Capítulo 71 - Fantasma digital
Mandy se ergueu num impulso brusco, os músculos retesados, o peito subindo e descendo num ritmo desigual. O tremor que percorria seus braços não era de cansaço, mas de uma fúria crua, um calor sufocante que incendiava seus sentidos.
Os hologramas anteriores já haviam se dissipado, mas o sistema não lhe concedeu trégua. A voz sintética ecoou pelas paredes, anunciando o próximo desafio:
A voz sintética reverberou pela sala, fria e objetiva:
— Iniciando simulação de combate. Parâmetros ajustados: adversário nível 6. Perfil tático: lança de alta velocidade, estilo ofensivo. Analisando resposta neural… padrões de estresse detectados. Sincronizando intensidade com frequência biológica. Ajuste concluído. Combate iniciado.
Ela não escutou. Nada além do caos dentro de si conseguia atravessar a barreira dos próprios pensamentos.
Então, a nova figura tomou forma.
A luz holográfica piscou, compondo lentamente a silhueta no centro da sala. Mandy sentiu o ar estagnar em seus pulmões.
Aquilo segurava uma lança que emitia um brilho púrpura. A postura, a inclinação do corpo e a forma como os dedos envolviam a arma eram inconfundíveis.
— Mavie…
Embora fosse um artifício digital, um simulacro impessoal, seu olhar captava nuances que não poderiam ser coincidência. A maneira como a figura inclinava a cabeça, o equilíbrio do peso nos pés, a ameaça silenciosa na ponta da lâmina — tudo refletia alguém que Mandy tentava esquecer.
O espaço ao redor encolheu. O chão sob seus pés perdeu a firmeza. O clima ficou pesado, como se o ambiente inteiro estivesse se curvando sobre ela.
O peito subia e descia num ritmo errático. O ar não fluía como deveria, preso na garganta, transformando cada tentativa de respirar em um esforço inútil. O coração martelava contra as costelas, descompassado, oscilando entre explosões frenéticas e lapsos assustadoramente silenciosos.
A visão distorcida nas bordas criava uma moldura disforme, na qual a figura à sua frente parecia ainda mais real, mais tangível.
— Não… não pode ser.
Os tremores começaram nos dedos e escalaram pelos braços, espalhando-se pelo corpo inteiro. O sistema notificava algo, mas suas palavras eram abafadas por um ruído intenso, um zumbido ensurdecedor que preenchia cada espaço de sua consciência.
Piscou, tentando expulsar a ilusão, romper o transe, afastar a imagem que se recusava a desaparecer. Mas a silhueta permaneceu ali, imóvel, indiferente, como se aguardasse. Como se soubesse.
Depois veio a raiva.
Como o rompimento de uma represa, a energia negativa dentro de Mandy explodiu, alimentada pela frustração, pelo medo e pela dor acumulada. A sala começou a vibrar levemente, com um ruído baixo repercutindo nas paredes. Suas emoções estavam fora de controle e ela se agarrou à única saída que conhecia: lutar.
Lutar para destruir o que quer que ousasse confrontá-la com lembranças que ela preferia esquecer.
Ela avançou impetuosamente como um furacão. A katana crepitava com uma energia instável que chegava a rasgar o ar ao seu redor. O holograma levantou a lança para se defender, mas Mandy não estava mais no controle. Seu primeiro golpe foi a tal ponto violento que a lâmina rachou o chão ao ser bloqueada.
A colisão liberou uma onda de choque que fez com que as luzes oscilassem.
O holograma recuou e tentou um impulso, todavia, Mandy já estava girando no ar enquanto sua katana descrevia um arco de energia que, por sua vez, lembrava mais um feixe de luz líquida.
O holograma se despedaçou parcialmente, mas se reconfigurou quase que instantaneamente. Isso só a enfureceu ainda mais. Ela gritou, um som cru e gutural que rasgou sua garganta enquanto desferia golpes consecutivos.
O impacto gerado pela katana se intensificava a cada golpe. Para cada colisão, uma nova onda de choque explodia pela sala, estilhaçando os painéis da sala e criando rachaduras que serpenteavam pelo piso.
A energia negativa de Mandy tornou-se uma espiral fora de controle, condensando-se ao seu redor como uma tempestade de partículas negras, caóticas e eletricamente carregadas.
No golpe final, levantou sua arma acima da cabeça, centralizando todo o fluxo de energia em um único ponto. O holograma tentou erguer sua lança em contra-ataque, mas era tarde demais. Ao derrubar a lâmina, o espaço circundante sofreu uma implosão por um instante.
O holograma foi obliterado em uma explosão de luz e som, e o chão cedeu sob seus pés, abrindo uma cratera enorme.
