Capítulo 76 – Amor paternal doentio
Emilly foi arremessada para trás, tombando de costas. Seu corpo colidiu com outra cadeira, que caíra com um baque surdo. Os seus quadris bateram na prateleira de metal, e o mundo desabou em uma cacofonia de papel rasgado, dos quais os documentos voaram como pássaros ensanguentados.
A pancada nos quadris foi como um golpe de faca que se espalhou em ondas até os joelhos. Diante da dor, Emilly engasgou, cerrando os dentes em um ranger abafado. Era uma dor aguda e viva, como se farpas de metal tivessem cravado na sua carne. Por um instante, tudo que conseguiu fazer foi enrolar-se no chão, pressionando o ponto da lesão com as mãos e afundando os dedos na carne por acreditar que poderia amassar a dor até ela sumir. Não sumiu.
— Merda… — escapou-lhe entre os dentes, a voz um fio rouco.
O chão estava frio sob suas costas, e a poeira grudava em seu suor. Ela virou-se de lado, cuspindo um fio de saliva misturado ao gosto amargo do sangue – não se deu conta de que mordera a língua. Seus olhos arregalados fixaram-se na luva caída a meio metro de distância.
— Odeio quando isso acontece.
O mundo parou de girar aos poucos. Emilly arrastou-se para a frente apoiando-se nos cotovelos. Toda vez que movia os quadris, era como se levasse uma punhalada, ainda assim seus dedos alcançaram a luva. O toque do couro foi áspero e familiar, um alívio mínimo. Por fim, enfiou a mão direita dentro.
Para se erguer, agarrou-se à borda da mesa. Os músculos das pernas tremiam como cordas de violino sob tensão. Um passo. Dois. Apoiou-se na prateleira que a derrubara, os dedos enluvados marcando a poeira acumulada no metal.
A luz piscou, e naquele breve instante de escuridão, Emilly acreditou ter visto marcas sobre a superfície. Não era sangue, mas suor – ou algo mais. A superfície enferrujada brilhou por um instante, como se reagisse ao contato. Ela hesitou. Uma imagem se formava na ferrugem: linhas finas, como fios de cabelo, se entrelaçando em um triângulo invertido dentro de um círculo. O mesmo símbolo presente nos esboços de Ryan.
— Não é possível… — sussurrou, puxando a mão para trás.
A marca desapareceu, mas sua atenção foi capturada por algo no chão. Entre os papéis caídos, encontravam-se páginas específicas abertas. Dentre elas, três se destacavam.
A primeira era um contrato de licenciamento de 1995. Em sua margem superior, números de série foram riscados ferozmente, até que a tinta afundou no papel: 7, B, 9. Alguém tentara apagá-los, embora sem sucesso, já que a intenção de ocultação os tornava apenas mais explícitos.
O segundo era um relatório de manutenção. Nele, um mapa do sistema de ventilação exibia um detalhe estranho: uma passagem não oficial, marcada apenas como “Acesso Restrito”. Nenhuma estrutura deveria existir ali, todavia alguém a registrara. Era uma lembrança persistente, proposital ou descuidada.
O terceiro estava dobrado.
Emilly se abaixou, as pernas tremeram e seu quadril protestou com uma dor surda. Ela ignorou o incômodo e deslizou a mão enluvada pela parede ao seu lado. Algo na textura, uma leve vibração inquietante, fez com que ela franzisse a testa.
Com cuidado, pegou o papel dobrado e o desdobrou. Era um desenho infantil. O traço era rudimentar e desajeitado, mas direto: via-se uma porta grande com o número 7B e, ao lado dela, uma figura alta de olhos vazios segurando a mão de uma criança.
No canto inferior, estava a assinatura L.C.
O ar na sala pareceu pesar um pouco mais.
Emilly observou os olhos vazios da figura. Eram círculos escuros simples, que, no entanto, transmitia uma certa incomodidade por causa de sua ausência de expressão. Crianças não desenhavam olhos assim, a menos que quisessem transmitir alguma coisa.
Ela virou o papel contra a luz fraca e viu os vincos formados pelo lápis pressionado com força. A criança que desenhou aquilo não apenas imaginou essa figura. Ela a viu.
