Capítulo 68 - Aviso desmedido
Logo que deixaram a SSTI-02, Zoey ajustou o ritmo de seus passos para acompanhar o de Emilly, que caminhavam juntas de volta ao corredor principal. No momento em que Emilly virou na direção da ala administrativa para atender ao chamado da vice-líder, Zoey seguiu seu caminho, rumo à SSTI-01, situada na extremidade oposta da ala T-02.
Uma placa digital instalada na parede indicava a proximidade da Sala de Treinamento T-01. Através de uma série de paineis de vidro fosco, Zoey observava as silhuetas distorcidas dos agentes submetidos a treinamentos. A rapidez e a eficiência de seus movimentos faziam com que criassem uma sequência de sombras nos contornos translúcidos, uma visão que, mesmo em sua abstração, evidenciava a intensidade do que acontecia lá dentro.
Ao alcançar a entrada automática da SSTI-01, um som abafado chamou sua atenção. Golpes secos ressoavam, seguidos pelo som de algo pesado que caía no chão. Instintivamente, seu coração acelerou. Ela respirou fundo, encheu os pulmões de ar frio e endireitou os ombros antes de atravessar a porta.
Assim que a entrada se abriu, o cenário da SSTI-01 se revelou. Um boneco de treinamento, claramente abatido pelo uso repetido, estava tombado próximo à porta.
A sala era ampla, com paredes revestidas de materiais acolchoados que absorviam impactos. Equipamentos de treinamento estavam organizadamente espalhados: pesos ajustáveis em suportes de metal, bonecos reforçados que simulavam resistência humana, barras suspensas que balançavam levemente no teto, como se ainda ecoassem o movimento de alguém que as usara momentos antes.
No centro da sala estava ele.
— Uh… senhor Nicholas.
O homem ergueu o olhar na direção de Zoey.
Descalço, vestia uma calça larga branca e uma camisa de compressão preta que se ajustava ao corpo, valorizando sua musculatura robusta. Sua pele parda brilhava sob o reflexo da luz e o suor escorria em linhas finas pela lateral do rosto, o que destacava suas duas cicatrizes, marcadamente presentes em meio à sua expressão serena. Uma cortava suavemente abaixo da pálpebra esquerda, enquanto a outra rasgava desde a base da mandíbula até o canto do maxilar do mesmo lado.
Ele se virou completamente para olhá-la, de olhos âmbar, tão intensos e alertas quanto uma lâmina sondando uma superfície. Havia algo nos olhos dele que não era apenas força, mas a experiência de quem já enfrentara o pior e sobrevivera.
Zoey engoliu seco. Não era exatamente medo, mas uma mistura de surpresa e uma estranha fascinação. O homem à sua frente emanava algo que ia além do físico — uma presença, quase palpável, que preenchia o espaço como um trovão contido.
— Precisa de algo? — perguntou Nicholas, enquanto ele passava uma toalha sobre o rosto, sem desviar os olhos dela.
A mulher hesitou por um instante, reunindo-se em pensamentos antes de responder. Ela sabia que não era apenas a intensidade do treinamento que tornava aquela sala opressiva; era ele.
O calor que subia pelo rosto a deixou tonta, como se o ar da sala tivesse se tornado subitamente rarefeito. O rubor tomava conta de suas bochechas, uma chama que se espalhava por todo o rosto e deixava impossível disfarçar o constrangimento.
— A… a vice-líder pediu para falar com o senhor.
Seus olhos, que tentavam manter contato, cederam e desviaram para o chão por um breve momento, fixando-se no boneco tombado.
Nicholas continuou a secar o rosto com a toalha, sem pressa, mas a intensidade de seu olhar não diminuiu. Ele parecia analisá-la, os olhos âmbar percorrendo o rosto dela, lendo o constrangimento que ela não conseguia esconder.
— Tá, entendi.
Ele colocou a toalha envolta da nuca.
A respiração de Zoey falhou por um segundo e ela apertou levemente as laterais da calça do uniforme para tentar canalizar a tensão para algum lugar.
— Alguma indicação sobre o motivo?
— Não, senhor. — A resposta saiu rápida, como se quisesse encerrar o assunto. — Só quer você lá.
— Hmm.
Ele parou a uma distância dela que deveria ser confortável, mas a proximidade parecia estreitar o espaço entre eles de forma quase sufocante.
— Valeu pela mensagem, Zoey.
O rubor que subia por suas bochechas parecia não ter limites, uma chama que não cedia.
Nicholas passou por ela em direção à porta, vindo a se virar ligeiramente com olhar sobre o ombro antes de cruzá-la. Seus lábios relaxaram e formaram um traço que poderia ser um sorriso — ou talvez apenas um indício de curiosidade refletido em seu rosto.
