Capítulo 75 – Negócio com ambições elevadas
SALA DE ARQUIVOS
Tudo exalava um cheiro sufocante de papel velho e madeira apodrecida. A umidade saturava o ar, misturando-se ao amargor da tinta desbotada e ao mofo que se acumulava nas extremidades das prateleiras. Emilly passou a mão pelo rosto e sentiu a textura áspera do suor seco na pele.
Emilly puxou uma cadeira de metal para perto da mesa central e se sentou. O abafamento se agarrava a ela, tornando cada respiração densa. A iluminação precária do teto oscilava, projetando sombras inquietas pelas estantes metálicas. Embora o espaço estivesse aparentemente organizado, a negligência era evidente. Um labirinto de corredores apertados entre documentos desbotados, rolos de filme cobertos de poeira e pastas sem lógica aparente.
Ela passou os dedos pela superfície de um bloco de papéis amarelados. Nada de mais. Contratos de distribuição, licenciamento de brinquedos, parcerias publicitárias. Mas então, entre um feixe de pastas, uma folha dobrada no topo de uma pilha de registros chamou sua atenção.
Funcionário: Ryan Halloway. Setor: Desenvolvimento de Personagens. Status: Desligado.
Ela franziu a testa e virou outra página.
Funcionário: Alan Reynolds. Setor: Animação Tradicional. Status: Falecido.
Seu olhar se estreitou. Mais uma.
Funcionário: Daniel Everett. Setor: Pós-produção. Status: Falecido.
— Certo… desligado, falecido, falecido. — Emilly sussurrou para si mesma enquanto folheava os papéis, mantendo uma expressão grave. — Isso não foi um erro administrativo.
A lógica corporativa dos Estados Unidos sempre priorizou a produtividade em detrimento da estabilidade. Empresas de entretenimento, principalmente estúdios de animação, eram especialistas não só em atrair talentos, mas também em descartá-los. Cortes eram comuns, assim como reestruturações brutais. Mas a palavra falecido aparecendo com tanta frequência em apenas um setor?
Ela puxou um bloco de notas e rabiscou rapidamente:
- Fundação: 1983 – Propriedade: Privada (financiamento de risco inicial).
- Modelo de Negócios: Licenciamento de personagens, brinquedos e royalties. Padrão Disney, mas com foco obsessivo em audiência infantil (<12 anos) (um pouco suspeito).
- Primeiro Mascote: Benny, o Coelho (1984). Design original: inocente → alterações pós-1990.(ele é fofo.)
- Concorrência: Disney, Warner Bros e Hanna-Barbera.
- Funcionários-Chave:
- Ryan Halloway
- Era do Desenvolvimento de Personagens.
- Status: Desligado (1995).
- Alan Reynolds
- Era do Setor de Animação Tradicional.
- Status: Falecido (1996). Causa não especificada (sem relatório médico).
- Daniel Everett
- Era do Setor de Pós-produção.
- Status: Falecido (1997). Acidente “não divulgado” (não tá ajudando muito).
Ela se recostou por um momento, tentando montar o quebra-cabeça. A WonderheartStudio não era apenas um estúdio. Era um negócio. E um negócio com ambições elevadas.
A indústria de animação infantil nos Estados Unidos sempre foi uma máquina de lucro. Desenhos bem-sucedidos não existiam apenas para entreter crianças, mas para transformar mascotes em ícones de consumo. Mochilas, lancheiras, cereais matinais – o verdadeiro dinheiro não vinha das animações, mas dos produtos derivados. Quanto mais jovem a audiência, mais maleável era sua lealdade a um personagem. E a Wonderheart entendeu isso rápido demais.
Mas a sobrevivência nesse mercado nunca foi apenas sobre criatividade. Desde que a Alemanha nazista venceu a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram a operar sob uma lógica econômica agressiva, moldada pela necessidade de provar sua força sem cair sob o jugo do Reich. As corporações cresceram como novos impérios, competindo não apenas por consumidores, mas por influência dentro de um sistema que priorizava eficiência e inovação a qualquer custo.
O problema era que inovação sempre tinha um preço.
— Então, o que você fez, Cartwright? — Emilly puxou outra ficha de dentro de uma gaveta destrancada. O nome de Joseph Cartwright estava impresso no topo.
Cartwright era um visionário. Um obcecado. Em entrevistas antigas que Emilly encontrou entre os papéis, ele falava do estúdio como se fosse uma missão espiritual. “Criar algo que transcenda gerações.” Esse era o tipo de narrativa que acionistas adoravam ouvir e que funcionários repetiam para se convencer de que suas exaustivas jornadas de trabalho eram por algo maior. Mas a realidade do setor sempre foi brutalmente menos romântica.
