Capítulo 87 - Cemitério de ideias
Nicholas caminhava pelo corredor com passos justos e rápidos, embora não apressados. Sob seus ombros robustos, levava o fardo inconfessável da missão, com o rosto impassível, mais como uma máscara do que como um semblante. Sam estava atrás com um passo mais inseguro. Seu caminhar já não possuía a mesma disciplina – ocasionalmente tropeçava nas irregularidades do piso, e sua respiração, cada vez mais curta, denotava tensão. O corpo todo suplicava por repouso, mas ele tinha consciência de que pedir isso a Nicholas seria tão inútil quanto tentar acalmar o vento.
Engoliu em seco, olhando rapidamente suas mãos, ainda com marcas escuras do que havia observado no auditório. Mesmo ao pressionar os dedos contra a calça, o suor seco persistia, ficando preso nas linhas da pele.
— Podemos parar?
Nicholas não respondeu, apenas girou a cabeça na sua direção, avaliando-o com aqueles olhos que nunca deixavam transparecer verdadeira surpresa com nada.
Sam respirou fundo. Mesmo que não quisesse ser visto como fraco, seu peito estava pesado, como se cada inspiração exigisse um esforço redobrado.
— Só por um minuto. — insistiu. — Eu preciso… preciso respirar.
O homem parou. Não por escolha, mas porque seguir adiante significaria arrastar Sam até o limite. Seus ombros subiam e desciam depressa demais, e, apesar da penumbra do corredor, o suor em sua testa denunciava o esforço exaustivo.
Sem dizer uma palavra, Nicholas apoiou-se contra a parede e cruzou os braços, num gesto que poderia passar por concessão, mas que expressava apenas a impaciência de quem aguarda sem alternativa.
Sam recuou até uma das portas e testou a maçaneta. Ela estava destrancada. Com um movimento rápido, abriu-a e entrou. O espaço fora um escritório, abandonado agora – prateleiras tortas, gavetas reviradas, papéis rasgados espalhados pelo chão. Embora não fosse seguro tampouco acolhedor, servia como abrigo por ora.
Se acomodou no chão, apoiando as costas na parede, com os braços entrelaçados nos joelhos dobrados. Por um instante, fechou os olhos, tentando afastar as imagens que persistiam em permanecer em sua mente: os corpos no auditório, as expressões congeladas de horror, a brutalidade silenciosa de uma situação que não deveria ter acontecido.
Nicholas ficou em pé, próximo à porta, observando-o. Os seus olhos vasculharam a sala, documentando cada pormenor em poucos segundos. Não havia indícios de ameaças no interior.
— Você já viu coisas assim antes? — Sam perguntou, sem abrir os olhos. Sua voz era um fio cansado de som.
A resposta era óbvia, mas a pergunta não era apenas sobre experiência. O garoto queria saber se aquilo algum dia ficava mais fácil de lidar.
— Já vi coisas piores.
Sam soltou uma risada curta, sem humor.
— Que motivador.
O silêncio se estabeleceu entre eles, sendo apenas perturbado pelo ruído das lâmpadas oscilando do lado de fora. Esfregou as mãos no rosto antes de encará-lo.
— Como você lida com isso? Com… essas coisas?
Nicholas demorou alguns instantes antes de responder. Ele não era uma pessoa que gostava de conversar sobre emoções. Porém, algo nele, na maneira como o olhava naquele momento, fazia com que a resposta parecesse inescapável.
— Você não lida. Você aprende a continuar andando. Ou não aprende, e acaba como os que ficaram para trás.
A frieza das palavras como uma lâmina se fez sentir. Embora houvesse verdade nelas. Uma realidade que ele se recusava a aceitar, mas que, no íntimo, começava a compreender.
— Isso é uma merda. — murmurou.
O homem o fitava de esguelha, como quem mede a resistência de algo prestes a ceder. Um leve movimento de cabeça — sutil a ponto de quase passar despercebido — serviu como resposta muda. Talvez fosse concordância, talvez apenas a aceitação de um fato incontestável. Não havia necessidade de reafirmar o que já se impunha por si só.
Permaneceram nessa condição por minutos completos. Sam virou a cabeça para trás, apoiando-a na parede, enquanto seus olhos percorriam o teto repleto de infiltrações. As fissuras criavam formas irregulares, rachaduras finas e espalhadas que se ramificaram em direções desordenadas, formando uma espécie de estradas em um mapa rasurado.
“E se a gente nunca tivesse vindo pra cá, como seria? Eu ainda estaria com eles, com certeza.”