— Você tá bem? Parece… nervosa.
A pergunta, embora simples, a deixou completamente desarmada. Enquanto piscava, tentava formular uma resposta coerente, percebendo que as palavras fugiam. Enfiou as mãos nos bolsos, a fim de conter o tremor nos dedos.
— Estou bem, senhor. É só… calor. A sala está quente.
Como se considerasse aquilo por um momento, ele ergueu uma sobrancelha. Não disse nada, mas seu olhar transmitia descrença. Antes de sair, deu um breve aceno com a cabeça e deixou a porta se fechar com um clique suave.
Zoey soltou um suspiro longo ao sentir os ombros afrouxarem quando finalmente ficou sozinha. Passou as mãos pelo rosto quente e murmurou para si mesma:
— Idiota… Por que isso sempre acontece?
Ela chutou a base do boneco tombado, como se o gesto pudesse ajudá-la a dissipar o nervosismo que ainda a dominava. Não ajudou.
Toc. Toc.
Após duas batidas, a porta se abriu e Nicholas entrou no escritório. Seus olhos varreram a sala em busca de respostas. Darcy, sentada atrás de sua mesa, ergueu o olhar para ele.
— Nicholas, que bom que veio.
Ele franziu levemente a testa. Havia algo na maneira como ela falou que o deixou alerta. Respirou fundo, obrigando-se a manter a calma. Ainda assim, havia uma inquietação crescendo dentro dele, alimentada pela urgência do chamado e pela mudança sutil no ambiente.
O aroma usual do escritório, um misto de canela e couro que ele associava à presença de Darcy, estava ausente, substituído por um cheiro enjoativo de algo indefinido.
Com um estalido quase imperceptível, fechou a porta atrás de si. De relance, notou Emilly sentada ao lado da mesa, de braços cruzados, observando-o com uma expressão que misturava curiosidade e divertimento.
— Está suado, hein? — comentou Emilly, com um sorriso de canto. — Corrida até aqui ou treino pesado?
Nicholas lançou-lhe um olhar breve, um lampejo de humor cruzando seus olhos antes de desaparecer.
— Treino. E, pelo visto, um momento ruim para interromper.
— Momento ruim depende do ponto de vista. — Emilly inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Digamos que você chegou no clímax da nossa conversa.
Darcy pigarreou, interrompendo o momento com autoridade, mas sem perder a compostura.
— Emilly. — disse, lançando-lhe um olhar rápido antes de voltar a atenção para Nicholas. — Sente-se, por favor.
Ela gesticulou para a cadeira à sua frente, e Nicholas obedeceu sem hesitar, puxando o assento para se acomodar.
— Um grupo de cinco adolescentes desapareceu ontem à noite em um prédio abandonado que costumava ser um estúdio de animação na década de 80. O local está desativado há mais de trinta anos, mas, aparentemente, ganhou fama entre exploradores urbanos e… caçadores de mistérios.
— Deixa eu adivinhar. — Emilly arqueou uma sobrancelha. — A última moda é gravar vídeos para o YouTube invadindo esses lugares, certo?
— Exatamente. Eles têm um canal com uma audiência considerável e costumam explorar locais associados a lendas urbanas. No caso desse prédio, há relatos antigos sobre fenômenos estranhos durante a produção de animações, incluindo incidentes que levaram ao fechamento do estúdio.
— Sempre tem uma história dessas. — murmurou Nicholas, cruzando os braços. — De fantasmas a paredes sangrando, já ouvi de tudo.
— Você não vai sozinho, relaxa. — Emilly inclinou-se para ele com um sorriso provocador. — Pense em mim como sua parceira de caça-fantasmas.
— Desde que você não grite ao primeiro rato que passar correndo.
— Até parece.
Darcy suspirou, mas manteve a calma.
— Raven está com Mandy nos treinamentos, Mikael foi para o México lidar com a situação do Benjamin e os outros veteranos estão lidando com missões prioritárias.
— Prioritárias. — Nicholas repetiu, tamborilando os dedos no braço da cadeira. — Porque adolescentes metidos a Scooby-Doo não contam como prioridade.
— Vamos combinar que você tem a cara do Fred. — Emilly disse.
Nicholas olhou para ela com falsa exasperação, mas havia um brilho de humor em seus olhos.
— Se alguém aqui é o Fred, você com certeza é a Velma.
— Vou aceitar isso como um elogio. — Ela deu de ombros. — Pelo menos eu sou a inteligente do grupo.
— Tá. Enfim, alguma coisa mais concreta sobre o prédio?