A WonderheartStudio não era um ateliê de artistas; era uma linha de montagem disfarçada de fábrica de sonhos. Os animadores trabalhavam em turnos sufocantes, às vezes virando noites dentro do próprio estúdio. Pequenas salas serviam como dormitórios improvisados, cadeiras acolchoadas substituíam camas, e energéticos circulavam como moeda de sobrevivência. As mãos tremiam de cansaço, mas os prazos não perdoavam. A inovação exigia sacrifícios.
E Cartwright queria mais do que inovação. Ele queria a perfeição.
Os métodos dele beiravam o fanatismo. Todos os personagens e mascotes criados passavam por testes de audiência rigorosos. As crianças eram reunidas em salas de observação, sob a observação de psicólogos e marqueteiros, que avaliavam expressões, hesitações e qualquer traço de desinteresse. Se um design não capturava atenção suficiente nos primeiros segundos, ele era redesenhado ou descartado imediatamente.
A lógica era simples: atrair, fixar, lucrar. Não havia espaço para mediocridade. O mercado era um campo de guerra, e a concorrência não hesitaria em esmagar os fracos.
Emilly deslizou a mão por um dossiê de 1994. O nome de Cartwright estava ali.
— O mercado está saturado. As mesmas histórias, os mesmos personagens, a mesma previsibilidade. Se quisermos nos manter à frente, precisamos nos reinventar. A Wonderheart não pode ser apenas um estúdio, deve ser um marco na história do entretenimento. Não podemos ter medo de explorar novos caminhos, mesmo que eles nos levem a territórios desconhecidos.
Emilly passou os dedos sobre o papel, sentindo sua superfície áspera devido ao tempo. Tal justificativa não lhe era estranha. A linguagem corporativa era traiçoeira. Embora não prometesse inovação, prometia transcendência – uma palavra perigosa na boca de um homem disposto a sacrificar qualquer coisa por sua visão.
Ela estreitou os olhos e deslizou outra folha. Anexado ao memorando, uma lista de funcionários. Ryan Halloway. Era o primeiro nome que encontrara na pilha de registros.
O papel sob seus dedos era áspero, como se o tempo tivesse transformado a superfície em uma pele ressecada. Emilly inclinou-se sobre a mesa, a luz amarelada do teto projetando sombras que dançavam em torno das palavras “comportamento instável”. O relatório de desligamento de Ryan Halloway estava ali, mas não inteiro – uma ferida diagonal cortava o texto, rasgando parágrafos ao meio. Seus dedos traçaram a linha do rasgo, lentamente, como se pudessem decifrar a intenção por trás do gesto violento.
— Alguém aqui não queria que isso fosse lido.
Na metade superior da folha, frases soltas resistiam: “…demonstrou potencial excepcional durante o Projeto…” e “…preocupações éticas levantadas pela equipe de…”. O resto desaparecera, engolido pelo vazio do papel mutilado. Emilly virou a folha contra a luz, buscando marcas d’água, códigos ocultos – nada. Apenas a aspereza do envelhecimento e o silêncio das lacunas. Seu queixo se tensionou, quase imperceptivelmente.
Uma pasta marcada “Projeto Transcendência”, guardada na gaveta ao lado, continha esboços de Ruth. Os traços iniciais de Halloway apresentavam precisão e sutileza, mas, nas páginas seguintes, as linhas se tornavam caóticas. Notas rabiscadas à margem – “ele não aprova as mudanças”, “Ruth está viva demais” – misturavam-se a símbolos estranhos, como círculos entrelaçados e triângulos invertidos, numa espécie de linguagem clandestina.
Emilly puxou uma folha solta onde uma foto desbotada de Ryan estava presa por um clipe enferrujado. O homem sorria, segurando um esboço de Ruth ainda simples. No verso, uma mensagem a lápis, quase apagada:
“Eles não entendem. Ruth não é só um personagem. Ela é a ponte. Joseph sabe. Ele viu o que eu vi.”
O ar na sala pareceu ficar mais frio.
“Ponte.”, repetiu mentalmente, os dedos contraindo levemente ao segurar a foto.
Seus olhos percorreram a palavra, tentando capturar seu significado nas entrelinhas.
Uma caixa de arquivo empoeirada, com a etiqueta “Incidentes 1995”, ficava na prateleira acima. Pastas vermelhas seladas com “CONFIDENCIAL” guardavam, dentro dela, relatórios de segurança: “Distúrbio no Setor de Animação. Sons incomuns após o expediente…”. Embora não houvesse nomes, as datas coincidiam com o desligamento de Halloway. Emilly folheou os papéis, tensionando os músculos da mandíbula.
