Isso pode ser o que o faz falar.

    Pisquei lentamente, tentando absorver tudo.

    — Entendido.

    Arthur me observou por um longo momento antes de se virar.

    — Você começa daqui há 1h. Não o trate como um monstro. Mas também não esqueça que ele pode ser um. Ah, e duas coisas. 

    Ele levantou um dedo.

    — Não demonstre medo. Se o Mephisto ainda estiver nele, vai sentir isso. 

    Depois, levantou outro.

    — Lembre-se também. Dez anos. Sempre o mesmo ciclo. Desta vez não podemos errar.


    As palavras daquele homem ainda ecoavam em minha mente, como um sino distante que não queria silenciar. 

    Para ele, falar era natural, como se nunca tivesse conhecido o medo. Eu, por outro lado, sentia o estômago revirar, como se estivesse em queda livre. 

    Os ponteiros do relógio avançam mais rápido que o usual. Já havia passado uma hora? Porque parecia que ainda eram apenas minutos. Desde o aviso dele até agora, o tempo se esvaiu em um emaranhado de pensamentos atropelados e preparações às pressas. 

    O som metálico das portas do elevador fechando me trouxe de volta à realidade. O murmúrio do motor, aliado ao ritmo constante das engrenagens, compunha uma melodia para a ansiedade que subia pela minha espinha. 

    A luz tênue na cabine refletia nas paredes de aço, dando ao ambiente uma aura fria e impessoal. Eu me sentia numa cápsula de transporte, dirigindo-me ao inevitável e adentrando cada vez mais o desconhecido. 

    Mikael estava ao meu lado, recostado, exibindo uma tranquilidade aparente. No entanto, o brilho vermelho intenso em seus olhos denunciava sua vigilância. Ele sempre era assim, sua serenidade contrastando com o tumulto interno que eu experimentava.

    — Parece que alguém tá com o rabo entre as pernas. — disse ele, com tom provocativo. — Relaxa, não vai ser tão ruim assim.

    — Tá falando isso porque não é você quem vai encarar o moleque.

    Mikael deu um sorriso de canto, cruzando os braços enquanto inclinava a cabeça levemente.

    — Moleque, Krynt? — Ele arqueou a sobrancelha. — Se sobrou alguma humanidade ali, tá bem escondida.

    — E você acha que me ajuda falando isso? — perguntei, lançando-lhe um olhar rápido.

    — Não tô aqui pra segurar sua mão. Só tô lembrando que você tá indo lá porque ninguém mais quer.

    O elevador deu uma leve sacudida, descendo mais um andar. O painel de controle indicava que estávamos perto do subsolo.

    — Dez anos. Sempre o mesmo ciclo. — murmurei, repetindo as palavras de Arthur para mim mesmo.

    Mikael riu baixo, mas sem humor.

    — Dez anos. Sempre mais mortos, sempre mais destruição. E agora temos um garoto que pode ou não explodir na nossa cara. Parece até um maldito roteiro de filme ruim.

    Ele endireitou a postura, com os olhos fixos no painel que mostrava os números descendo.

    — Olha, Krynt, eu sei que você tá carregando seu próprio lixo emocional nisso tudo. Mas se tem uma coisa que você precisa lembrar é que essa criança não é você.

    — Como assim?

    — Você ainda tá aqui. Você sobreviveu, não virou uma ameaça. Talvez porque alguém viu algo em ti. Ou talvez porque teve sorte. Mas esse garoto… ele ainda não chegou nesse ponto.

    O elevador finalmente parou com um som abafado, as portas se abrindo lentamente. O ar ali embaixo era mais pesado, carregado de umidade e algo grudava no paladar.

    — Tenta não ferrar tudo.

    Mikael já havia desaparecido na curva do corredor, deixando para trás apenas o som distante dos passos ecoando pelo metal e um vago “se cuida” que mal deu para ouvir. 

    Os neons piscavam intermitentemente, projetando sombras nas paredes de aço escovado. Quando alcancei a porta da cela, vi que alguém já estava lá. Uma figura solitária, de postura casual, mas que emanava uma presença estranhamente magnética.

    — Ah, então você é o famoso Krynt! 

    A voz era leve e animada, com um toque de humor.

    Ela deu um passo à frente, saindo da penumbra.

    Ele vestia um casaco branco, imaculado, exceto pelas manchas de tinta nas bordas das mangas. Seu cabelo loiro estava preso em um coque frouxo, permitindo que as mechas emoldurassem suavemente seu rosto e seus impressionantes olhos verdes, quase fluorescentes. Sob o jaleco, o uniforme padrão justo acentuava elegantemente sua silhueta, e botas de couro reforçado, aparentemente projetadas tanto para pesquisa quanto para ação, completavam o conjunto.