Darcy assentiu e puxou um arquivo da mesa, onde o colocou sobre a superfície.
— Temos a planta baixa e os registros de segurança do local. Não há eletricidade nem vigilância constante, mas há rumores de movimentos estranhos detectados por sensores nas proximidades. Além disso, o histórico do prédio sugere que as histórias sobrenaturais começaram após a morte de um dos animadores-chefes.
— Parece até um sábado normal.
Darcy ignorou o comentário e apontou para um mapa desenhado à mão no arquivo.
— O prédio tem três andares, além de um porão que era usado para armazenamento.
— Então entramos, damos uma olhada e descobrimos o que aconteceu. — disse Emilly.
— E ainda arrebentamos a cara dos Mephistos. — Nicholas complementou.
Darcy ergueu uma sobrancelha, claramente não impressionada com o tom dos dois.
— Apenas se certifiquem de trazer respostas e, de preferência, trazer algum deles vivos. Não quero que mais ninguém desapareça nesse prédio.
Nicholas se levantou e ajeitou a toalha ao redor do pescoço.
— Entendido. Vamos descobrir o que está acontecendo.
— E tentar não destruir nada no processo. — completou Darcy, com um olhar firme.
Emilly levantou-se em seguida, prendendo o cabelo com um elástico antes de lançar um olhar risonho para Nicholas.
— Acho que ela ainda não nos conhece bem.
— Vai ser divertido.
Ambos saíram do escritório, deixando Darcy à mercê da incerteza.
Ela massageava as têmporas, numa tentativa de afastar a crescente fadiga, quando a porta do se abriu abruptamente.
Era Owen. Ele tinha o rosto carregado de uma expressão séria que Darcy conhecia bem. O agente fechou a porta atrás de si com um movimento rápido, quase brusco, e deu alguns passos em direção à mesa antes de falar.
— Senhora, temos um problema. Um grande problema.
Darcy levantou o olhar, franzindo o cenho ao captar a urgência na postura dele.
— Seja direto, Owen. O que aconteceu?
O homem passou a mão pelo cabelo, claramente tentando organizar as palavras.
— Acabamos de encontrar um corpo na Sala de Armazenamento Técnica, setor E-17. Está no subsolo, perto das unidades de energia. — Owen fez uma pausa, mas o olhar dela o incentivou a continuar. — Não foi um acidente, vice. O estado do corpo… É algo que você precisa ver.
A menção à Sala de Armazenamento Técnica fez Darcy engolir seco. Era uma área restrita, de acesso limitado, dedicada ao armazenamento de dispositivos sensíveis e materiais altamente classificados. Não era um lugar onde alguém simplesmente aparecia morto.
Ela se levantou, com as mãos firmes sobre a mesa.
— Qual é o estado do corpo?
— Está… mutilado. Não é algo que se explique com um simples relatório, senhora.
Darcy respirou fundo, pegando seu comunicador do bolso e prendendo-o no cinto.
— Alguém já isolou a área?
— Sim, dois agentes de segurança estão no local. Mas precisamos agir rápido. — Ele se aproximou mais, baixando o tom de voz, como se temesse que as paredes pudessem ouvir. — Há sinais de que alguém daqui fez isso.
Aquelas palavras caíram como chumbo.
— Vamos. Mostre-me.
Owen não esperou mais instruções, girando sobre os calcanhares e caminhando até a porta. Darcy o seguiu de perto.
— O corpo foi encontrado em que situação? — perguntou ela enquanto ajustava o ritmo para acompanhar o dele.
— Estava caído entre os consoles de energia. A princípio, parecia alguém que sofreu um choque elétrico, mas não é só isso. Os ferimentos… — Ele parou de falar por um momento, como se buscasse as palavras certas. — Não são naturais. É algo que vai além de qualquer coisa que já vi.
Aquelas palavras fizeram com que Darcy apertasse o passo.
Eles passaram por corredores iluminados por luzes brancas e frias, que acentuavam ainda mais o silêncio desconfortável do prédio. Ao se aproximarem da entrada do setor E-17, no entanto, a atmosfera mudou. O corredor era menos frequentado, mais sombrio, com tubulações expostas no teto e o som distante das máquinas de ventilação difusa e suave.
— Quem identificou o corpo?
— Um técnico de manutenção. Ele estava verificando os sistemas de suporte de energia quando encontrou… aquilo. — Owen parou diante da porta reforçada que levava à Sala de Armazenamento Técnica. Dois agentes de segurança estavam de guarda, ambos tensos, com as mãos firmes nas laterais dos coldres.