Ficou ali, ofegante, com a katana vibrando em sua mão. Sua visão ficou embaçada e, por um momento, tudo o que ela sentiu foi o vazio.
Mas então, uma voz atravessou o caos.
— Já basta, Mandy! — Raven surgiu como uma sombra, deslizando pelo espaço destruído e colocando-se entre ela e o vazio de sua raiva. — Controle-se, ou vai acabar destruindo a si mesma.
Mandy estava tremendo, com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o cabo de sua katana.
Sua respiração estava irregular, ainda rápida e ofegante, e sentia-se com o peito apertado, uma sensação de que o peso da imagem de Mavie ainda estava lá, esmagando-a.
A impressão, momentaneamente, era de que ela iria ignorar o aviso de Raven. Mas então algo em seu tom – ou talvez na urgência em seus olhos – conseguiu romper o turbilhão. Ela deixou a espada cair.
O silêncio foi interrompido por passos leves. Emilly entrou na sala, com os olhos arregalados e cheios de uma estranha mistura de admiração e preocupação. Ela examinou a destruição ao seu redor e soltou um assobio baixo.
— Uau. Isso foi… impressionante. — disse, aproximando-se. — Talvez um pouco demais, mas ainda assim impressionante.
Raven lançou um olhar de advertência para Emilly, mas a mesma continuou, sorrindo de forma quase travessa.
— Sabe, Mandy, se não fosse tão destrutivo, eu diria que você está pronta para o próximo nível. Mas… talvez devêssemos trabalhar no controle primeiro. Só uma sugestão.
Mandy não respondeu. Ficou apenas olhando para o vazio onde estava o holograma, com o coração ainda batendo como um tambor.
A imagem de Mavie ainda estava gravada em sua mente, como uma ferida que se recusava a cicatrizar.
Emilly se agachou ao lado da cratera e passou os dedos pelas bordas rachadas do chão.
— Você realmente fez um número por aqui. — Ela sorriu, mas o sorriso era cauteloso, quase hesitante. — Mandy, eu sei que esse era só um holograma, mas… parecia que você estava lutando contra algo mais. Algo que não está na sala.
Mandy piscou lentamente, os olhos voltando à realidade. Sua voz saiu baixa, rouca, como se cada palavra exigisse esforço.
— Ele… Ele parecia com alguém que eu conheci. Só isso.
Raven estreitou os olhos. Ele conhecia bem esse tom de voz. Era o mesmo que as pessoas usavam quando tentavam mascarar algo mais profundo, algo que não queriam admitir nem para si mesmas.
— Só isso não destrói metade de uma sala de treinamento. Você precisa reconhecer o que está acontecendo, Mandy. Ignorar não vai ajudar. Reprimir só vai tornar isso pior. E você sabe disso.
Ela virou o rosto para a mulher, o olhar feroz novamente aceso.
— E o que você sabe sobre isso, tia Raven? Você não faz ideia do que está dentro da minha cabeça. Não sabe o que é ver algo que… que você nunca deveria ter que encarar de novo.
Esta manteve a compostura, mas deu um suspiro pesado, como se estivesse preparando uma resposta que já dera muitas vezes antes. Antes que ele pudesse falar, no entanto, Emilly interveio:
— Mandy, calma. — A loira colocou as mãos para cima, num gesto conciliador, mas seu tom tinha uma firmeza inesperada. — Ele não tá aqui pra te atacar, tá? E ninguém tá dizendo que você precisa superar alguma coisa de um dia pro outro. Mas, sério… você precisa parar de se fechar assim. Não adianta. Você tá afundando sozinha.
— Eu não… Eu não sei como.
Houve um silêncio momentâneo, e Emilly relaxou os ombros.
— Ninguém sabe. Não de primeira, pelo menos. Olha, você é boa nisso. Lutar, destruir hologramas, o que for. Mas o que você tá enfrentando agora? Não é algo que dá pra cortar com uma katana ou explodir com uma dessas rajadas malucas que você solta. Isso aqui… isso é diferente.
Raven observou-as, mas não os interrompeu. Era raro ver Emilly tão séria, e sabia que ela tinha um jeito especial de chegar às pessoas quando realmente queria.
— Você acha que a gente não percebe? — continuou, apontando com o polegar para si mesma e depois para Raven. — A gente vê o que você tá passando. Tá tudo escrito na sua cara. Você tá carregando isso sozinha, e isso não vai funcionar. Uma hora, você vai quebrar. Como sua própria tiazinha disse.
Mandy olhou para as duas figuras diante dela, os olhos finalmente piscando mais rápido, como se estivesse tentando sair de um transe. As palavras de Emilly atravessaram a barreira que ela mantinha erguida, mas a raiva ainda lutava para permanecer viva.