O estúdio possuía sua própria linhagem de assombrações. Corredores, salas e prateleiras repletas de fitas e documentos eram cápsulas do tempo de más decisões e consequências varridas para debaixo do tapete. Desse mar de registros esquecidos, aquele desenho destoava, soando mais verdadeiro do que qualquer documento formal.
— Pobre criança. Você fez a coisa certa por dar essa pista pra mim.
Suas palavras se dissiparam ao vento na sala de arquivos.
Ela olhou novamente para o número. 7B. Era um setor antigo do estúdio que, provavelmente, estava selado há anos. Mas, se alguém quisesse esconder algo, por que essa referência ainda estava lá?
A resposta estava na pilha de papéis caídos. Os rastros nunca desapareciam completamente. O contrato, o mapa de ventilação, o número riscado e agora o desenho… as peças começavam a se encaixar. Alguém tentou apagar 7B da existência, mas, de alguma forma, ele continuava ressurgindo. E havia algo lá dentro. Algo que uma criança viu. Algo que segurou sua mão.
Ela passou a língua pelos dentes e fechou os dedos ao redor da folha.
— Vou terminar o que você começou, Joseph.
A prateleira derrubada revelava mais do que o esperado. Na parede atrás dela, onde antes só havia tijolos descascados, marcas sutis se tornavam visíveis sob a luz oscilante da lanterna. Arranhões finos e profundos marcavam a alvenaria, correndo em diagonal em direção à saída da sala. A textura irregular dos sulcos dava a entender que não haviam sido feitos com ferramentas comuns. Não pareciam marcas de desgaste, tampouco rabiscos deixados por funcionários descuidados. Eram vestígios de algo mais instintivo, mais primitivo. Garras.
Andou para a saída da sala, os passos agora mais decididos.
O corredor se estendia à frente, ladeado por cartazes antigos. Personagens desgastados pelo tempo sorriam de volta para ela, ainda que suas cores desbotadas não conseguissem mais refletir o brilho publicitário de um tempo atrás. Benny, o Coelho, estava em quase todos eles, sempre presente, sempre olhando. No entanto, em alguns pôsteres, seus olhos estavam riscados com um “X” feito com caneta vermelha. A tinta ainda estava fresca.
Alguém fizera isso recentemente.
Ela estalou a língua, impaciente.
— Sutileza nunca foi o forte de vocês, né?
O eco de sua própria voz morreu no corredor, e um silêncio espesso se impôs.
A bifurcação surgiu à sua frente, imposta como uma encruzilhada de escolhas que ocorrera muito antes de sua chegada. O corredor à esquerda era um beco sem saída, afogado por um amontoado de caixas empilhadas e móveis inclinados, como esqueletos colapsados. Um bloqueio tão perfeito quanto proposital, feito para soterrar um passado inconveniente a todo custo. Mas foi o da direita que a fez parar.
O ar estava diferente ali. O calor pegajoso do resto do estúdio não se espalhava até aquele trecho. Em vez disso, uma frieza súbita emergia da penumbra, circulando como uma corrente invisível que roçava sua pele como dedos fantasmagóricos. Era um frio sem origem aparente, cortante, como se não pertencesse àquele espaço. Talvez o próprio ar hesitasse em ocupar aquele território.
Conforme avançava, os arranhões tornavam-se mais evidentes. Ela entendeu que poderiam ser linhas indicando o caminho.
A luz tremeluzente das lâmpadas fluorescentes fazia com que sombras dançassem sobre aquelas cicatrizes murais, proporcionando-lhes um efeito vívido. Emilly deslizou a ponta dos dedos enluvados sobre uma das marcas mais profundas. As reentrâncias tinham textura irregular, algo entre dentado e afiado demais para ser humano, escavado ali.
Ela pressionou os lábios.
— Muito gentil da sua parte me deixar um mapa.
Continuou seguindo as marcas, que ficaram mais densas e frenéticas à medida que o corredor se estreitava. Alguma coisa, ou alguém, passara muitas vezes por ali, sempre no mesmo trajeto, sempre registrando sua passagem. Tentava dizer algo. Talvez quisesse que ela chegasse.