Darcy se aproximou, sentindo o cheiro metálico no ar. Não era forte, mas estava lá, misturado ao ambiente frio da sala.
— Alguma movimentação estranha antes disso? — perguntou, olhando para Owen enquanto um dos agentes passava seu cartão de acesso no painel.
— Nenhuma que tenha sido registrada. Mas o que está lá dentro… Não foi alguém daqui que fez isso, não do jeito que conhecemos.
A porta se abriu. Sob a luz fluorescente oscilante, sombras inquietas se projetavam sobre os consoles e as prateleiras metálicas cheias de equipamentos.
A sala exalava um cheiro de metal oxidado e carne apodrecida, uma combinação que lhe causava repulsa.
— Olha isso. O técnico só a encontrou porque houve uma queda de energia no setor, e ele foi verificar as unidades. Consegue identificá-la? Você tem uma intuição muito mais avançada.
O corpo estava estendido no meio do caos, cercado por caixas tombadas e um rastro de sangue coagulado que se infiltrava entre as fissuras do piso como raízes.
A luz oscilante projetava sombras fragmentadas sobre o cadáver, destacando a grotesca mutilação que transformara o corpo em algo quase irreconhecível.
A carne estava dilacerada em várias partes, e os músculos, expostos em um vermelho-escuro que contrastava com a palidez fantasmagórica da pele restante. As mãos, rigidamente curvadas ao nível do tórax, ainda seguravam pedaços do tecido do uniforme, coberto por fluidos e manchas escuras, cuja natureza ninguém conseguia identificar. Veias negras percorriam o corpo como mapas, a partir de cortes profundos no peito, de onde as costelas saltavam como dentes quebrados.
Darcy tentou manter a respiração sob controle, mas todos os detalhes eram gravados em sua mente dolorosamente. Seus olhos pousaram em dois pontos quase insignificantes: unhas quebradas, algumas arrancadas, sugerindo uma luta desesperada e um fio de cabelo preso entre os destroços. Ele era de um vermelho profundo, como a polpa de uma cereja madura.
Ela se aproximou e abaixou-se ao lado do corpo. Mesmo no estado grotesco em que se encontrava, algo começou a emergir em sua mente, uma vaga memória. Aquele tom de cabelo… Aquela textura…
— Laura? — A palavra escapou como um sussurro, carregada de incredulidade e um choque paralisante.
Owen, parado logo atrás, inclinou-se para ouvir melhor.
— O quê?
Darcy estendeu a mão trêmula, mas evitou tocar diretamente no cadáver, limitando-se a se aproximar o suficiente para confirmar suas suspeitas. Havia algo na estrutura do maxilar desfigurado, uma cicatriz que mal sobrevivia ao estado do rosto.
Era inconfundível.
— É Laura Rossi… — Darcy murmurou, sentindo a garganta apertar. — Ela era uma veterana. Uma das melhores Agentes de Campo.
Owen deu um passo à frente, os olhos arregalados.
— Eu vi Laura… faz três malditos dias, senhora. Três dias! Ela estava bem, trabalhando como sempre fazia, porra.
A vice desviou o olhar para ele, mas não tinha o que dizer. O silêncio era mais eloquente do que qualquer tentativa de consolo.
— Caralho… — Owen passou a mão pelos cabelos, cujos dedos tremiam de raiva e impotência. — Quem fez isso? O que fez isso?!
A mulher olhou para o corpo mais uma vez. As lacerações não eram aleatórias. Havia algo metódico. As veias inchadas e escuras, os cortes profundos que pareciam ter sido feitos com algo mais do que lâminas comuns.
— Isso… isso não foi humano.
O agente bufou.
— Não foi humano? Ótimo, mas e daí? Que porra vamos fazer agora? Ela era minha amiga, caralho. Nós bebemos juntos depois da missão. Ela tinha essa coisa estúpida de falar sobre cerveja artesanal como se fosse arte… — Sua voz falhou, e a raiva deu lugar à dor. — E agora… isso.
Darcy levantou-se lentamente, o olhar ainda preso ao corpo, mas sua mente já corria.
— Precisamos descobrir o que aconteceu. E rápido. Para isso, vamos precisar de Raven.
— Raven? Tá falando sério? Ela é… instável.
— Não temos escolha. Se alguém pode nos ajudar a entender o que aconteceu aqui, é ela.
Owen hesitou, a mão ainda cerrada em punho ao lado do corpo.
— Isso não vai acabar bem.
Darcy lançou-lhe um olhar, sombrio e determinado.
— Owen, nada disso já começou bem.
O que eles viam não era apenas um mistério. Era um aviso. No fundo, Darcy sabia que Laura Rossi não seria a última.
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