— Distúrbio é uma palavra conveniente para encobrir o que não podia ser dito.
A segunda pasta continha um recorte de jornal censurado com tinta preta. A manchete – “Tragédia em estúdio de animação: funcionário desaparecido é encontrado sem vida” – estava acompanhada por uma foto desfocada de um corredor do estúdio. Ao fundo, uma silhueta alongada, quase humana, mas não quite. Seus dedos tremularam levemente ao devolver o recorte à pasta.
— Você é do tipo que não se assusta com a morte, mas você teria medo se…
No fundo da sala, rangidos se fizeram ouvir. Emilly ergueu a cabeça, aguçando os sentidos. A luz piscou, e o ambiente mergulhou em semi-escuridão antes de retornar. Ela inspirou fundo, sentindo o peito subir e descer ritmadamente.
— Não agora. — ordenou a si mesma. — Foco.
Seu bloco de notas já estava repleto de novas anotações:
- Ryan Halloway
- Era do Desenvolvimento de Personagens.
- Status: Desligado (1995).
- 1994-1997: Período crítico de mortes e “incidentes” → alinhado ao desenvolvimento de Ruth e pressão de Cartwright por “perfeição”.
- Projeto Transcendência:
- Objetivo declarado: “Reinventar a animação como marco histórico”.
- Objetivo real (hipótese): Criação de “ponte” entre conteúdo infantil e influência comportamental (uso de símbolos, testes com crianças)
- Ruth: Design inicial → cativante; versões posteriores → “viva demais” (notas de Halloway) e “perturbadora”.
- Joseph Cartwright:
- “Transcender gerações” → discurso usado para justificar turnos exaustivos e “sacrifícios criativos”. Existe uma ordem de destruição seletiva de documentos e algo mais…
A luva de couro preto em sua mão direita pesava mais do que deveria. Emilly ergueu os dedos lentamente, observando o modo como a luz amarelada refletia no material – uma barreira necessária, mas sufocante. O couro era fino, quase translúcido em certos pontos, mas suficiente para bloquear o contato direto.
— É o único jeito.
Com a outra mão, ela puxou a luva, a qual revelou uma cicatriz em forma de espiral na palma. A pele naquela região era mais clara, com um aspecto de algo que a tivesse consumido por dentro. O ar da sala se agitou, reconhecendo a exposição daquela parte dela.
— Não pense nas consequências.
A foto desbotada de Ryan estava sobre a mesa. Emilly estendeu a mão desprotegida, hesitando por um segundo – seu último suspiro de resistência – antes de tocar a fotografia.
O toque foi um raio.
A sala desmoronou. Em seu lugar, ergueu-se um cubículo estreito, paredes recobertas por símbolos que respiravam – círculos devorando triângulos, linhas serpenteando como veias sob a pele de um cadáver. Ryan estava lá, mas não o Ryan da foto. Este era um espectro de nervos expostos: mãos trêmulas esfaqueando o papel com uma caneta, traços convulsivos que rasgavam a folha em golpes espasmódicos.
— Ela está aqui. — disse, os olhos saltando das órbitas como bolas de vidro prestes a estilhaçar. — Você a vê, Joseph? Você a vê?
O cheiro de tinta podre e de suor azedo impregnava o ar e fez com que ela engasgasse, sentindo seus pulmões afundarem sob o peso de um oxigênio que não existia.
A segunda onda veio como um tsunami de sombras.
A sala deslizou para os lados, substituída por um corredor repleto do gemido de metal enferrujado. À frente, uma porta marcada a tinta descascada – 7B – sangrava ferrugem pelas bordas. Ryan estava de joelhos, a testa colada ao metal gelado, soluços escapando-lhe em arranhões.
— Não deveríamos…
Seguiam-no seres com membros alongados, torsos arqueados e dedos que se multiplicavam como tentáculos sob a luz ausente.
A cicatriz em sua palma incendiou-se. Emilly tentou gritar, mas a voz esbarrou em uma parede de agulhas. Seus dedos grudaram à foto, a tinta infiltrada em sua pele como tinta de polvo, venenosa e viva. A terceira visão explodiu em estilhaços.
Joseph emergiu do nevoeiro, a faca brilhando sob uma luz que não vinha de lugar nenhum. Diante dele, um espelho embaçado refletia não seu rosto, mas uma silhueta de pesadelo. Seus olhos eram como crateras de carvão, um sorriso que rasgava a face até as orelhas, dentes afiados pingando um líquido negro.
— Tudo acaba hoje.
O elo se rompeu com um estalo seco.
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