— E o que você sugere que eu faça? Sentar num círculo e falar sobre meus sentimentos?
Emilly soltou uma risada curta e irônica, cruzando os braços.
— Bom, isso seria um começo. Mas, honestamente? Só para de fingir que tá tudo bem. Se quer gritar, grita. Se quer quebrar mais coisas, a gente pode arrumar um lugar pra isso. — Ela apontou para a cratera com a cabeça. — Mas precisa começar a ser honesta consigo mesma. Ou então, vai acabar sendo consumida por isso.
Os punhos da garota se fecharam ao lado do corpo, passando o olhar de Emilly para Raven. Havia um nó apertado em sua garganta que ela não conseguia desfazer. Finalmente, deixou escapar um suspiro pesaroso, praticamente como se estivesse exorcizando algo dentro de si.
— Eu não sei por onde começar.
Emilly deu de ombros, agora com um sorriso mais leve no rosto.
— Então começa pelo básico. Respira. Uma coisa de cada vez. — Ela deu um passo para trás e apontou para a katana caída. — E talvez pegar sua espada de volta, antes que alguém tropece nela.
Mandy abaixou-se lentamente para pegá-la. Ao levantar-se novamente, havia algo diferente em seus olhos. Não era exatamente alívio, mas talvez… uma ponta de determinação.
Emilly sorriu para ela, e Raven assentiu, como se reconhecesse que, por menor que fosse, esse era um progresso.
— Agora, vamos dar um jeito nessa sala antes que alguém entre e…
Sua fala foi cortada quando a porta deslizou com um zumbido abrupto e uma agente uniformizada entrou com pressa.
A mulher parou no meio do caminho, sua expressão neutra se transformando em uma mescla de surpresa e desaprovação ao ver o estado do lugar. Os olhos dela passaram rapidamente pela cratera no chão. Finalmente, pousaram em Mandy, ainda segurando a katana, e depois em Emilly, que estava com as mãos na cintura, como se fosse a dona da situação.
— Mas que porra aconteceu aqui?
Raven soltou um pequeno suspiro e massageou a testa.
— Estamos resolvendo.
— Resolvendo? Sei. Tá com uma cara ótima de resolução. Deixa eu adivinhar, foi você? — Apontou o queixo para Mandy, sem rodeios.
A jovem apenas encarou a mulher de volta. Antes que ela pudesse responder, Emilly deu um passo à frente, erguendo uma das mãos.
— Relaxa, Zoey. É só um pequeno contratempo. Nada que a equipe de manutenção não resolva em dez… quinze minutos, no máximo.
— Quinze minutos? Senhorita Emilly, tem uma cratera no chão. Você quer enganar quem aqui? Os hologramas foram fritados, e eu aposto que as paredes tão rachadas. — Ela balançou a cabeça, tirando o tablet do coldre na lateral do uniforme. — Sabe, eu vim aqui pra te avisar que a vice-líder tá te chamando no escritório dela, mas agora eu tenho que explicar essa zona também? Francamente, cês tão de sacanagem.
— Você quer que eu vá agora? — perguntou, tentando parecer inocente, enquanto dava uma olhada rápida para Mandy.
— Sim, agora. E senhorita Raven, não tem nenhum relatório para preencher sobre isso?
— Eu já vou lidar com isso. — respondeu, com a paciência típica de quem já estava acostumado com esse tipo de abordagem.
Zoey levantou as mãos como se estivesse desistindo de argumentar.
— Tá bom, se virem. Mas aviso logo: se o comitê de avaliação ver isso aqui, vai rolar reunião de emergência. E, senhorita Raven, eu não quero tá na sua pele se mandarem você justificar essa… destruição ao redor
Com isso, a agente virou nos calcanhares, pronta para sair, mas não sem antes lançar mais um olhar crítico para Mandy.
— E você, garota, tenta não demolir o prédio inteiro no próximo treino, beleza? A gente ainda precisa desse lugar.
Assim que a porta deslizou e a mulher desapareceu, Emilly soltou um suspiro e deu um tapa leve no ombro dela.
— Ela é um amor, não é?
Raven a olhou com uma expressão que era metade irritação, metade exaustão.
— Emilly, é melhor você ir logo. Não quero que a vice-líder venha pessoalmente buscar você.
— Tá, tá, já tô indo. — Piscou para Mandy e deu um sorriso de canto. — Não deixa ela pegar muito no seu pé, tá? A gente vai resolver isso.
Mandy apenas assentiu com a cabeça, ainda processando tudo o que havia acontecido. A porta se fechou novamente, restando apenas ela e Raven na sala.
— Precisa aprender a controlar isso. Se não fizer isso logo, ela vai ser o menor dos seus problemas.
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