    — Sou Emilly Jones! — respondeu, estendendo a mão enluvada. — Pesquisadora-chefe de anomalias Mephisto. Ou, como Mikael gosta de me chamar, a nerd que sabe demais.

    Apertei sua mão por reflexo, mas meu olhar permanecia fixo no dela. Inclinei a cabeça ligeiramente, avaliando-a.

    — Não sabia que tinham uma… pesquisadora-chefe designada para isso.

    — Ah, é claro. — respondeu, soltando minha mão. — Sempre que surge um caso que desafia as estatísticas e os limites da lógica, eu sou chamada. 

    — Isso parece… reconfortante.

    Emilly riu novamente, mas dessa vez havia algo quase predatório no brilho dos olhos.

    — Não precisa se preocupar. Não tô aqui pra te dissecar, pelo menos não literalmente. 

    — Menos mal, eu acho?

    — A propósito, você é uma peça fascinante para as minhas pesquisas.

    Franzi o cenho, mas ela continuou antes que eu pudesse responder.

    — Quero dizer, você sobreviveu a uma possessão Mephisto e, ainda por cima, conseguiu manter o controle. — Seu sorriso se alargou. — Isso é raríssimo! 

    — Só tive sorte.

    — Hm, será? Sorte não explica o que aconteceu com você. E certamente não explica por que você está aqui agora.

    — É o meu trabalho… infelizmente. — respondi, tentando ignorar o desconforto crescente.

    — Claro, claro. Seu trabalho. Mas eu acho que é mais do que isso.

    Ela se aproximou um pouco.

    — Você é como ele. — Seu sorriso diminuía, mas a intensidade no olhar ia crescendo. — Sobreviveu a algo que deveria ter te destruído. Isso faz de você uma… anomalia.

    Não respondi. Não tinha o que dizer.

    — De qualquer forma, quero que você use isso.

    Tirou do bolso um fone de ouvido sem fio. Era um modelo intra-auricular, de design ergonômico e com microfone embutido.

    Enquanto eu hesitantemente aceitava o fone de ouvido, Emilly se inclinou para frente e gentilmente o colocou em meu ouvido. Um clique sinalizou um ajuste seguro e então uma voz ganhou vida – uma voz que reconheci instantaneamente.

    [Está conseguindo me ouvir bem?]

    Assustado, gaguejei uma resposta.

    — S-sim, perfeitamente, vice.

    [Ótimo. Você está conectado à nossa rede segura. Dessa forma, podemos nos comunicar discretamente. Por meio desse canal, eu lhe darei as instruções necessárias para o que precisa ser feito. Vá em frente, chame ele.]

    — Boa sorte lá dentro. — Emilly deu um passo para trás, voltando a encostar na parede. 

    Assenti, engolindo com dificuldade, enquanto dava um passo em direção à porta aberta da cela. O ar lá dentro era viciado e pesado, e o único som era o zumbido fraco das luzes fluorescentes no teto. Meu coração batia forte no peito quando dei mais outro passo, e depois outro, até ficar em frente ao garoto.

    Ele não olhou para cima, sua cabeça ainda curvada como um peso que não conseguia levantar. Cabelos escuros, como uma cortina emaranhada, obscureciam suas feições, deixando apenas o contorno de um rosto envolto em sombras.

    — E aí. 

    O silêncio se prolongou, espesso e sufocante. Eu podia sentir o olhar de Emilly queimando minhas costas, tal como uma pressão silenciosa da vice-líder me impulsionando para frente.

    — Ben. — repeti, desta vez um pouco mais alto, forçando alguma convicção na palavra trêmula. — Sou eu, Krynt. O cara que, uh, quase deu um soco em você naquela… bagunça toda.

    A última parte saiu murmurada, uma tentativa tímida de humor para aliviar o clima. Cocei acanhadamente a nuca, lembrando-me ainda do momento. Mas o menino permaneceu uma estátua, imóvel e silencioso.

    A frustração me corroeu, porém, eu a empurrei para baixo. Isso não era sobre mim.

    — Qual é, cara. Olhe para mim.

    Lentamente, a princípio quase imperceptivelmente, a cabeça de Benjamin começou a se levantar. Era como observar uma flor murcha estendendo-se em direção ao sol, um movimento doloroso carregado por um peso invisível.

    Quando nossos olhos se encontraram, um abismo de angústia se abriu entre nós. A centelha de desafio havia desaparecido, deixando uma paisagem árida onde o otimismo antes prosperava.

    De seus lábios ressequidos, uma única palavra escapou, um sussurro desolado que mal podia ser ouvido acima do som estéril das lâmpadas.

    — Quero morrer…

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