Engoliu em seco. Ainda queria encontrar Jake. Ainda precisava. Mas uma parte dele, por menor que fosse, sabia que sem Nicholas ao seu lado, provavelmente não teria chegado tão longe. Sentia um nó se formar em sua garganta, um aperto desconhecido, algo entre gratidão e constrangimento.
— Obrigado por não me deixar para trás.
As palavras saíram sem esforço, sem ensaio, como um pensamento que escapou antes que pudesse reconsiderá-lo. Não havia segundas intenções, nem um pedido oculto de aprovação. Apenas um reconhecimento simples, direto.
Pôde sentir o olhar dele sobre si.
A princípio, não houve resposta. Apenas o farfalhar sutil do tecido quando o agente ajustou a postura. Uma pausa longa demais para ser ignorada, mas curta o suficiente para não parecer um completo desprezo.
— Não foi por você. — respondeu por fim.
Não era mentira. Não completamente. Mas havia algo ali, algo que escapava àquela explicação simplista. Um fiapo de algo mais profundo que Nicholas não estava disposto a admitir nem para si mesmo.
— Sempre tão simpático.
— Apenas honesto.
Abriu um dos olhos e lançou um olhar enviesado na sua direção, que permanecia tão impassível quanto antes.
— Honesto? Sei… — Tomou a cabeça de lado contra a parede, um pequeno suspiro escapando. — Você sempre foi assim ou só gosta de ser difícil?
Arqueou levemente a sobrancelha, o único indício de que a provocação não passou despercebida.
— Isso importa?
— Talvez. Sei lá. — Deu de ombros. — Você gasta tanta energia se mantendo fechado. Deve ser exaustivo.
Dessa vez, o silêncio que se instalou carregava um peso diferente.
Sam aproveitou a abertura.
— Já fui assim também, sabia? Não tanto quanto você, claro, mas… já achei que falar sobre mim era perda de tempo.
Seus dedos passavam sobre o chão, pequenos gestos inconscientes que preenchiam as pausas entre as palavras.
— Minha mãe dizia que o mundo não tem espaço pra gente fraca. Que a vida não espera ninguém. — Um sorriso breve, sem alegria, cruzou seu rosto. — Acho que foi a única coisa em que ela realmente acreditava.
Nicholas ficou parado, mas seus olhos se tornaram mais atentos, demonstrando um interesse que antes não se manifestava.
— E você acreditava?
Sam soltou um suspiro, passando a língua pelos lábios antes de responder.
— Acho que eu queria acreditar nela. Queria que ela estivesse certa. Porque, se não estivesse, então significava que tudo que passamos foi à toa. Ela trabalhava como se o amanhã não existisse. Saía cedo, voltava tarde. Sempre cheirando a cigarro e café barato. Dizia que um dia as coisas iam melhorar, que eu ia ter uma casa de verdade. Um lugar onde ninguém podia me tirar à força.
Os olhos vagaram pelo espaço à sua frente, mas não enxergavam mais o presente.
— E melhoraram?
A pergunta de Nicholas veio sem ironia, sem julgamento. Apenas uma curiosidade contida.
Sam riu baixinho, um som cansado.
— Não.
A resposta ficou suspensa entre os dois, densa como a umidade no ar.
Por fim, o agente desviou o olhar, fixando-se em algo na parede à sua frente.
— Eu nunca tive isso.
Sam franziu o cenho, esperando que prosseguisse, contudo Nicholas já disse o bastante. Não houve necessidade de elaborar mais. A falta de palavras descrevia mais do que qualquer explicação poderia transmitir.
— Então você entende.
Não era uma pergunta. Era uma constatação.
O homem apenas assentiu, seu olhar perdido em pensamentos que jamais colocaria em voz alta.
Sam inclinou a cabeça levemente, estudando-o.
— O que você queria, então?
Um olhar de advertência foi lançado em sua direção, como se deixasse claro que essa não era uma conversa que pretendia levar adiante.
Mas, surpreendentemente, veio uma resposta.
— Nunca me dei ao luxo de querer.
Sam sorriu de lado.
— Isso é só um jeito dramático de dizer que sim.
O garoto se ajeitou, recostando-se melhor contra a parede.
— Um dia, vou descobrir o que você realmente quer.
O agente soltou um suspiro baixo, passando a mão pelo rosto antes de fechar os olhos por um breve instante.
— Boa sorte com isso.
Por um breve instante, a barreira entre os dois pareceu um pouco menos intransponível.
— Levanta. O tempo acabou.
Sam bufou, mas obedeceu, esticando os braços antes de se levantar. Ainda se sentia um pouco zonzo, mas pelo menos agora conseguia seguir sem sentir que o mundo estava desmoronando sob seus pés.
— Fique perto. — disse, sem olhar para trás.
Dessa vez, Sam não precisou ser lembrado duas vezes.
O corredor diante deles era diferente de todos os outros que haviam atravessado até agora. Não era apenas o cheiro espesso de grafite, tinta ressecada e mofo que se agarrava ao ar como um espectro antigo – era a presença dos desenhos. Eles cobriam as paredes de cima a baixo, presos por pregos enferrujados e pedaços de fita adesiva desbotada.
Sempre que uma brisa passava pelo corredor, as folhas amareladas produziam um ruído sussurrado. Algumas apresentavam dobras, rasgos nos cantos e as bordas se desintegravam com o menor toque. Outras eram apenas reflexos do que já foram, rabiscos irremediavelmente perdidos no papel com o tempo. Personagens sem faces, cenários que se desfaziam antes de ganharem forma, seres cujos corpos ultrapassavam as fronteiras da página, criados por um artista que não soube concluí-los.
Sam parou, contemplando os esboços enquanto mantinha uma expressão difícil de decifrar. Talvez fosse fascínio. Ou um incômodo profundo que ele não esperava sentir. Levantou uma das mãos e deslizou os dedos por um desenho especialmente apagado, cuja textura de grafite quase não se percebia sob sua pele.
— Isso é meio deprimente — murmurou.
Nicholas olhou ao redor, analisando o que Sam via. Para ele, tudo aquilo parecia apenas uma pilha de rabiscos descartados, esquecidos. Mas Sam enxergava algo mais.
— O quê?
— Sei lá… é como um cemitério de ideias.
— Aí é exagero.
— Mas não tá errado, né? — Riu-se de leve. Puxou um dos papéis da parede e o ergueu para a luz fraca do corredor. — Olha isso. O traço tá meio inacabado, mas dá pra ver a ideia. O cara queria desenhar alguma coisa aqui, mas parou no meio do caminho.
O personagem tinha olhos grandes e expressão curiosa, mas o corpo terminava abruptamente, como se o artista tivesse perdido o interesse ou decidido que aquele esboço não era bom o suficiente.
— Provavelmente não serviu pro que queriam. — disse Nicholas.
— Ou ninguém nunca deu chance pra ele existir.
A resposta de Sam ficou no ar por alguns segundos. Ele soltou um suspiro e devolveu o desenho para a parede.
— Sabe o que é mais bizarro? Alguém passou horas desenhando isso. Testando, refazendo, tentando achar um jeito de encaixar essa ideia em algum lugar. Mas no fim das contas, não adiantou.
Nicholas observou rapidamente os papéis espalhados pelo chão, criando uma camada densa de histórias nunca antes contadas. Era estranho refletir sobre isso. Ele nunca demonstrou interesse em animação. Contudo, Sam percebia aquilo de uma maneira diferente.
— Você pensa muito nessas coisas? — perguntou.
— Eu costumava assistir qualquer coisa que passava na TV. Mas sempre achava estranho quando um personagem simplesmente sumia, ou quando mudavam o design de um episódio pro outro. Tipo, o que aconteceu com os caras que desenharam eles antes? Eles só… deixavam de existir?
— Eu nunca reparei nisso.
— Porque você não liga.
Sam riu. Ele puxou outro desenho do chão, este um pouco mais finalizado: um personagem sorridente, jovem, vibrante. Mas sua cabeça foi rabiscada com grosseiramente.
— Isso aqui é o ciclo. — disse, virando o papel entre os dedos. — Você tem uma ideia, trabalha nela, tenta fazer funcionar. Mas, na maioria das vezes, ela não sobrevive.
Nicholas notou o traço rabiscado, a clara tentativa de um artista de se desfazer de algo que ele mesmo criou.
— Acho que eles odiavam esses personagens.
— Talvez. Ou talvez tenha sido o contrário.
Sem saber ao certo o que estava pensando, Nicholas franziu o cenho. Ele sentia um desconforto difícil de explicar. Os documentos amarelados, atados às paredes como folhas caídas no fim do outono, respiravam silenciosamente no meio do corredor. Eram vestígios de uma imaginação frustrada, de conceitos que nunca alcançaram a profundidade necessária para se tornarem realidade.
Continuou andando até que um desenho, entre tantos, o fez parar.
A figura estava bem delineada, com contornos firmes, e sua postura sugeria movimento e propósito. No entanto, o rosto era um vazio absoluto. Nada de olhos, boca ou expressão, apenas um buraco em branco, feito como se o artista tivesse desistido de decidir quem aquele personagem deveria ser.
Algo naquele vazio capturou sua atenção de um jeito estranho, magnético.
— O que aconteceu com eles? — perguntou, sem perceber que sua voz saíra mais baixa.
Ao seu lado, Sam suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— Foram substituídos. Editados. Esquecidos.
A voz dele soava distante. Nicholas nem notou. Continuou a encarar aquele semblante ausente.
Uma memória sutil se infiltrou em sua mente, como um reflexo na superfície de um lago tranquilo.
A sala da casa antiga. A TV piscando em tons azulados. O som abafado da trilha sonora infantil.
Ele não lembrava o nome do desenho. Só lembrava dela, sentada no chão, a cabeça inclinada para trás, rindo de algo que ele não entendia. O jeito como apontava para a tela, os olhos brilhando, como se aquilo fosse a coisa mais incrível do mundo.
— Você viu isso, senhor?!
O calor daquela recordação o abraçou, em contraste com o frio do corredor. Era um calor agradável, porém também remoto, semelhante ao brilho de uma estrela morta.
De volta ao presente, seus olhos continuavam presos ao desenho sem rosto. A ausência daquele personagem inacabado ressoava de um jeito estranho dentro dele. Como se aquele vazio dissesse algo que ele não queria escutar.
Sam abaixou-se e pegou um dos papéis amassados no chão.
— O estúdio não jogava nada fora. O que é engraçado, se você pensar. Os artistas eram descartáveis, mas as ideias, não.
Nicholas ouviu, mas suas mãos estavam cerradas.
O eco de uma risada infantil se fez ouvir dentro da sua cabeça. O som de um nome sendo chamado.
— Como assim? — murmurou, sem perceber que ainda falava.
Sam girou o papel entre os dedos, os olhos fixos nos traços gastos.
— Tudo que eles desenhavam, toda ideia que nunca virou nada… ainda tá aqui. Guardada. Como se alguém achasse que um dia ainda poderiam usar.
Nicholas não respondeu.
Ele não estava mais ali.
Estava naquela sala, anos atrás, com a luz azul da TV iluminando os olhos de alguém. Estava na lembrança de uma voz que não existia mais, rindo de piadas que ele não entendia, segurando uma presença confortável que se desfez no tempo.
O estúdio não jogava nada fora.
Mas ele tinha perdido tudo.
— Nicholas!
O toque no ombro veio primeiro. Um puxão leve, mas firme.
Então, a voz.
— Ei. — Sam franziu a testa, analisando-o com um olhar desconfiado. — Você tá bem?
O ar voltou aos pulmões dele num jato seco. Piscou, confuso, o corredor retornando à realidade ao seu redor.
— Tô. — disse, ríspido demais. — Tô sim.
Sam continuou olhando-o, como se não acreditasse muito.
Nicholas desviou o olhar e respirou fundo, afastando os ecos do passado.
— Vamos continuar.
O menino hesitou por um segundo, depois assentiu.
Nenhum dos dois disse mais nada.
Uma porta aberta chamou sua atenção. A madeira estava desgastada, mas a maçaneta aparentava ter sido utilizada recentemente. Nicholas a empurrou com o ombro. A porta rangiu e expôs um ambiente impregnado de odores de papel velho e tinta seca. Era um espaço pequeno e úmido. Tinha desenhos de personagens esquecidos, rostos sem formas definidas, seres interrompidos no meio do traçado. Alguns possuíam traços expressivos, praticamente vivos, negligenciados no auge de sua criação. Outros estavam riscados, com traços apagados.
Sam foi o primeiro a entrar, e seus olhos percorreram cada detalhe com uma combinação de fascínio e inquietação. O seu olhar contrastava com o de Nicholas, que examinava o lugar com um ânimo distante. Para os mais novos, aquilo não se resumia a um depósito de documentos obsoletos. Eram espectros de conceitos que nunca conheceram a luz do dia.
— Isso é… bizarro.
— Você se impressiona fácil demais. — Manteve a mão perto da arma, com a expectativa de que alguma daquelas criações inacabadas tomasse forma e saltasse sobre eles.
Sam ignorou a provocação. Pegou um desenho solto do chão, soprando o pó antes de observá-lo melhor. Era um coelho sorridente, com um traço expressivo e o nome “Benny” rabiscado no canto inferior.
— Cara… eu conheço esse aqui. Benny, o Coelho. Ele quase foi um mascote famoso nos anos 40. Mas nunca lançaram.
Nicholas ergueu uma sobrancelha, interessado o suficiente para perguntar:
— Por quê?
— Fizeram outra versão. Mudaram tudo. A personalidade, a voz, até o nome. O Benny foi apagado antes mesmo de existir de verdade. — Sam virou o papel, analisando o verso, como se esperasse encontrar mais alguma pista da história não contada daquele personagem. — Isso acontecia o tempo todo. Centenas de versões de um mesmo personagem eram criadas e descartadas. