Capítulo 77 – Lino, o coelho
Emilly permaneceu onde estava, o olhar dela capturado por aquela criatura deslocada no tempo. No meio do que fora um laboratório de obsessões e misérias humanas, havia um animal. Puro. Sem entender nada daquilo.
Por um breve momento, seus ombros relaxaram.
— O que você está fazendo aqui? — A sua voz saiu num tom mais baixo do que pretendia. Transparecia nela um calor antigo, uma ternura há muito esquecida.
Deixou-se ajoelhar, com a lanterna que descia junto com o movimento. O coelho não fugiu. Manteve-se parado, de semblante plácido, o focinho ligeiramente tremendo, farejando o mundo como se este não passasse de um espaço vazio.
Emilly estendeu a mão devagar.
— Você é real, não é? — sussurrou, com um sorriso curto, apertado pelas circunstâncias.
Ao tocar na pelagem com os dedos, ela ficou surpreendida com a textura. Mesmo sob as luvas de couro, conseguia sentir o seu calor. Um calor brando e pulsante, contrário à lógica daquele lugar morto. Os pelos eram suaves, mas por baixo deles notou uma densidade anormal para uma criatura tão pequena.
Ela o ergueu, sentindo o peso. Ele era demasiado pesado. Tinha uma densidade diferente, como se sustentasse mais do que simples carne.
Por um momento, o mundo inteiro ficou mais lento. Existia algo naquela textura quente e macia que trazia à sua pele uma lembrança do passado. Um calor que acalmava. Como se, de repente, ela não estivesse naquele quarto úmido e decadente, mas ajoelhada no jardim atrás da casa, onde a grama subia mais alto do que suas mãos podiam alcançar.
Emilly fechou os olhos, permitindo-se resgatar aquilo.
Lino. Esse era o nome que dera ao seu primeiro coelho. Ele também possuía manchas bege nas orelhas e um círculo ao redor de um dos olhos. O pai dela o comparava a um brinquedo abandonado ao sol. Ela dedicava horas a penteá-lo com os dedos, alimentando-o com folhas de hortelã roubadas do jardim da mãe. Às vezes, Lino tremia, mas Emilly acreditava que era apenas por causa do frio ou do medo. Naquela idade, ela não compreendia a existência de medo.
Enquanto garotinha, sempre gostou de tocar as coisas. De sentir. Explorar o mundo com as pontas dos dedos, um mundo que, aos seus olhos, era muito distante para pertencer a si mesma.
Em um dia de verão, ajoelhada junto ao cercado, recordava-se da aspereza da pedra sob os joelhos e do cheiro da terra úmida. Lino estava deitado de costas, respirando de maneira errática, o peito oscilando em solavancos irregulares. Pensou que estivesse cansado, ou talvez com fome.
Ela estendeu a mão, e deslizou os dedos finos ao longo do dorso do animal, apreciando a suavidade familiar de seu pelo. No entanto, algo estava diferente. Ela ignorou isso. Passou a mão sobre ele novamente. E mais uma vez. Até que o pelo começou a cair. No início, fios soltos, como se o vento tivesse arrancado o que o calor não conseguiu. Mais tarde, pedaços inteiros caíram da pele. A carne por baixo não era normal. Era cinza, depois enegrecida, rachando como madeira seca ao contato de seus dedos.
Não gritou. Ficou sentada, sem dizer nada. As suas mãos estavam manchadas de algo que não era sangue, mas sim uma substância viscosa e espessa, uma espécie de material que dissolvia no ar, deixando um cheiro demasiado doce. O pai correu ao ouvi-la chamar, mas já era tarde.
— Não foi culpa sua. — Ele dissera.
Ainda assim, ela estava ciente. Naquela manhã, ela acordou com o som de algo se desintegrando entre suas mãos. Ela tocou seu próprio braço, procurando uma resposta. Sua pele, porém, permaneceu inalterada. Apenas o mundo ao seu redor se deteriorou quando ela estendeu a mão.
Ao longo dos anos, ela havia aprendido a esconder isso. Equipamento, distância, treinamento. Seu contato era arriscado. O que ela possuía era arriscado.
Agora, naquele laboratório abandonado, com coelho em mãos e a lembrança que a arrancou de suas raízes profundas, ela sentiu tudo voltar a si. A delicadeza do pelo sob seus dedos, o calor suave, a rigidez crescente. Ele a levantou um pouco, seus olhos marejaram sem que percebesse.
— Eu não vou machucar você… — disse em voz baixa, quase um pedido, quase uma súplica para si mesma. — Eu sinto muito, Lino.
O coelho, porém, não se mexia. Estava a observá-la. Por um segundo, ela jurou ter visto compreensão naquele olhar ou algo semelhante. Algo antigo demais para habitar olhos tão pequenos. Depois, a cabeça dele inclinou-se levemente, com um clique sutil no pescoço, como uma engrenagem a ser travada.
O calor sob suas mãos aumentou. Um calor úmido.
Ela afastou o coelho do peito e o ergueu diante do rosto, examinando-o à luz. Os pelos ao redor das patas e do queixo estavam… escuros. Mancha de quê? Sangue?
Olhou mais de perto. O vermelho era escuro demais. Quase negro. A consistência lembrava óleo coagulado, grudando nos pelos como piche viscoso.
Emilly sentiu o coração desacelerar. Não por alívio. Mas porque a consciência entrava em modo defensivo.
— O que fizeram com você? Ou… o que é você?
O coelho respondeu da única maneira que podia.
Seus músculos, repentinamente, estalavam sob os dedos dela. Um som repulsivo, como tecido ressecado sendo puxado ao limite. Pequenas rachaduras negras surgiram ao longo da coluna do animal, espalhando-se como fissuras em porcelana antiga. Os pelos rarearam nas linhas abertas, expondo carne bruta. Mas não carne normal. Era algo entre carne e outra coisa – um tecido vivo de textura viscosa, coberto de veios pulsantes que corriam em espirais como raízes em busca de solo.
Seu corpo reagiu antes do cérebro assimilar. Deixou-o cair e se afastou.
As patas traseiras do coelho começaram a esticar, os ossos dentro delas deformando-se com estalidos molhados. As garras cresceram, primeiro sutis, depois afiadas e curvas como anzóis enferrujados. As orelhas despencaram num movimento desajeitado, fundindo-se na base da cabeça até que dali emergiram duas membranas translúcidas, vibrando, como brânquias pulsantes.
Seu maxilar rachou no centro, dividindo-se como uma armadilha de aço. Os dentes alargaram-se, tornando-se múltiplas lâminas calcificadas, dispostas em anéis concêntricos dentro de uma garganta que se expandia além do natural. A mandíbula abriu-se para os lados, expondo tecidos internos que giravam em padrões lentos, como uma máquina viva.
Emilly prendeu a respiração. O cheiro que emanava dali era um perfume corrompido – um travo adocicado, nauseante, como carne estragada escondida sob camadas de flores artificiais.
— Que coisa…
Num reflexo desesperado, chutou-a rapidamente. A criatura bateu contra a parede e caiu. Ergueu-se com uma facilidade digna de um molusco adaptado à terra, mais do que de um animal terrestre. Deslizava sobre membros reconfigurados, impulsionado por espasmos ritmados, com articulações a torcerem-se além do aceitável.
Emilly cambaleou para trás, quase tropeçando numa das caixas reviradas.
— Não! Não, não, não… — balbuciou, como se a repetição da palavra pudesse barrar o avanço do impossível.
Ela tentava ser racional. Era treinada para isso. Controle emocional. Leitura do ambiente. Análise objetiva. Quantas vezes ouvira aquilo repetido em sua formação?
— Você é a parede entre a lógica e o abismo, Emilly.
Neste caso, porém, a parede não era sólida. Era uma rachadura. E tudo do outro lado se derramava sobre ela. Queria correr. Queria gritar, agir, reagir. Como se a culpa da infância se tivesse entranhado nos músculos, as pernas estavam pesadas, aprisionando-a. A sensação de impotência era insuportável e o pânico começava a instalar-se no seu estômago como um ácido corrosivo.
“Não é o mesmo coelho. Não é o mesmo!”
Embora tentasse convencer-se, a linha entre o passado e o presente tornava-se cada vez mais frágil, semelhante a uma gota de água. Ela via o Lino, deitado e à beira da morte, todas as vezes que piscava os olhos. Sentia novamente o calor seco do pelo que caía em tufos, a pele partida como terra árida sob as suas mãos de criança.
E agora suas mãos de adulta estavam vazias. Vazias e inúteis. Foi o instinto, não a razão, que a moveu.
Emilly agarrou uma das pranchetas que estavam no chão e a arremessou. O objeto cortou o ar e atingiu a criatura no crânio com um som seco, um estalo mais de carne do que de osso. Não houve grito. Não houve reação de dor. Apenas o silêncio momentâneo, antes de o pescoço se realinhar com um estalo.
Deu um passo para trás. Outro. Mas não havia muito para onde ir. Atrás de si, o armário de arquivos parecia uma lápide. E, à frente, o monstro avançava, mais rápido, cada movimento como um arremesso de carne sobre carne.
Ela sentiu os dedos perderem a força. Sentiu a garganta se fechar. Mas mesmo quando tudo nela pedia que desmoronasse, ela encontrou um fio de racionalidade.
“Controle a respiração.”
Se havia algo que aprendera depois de Lino era que ela podia escolher. Ela podia, ao menos, tentar.
O monstro baixou a cabeça, preparando-se para o salto. A mandíbula foi dividida em duas partes, exibindo dentes finos e abundantes demais, dispostos como agulhas.
Emilly reteve o ar por um momento e deslizou a mão até a parte superior da luva da mão direita. Os dedos tremeram, porém ela os impulsionou com um puxão vigoroso, desprendendo sua pele do envoltório que a mantinha sob controle.
A mão despida inalou o ar frio do ambiente. A palma dela, quando exposta, pareceu vibrante de uma maneira que não deveria.
O coelho deu um salto.
Emilly levantou a mão. A mão nua o segurou pela cabeça suspensa no ar. Os dedos se fecharam em torno do crânio disforme. Por um segundo – um ínfimo segundo – ela sentiu a textura da pele quente, elástica e trêmula. Depois, tudo mudou.
Foi como tocar um tronco de madeira que apodrecia por dentro. O corpo do coelho estremeceu violentamente em suas mãos. As fibras da carne começaram a se degradar em um processo horrível, acelerado demais para ser natural. A pele amoleceu, em seguida rachou, revelando camadas de músculo que se desfaziam como tecido carcomido. Veias estouraram em filetes escuros, enquanto ossos se tornavam porosos e moles, afundando sob a pressão de seus dedos.
O odor de amônia e carne assada permeou o ambiente, cortante como um machado.
Mas Emilly não largou. As lágrimas ardiam nos olhos, a memória de Lino misturando-se à visão do que acontecia agora. Era a mesma coisa. A morte lenta. A degradação sob seu toque. Uma execução que ela não queria, mas que fazia.
— Eu não queria isso… — sussurrou. — Eu não queria isso de novo.
Não havia mais escolha.
Com um gesto violento, ela girou o corpo e atirou o que sobrou do coelho contra a parte inferior do armário de ferro. O impacto foi forte, e um som denso ressoou quando pedaços de osso, já debilitados, se quebraram como vidro mal curado. Um pedaço de carne escorregou por sua mão, molhada a manga da blusa.
Ergueu o que restava do corpo mais uma vez, os dedos cravados no que um dia fora o crânio do animal. Bateu contra a borda de uma mesa próxima, o tampo de metal vibrando com a força do impacto. Havia algo de horrível naquele momento, não apenas pelo ato em si, mas pela necessidade que a conduzia. Pelo peso em seu coração enquanto continuava.
Emilly finalmente lançou o que restava ao chão.
A coisa se contorceu, quebrada e morrendo. O corpo já não lembrava mais nada que pudesse ser chamado de vida. Estava degradado, como se a própria essência tivesse sido corrompida. As patas tremiam em espasmos sem propósito, e o que restava da mandíbula batia involuntariamente, os dentes rangendo como pequenas facas batendo umas nas outras.
Caiu de joelhos logo depois, o corpo inteiro tremendo. A mão nua estava coberta por uma película pegajosa e escura. Sentia a própria pele latejando sob uma dor surda, mas não tirou os olhos do coelho até ele parar de se mover por completo.
Por um momento, tudo ficou quieto. Quieto demais.
Ela queria respirar fundo, mas o ar parecia pesado demais. As memórias de Lino estavam ali, frescas, misturadas ao que acabara de fazer. A vergonha. A dor. A culpa. Como um poço sem fundo onde, mais uma vez, ela tinha escolhido matar para sobreviver.
Mas tinha funcionado. Ela estava viva.
Por ora.
Ainda ajoelhada, olhou ao redor da sala. A luz artificial vibrava com um zumbido incômodo. Os papéis espalhados pareciam agora ainda mais pálidos, como se houvessem presenciado algo proibido.
Ela passou a mão enluvada no rosto, depois olhou para a outra, a mão nua. Um calafrio subiu por sua espinha. O que ela era capaz de fazer… aquilo que ela tentava esconder… estava ali, pulsando sob a pele.
— Nunca mais, Lino… — murmurou. — Nunca mais.
O silêncio que se seguiu foi quase reconfortante. Quase.
Até que uma voz rasgou o ar.
— Benny?
Foi um chamado, alto e desprovido de emoção. Não era um grito, nem uma súplica. Era como alguém chamando um cachorro de volta para casa depois de um dia chuvoso. Algo banal. Quase entediado.
Emilly virou o rosto devagar, os músculos do pescoço protestando como cordas esticadas demais.
O som vinha da entrada da sala. E junto dele… algo.
A criatura que emergiu da entrada inicialmente se apresentou como uma mancha na parede, um traço de tinta preta que se sobressaía contra o concreto envelhecido. Gradualmente, o contorno se expandiu, ganhando forma – longas orelhas pontudas, um largo sorriso branco que brilhava no escuro, olhos grandes e bem desenhados, semelhantes aos de um personagem de um desenho animado.
Existia algo incrivelmente liso e imaculado naquela figura negra. Como se o ser não fizesse parte do mesmo universo onde Emilly se encontrava. Correspondia a uma recorrência, uma imagem de sombra recortada e colada em um contexto tridimensional. O corpo era atlético, quase demasiado fino para aparentar funcionalidade, e se movia com um balanço suave, sem esforço, igual a a fumaça atada a uma marionete.
Ele ingressou com passos tranquilos, as pontas dos pés arranhando o chão com um ruído suave, igual a um pequeno rasgo. Os olhos se voltaram para o que sobrou do coelho caído no chão. Por um instante, fixaram-se naquela carne em decomposição que ainda ardia com o toque corrosivo de Emilly.
— Ah… — A criatura murmurou, o sorriso abrindo-se ainda mais. — Benny.
Não havia tristeza na voz. Não havia raiva. Era só uma constatação vazia, como se estivesse olhando para um quadro que fora arrancado da parede e partido ao meio. Havia um quê de desagrado, sim. Um leve incômodo, talvez. Como se alguém tivesse derrubado um copo de leite no chão limpo.
Ele virou a cabeça na direção oposta. Não houve estalido, nem qualquer ruído proveniente de ossos ou cartilagens. Era semelhante ao ato de dobrar uma folha de papel. Os olhos se direcionaram para Emilly, focando nela.
Então, ele observou. Ou notou. Ou soube.
Eles permaneceram alguns instantes assim, olhando um para o outro. Ela permanecia ajoelhada, com as mãos sujas de todas as suas ações. Ele, parado, simplesmente a observando.
— Você, hein? — disse, a voz mansa, quase divertida. Havia um tom preguiçoso, indiferente. Como quem achasse interessante, mas não o bastante para se importar muito. — Foi você.
Ele suspirou, como se aquilo fosse um leve aborrecimento. Depois, agachou-se ao lado dos restos de Benny, cutucando-os com a ponta de um dedo que terminava em nada. Não havia unha, não havia carne. Era apenas um dedo preto que afundava levemente na carne morta e deformada.
— Não que ele fosse grande coisa… — continuou. — Mas eu gostava dele.
O sorriso dele não mudou. Permaneceu ali, branco e largo, como uma rachadura impossível numa máscara de sombra.
Emilly tentou se erguer, mas as pernas estavam dormentes. Seu coração batia com força demais, como se quisesse quebrar suas costelas de dentro para fora.
— Quem… quem é você? — perguntou, a voz rouca e quebradiça.
A criatura olhou para ela outra vez, e houve algo de reconhecimento nos olhos desenhados. Um brilho pequeno, frio.
— Eu? — Ele se inclinou para a frente, o rosto chegando perto demais. Emilly pôde sentir um frio seco, quase sem cheiro. — Eu sou quem limpa a bagunça.
E ficou ali, observando-a mais alguns segundos, antes de se endireitar novamente, ajeitando-se.
— Mas hoje… — disse, dando de ombros, com um humor que beirava a despretensão — … acho que vou só ver o que acontece.
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