A essa altura, o frio já era praticamente insuportável. Não era o tipo de frio que vinha do ar-condicionado ou de uma noite fria de inverno, mas um frio que se enraizava nos ossos, escorria pela coluna e fazia o corpo se encolher em uma defesa instintiva contra um perigo que não se via.
Foi então que ela avistou a porta.
O 7B estava diante dela, encravado no fim do corredor como um dente perdido na boca de um morto. A tinta descascada mal escondia o passado do local. O letreiro metálico, parafusado acima do batente, fora pintado de preto em algum momento, numa tentativa fracassada de apagá-lo da existência. Ainda assim, o número persistia. Uma marca que recusava-se a ser esquecida.
Ao seu redor, as marcas de garras se acumulavam em padrões concêntricos, irradiando-se a partir da porta como se alguém tivesse tentado entrar. Ou sair.
Emilly parou diante da madeira envelhecida e suspirou, consciente do peso daquele momento.
— Você não quer que eu abra, não é? Sinto muito.
Ela girou a maçaneta. A porta resistiu à abertura por um segundo, empurrada por algo do outro lado, como se houvesse algo tentando mantê-la fechada. Então, se abriu.
O cômodo era menor do que imaginava. Era um escritório, ou ao menos já fora um, embora agora parecesse uma cripta de papel e lembranças apodrecidas. Pilhas de documentos e pastas se espalhavam pelos móveis caídos, e uma mesa ainda intacta, na parede oposta, abrigava registros amarelados empilhados. O lugar como um todo tinha a aparência de um local abandonado justamente no meio de algo crucial, congelado no tempo, interrompido antes de seu desfecho.
Emilly andou devagar, varrendo os detalhes com os olhos. Nos cantos, as caixas de arquivo estavam reviradas, assim como o chão, que estava coberto por papéis espalhados, em uma bagunça que não podia ser considerada acidental. Era um rastro de desespero.
No centro do, uma mesa longa e maciça sustentava a pilha de informações que, de algum modo, resistira ao esquecimento. Emilly se aproximou, ajustando a lanterna presa no coldre do ombro para iluminar as páginas sem tocá-las diretamente. Antes de iniciar a análise, respirou fundo, disciplinando o ritmo cardíaco. Precisava manter o foco.
As primeiras páginas eram rotineiras – organogramas administrativos, memorandos, formulários de contratação. Mas logo emergia um padrão recorrente: Lillian Cartwright.
— Pelo sobrenome, imagino que seja sua filha.
O nome dela aparecia em campos onde nunca deveria estar. Relatórios médicos, gráficos de acompanhamento neurológico, laudos psiquiátricos infantis. Os documentos datavam de um período anterior à sua morte. Emilly franziu a testa.
Ela folheou o documento, separando mentalmente as informações. Testes cognitivos de projeção imagética, análise do comportamento criativo em estado dissociativo, respostas neuroelétricas sob estímulo audiovisual prolongado. Termos técnicos que, noutro contexto, fariam parte de um estudo de ponta. Porém, aquilo não era um laboratório acadêmico. Era o escritório de um estúdio de animação e Lillian não era paciente, tampouco voluntária.
— Que merda vocês estavam fazendo com uma criança?
Emilly manteve o semblante impassível, embora seu estômago se contraísse com o peso daquela constatação. A ética profissional exigia distanciamento, mas nem mesmo ela estava imune à sensação de violação que cada página transpirava.
Puxou então um envelope pardo, selado e carimbado como Confidencial. Dentro, um recorte de jornal. A matéria, amarelada e quebradiça, trazia a versão oficial:
— Filha do visionário Joseph Cartwright falece em circunstâncias trágicas no Wonderheart Studio. Causa da morte: convulsão súbita resultante de condição neurológica preexistente.
Emilly expirou lentamente. A mentira era grosseira quando cruzada com os dados que agora tinha em mãos. O que se apresentava como um acidente trágico era, em linguagem clínica, uma cobertura primária para procedimentos experimentais não regulamentados. A conclusão se impunha com lógica fria, onde, na verdade, Joseph havia transformado sua própria filha no sujeito de um protocolo radical e invasivo.
O próximo arquivo era devastador. Um laudo de necropsia, assinado por um patologista anônimo, detalhava com objetividade perturbadora:
— Perfurações simétricas no lobo temporal bilateral, consistentes com inserção de eletrodos invasivos. Hemorragia intracraniana resultante de falha no sistema de contenção hemostática. Ausência de patologias degenerativas ou antecedentes epiléticos.
Lillian não sofrera uma convulsão. Ela fora submetida a um procedimento neurológico não homologado que culminara em falha sistêmica e hemorragia fatal.
Por um momento, Emilly fechou os olhos, para processar a informação médica, sem se deixar afetar emocionalmente. Quando os abriu novamente, o seu olhar era mais firme, embora uma sombra pairasse sobre ele. Ela já tinha visto horrores em relatórios de campo, mas este era diferente. A ciência fora sequestrada por um delírio de controle absoluto – e, pior ainda, disfarçada de amor paternal.
Prosseguiu. Encontrou um caderno de anotações, de couro ressecado, com o nome de Joseph gravado em baixo-relevo. As páginas internas eram uma progressão gradual do raciocínio dele, descendo, com precisão metódica, em direção à loucura.
— A criatividade é a manifestação da essência pura da consciência. Se podemos isolar esta essência, poderemos preservá-la, mesmo que o corpo falhe.
Os esboços que acompanhavam o texto mostravam esquemas de sinapses, sistemas nervosos em rede, conectores biomecânicos e, finalmente, a estrutura interna de uma boneca articulada.
— Era a mesma boneca que Jake chutou.
A caligrafia de Joseph se tornava cada vez mais urgente nas páginas finais, com frases repetidas em uma cadência quase ritualística.
— O corpo é um meio. A alma é a centelha.
— Ela falará novamente. Caminhará novamente.
E então, o ápice do delírio: o ritual.
Em um documento intitulado Protocolo de Transposição de Consciência, Joseph descrevia a necessidade de um catalisador humano – uma “oferta de vida plena” que servisse como receptáculo primário. A análise dos requisitos para o “veículo” indicava Alan Reynolds, um funcionário de nível operacional, escolhido, segundo Joseph, por apresentar “alta sensibilidade empática e propensão ao medo genuíno”.
— O medo é a matéria-prima da transição. A energia negativa que abre a porta.
Reynolds desaparecera semanas após a morte de Lillian. Agora, Emilly sabia por quê.
Endireitou-se, respirando fundo. Aquela sala não era apenas um arquivo esquecido. Não passava de um laboratório clandestino. Um mausoléu onde a ciência, o luto e a obsessão se fundiram num ato irreversível de negação da morte. O que Joseph Cartwright deixara ali não era apenas documentação. Trazia consigo uma prova material de que, em nome do amor – ou da incapacidade de aceitar a perda – um homem brilhante atravessara a linha que separa o investigador do carrasco.
— Se a transposição realmente foi concluída, o receptáculo permanece ativo. E isso significa que Lillian… ou algo que alega ser ela… ainda caminha por aqui.
O peso dos documentos havia sido realocado com o zíper da pasta fechando-se num deslizar que cortou o ar como uma linha reta. Emilly deixou a mão repousar sobre ela, tomando uma profunda respiração, numa tentativa de recuperar o fôlego. Mas foi então que ouviu algo que não era um ruído estranho de engrenagens antigas nem o habitual rangido de estruturas fatigadas. Era algo mais… Íntimo. Pequeno. Um sussurrar abafado de tecido que roçava no chão.
Ela permaneceu imóvel. Instinto de quem já aprendera a ouvir o que a razão preferia ignorar. O som repetiu-se, um tap-tap hesitante, como patinhas testando terreno desconhecido, seguido por um arrastar leve, sutil, de algo raspando em papel molhado.
Virou lentamente o rosto, deixando que a lanterna desenhasse um arco ponderado até que a luz se detivesse sobre a forma.
— O quê?
Um coelho. Branco, como algodão envelhecido. Manchas acinzentadas salpicavam-lhe o dorso, semelhantes a fuligem sobre neve derretida. Os olhos vermelhos tinham um brilho opaco, quase de vidro, mas havia vida neles. Quietude. E uma fixidez desconcertante.
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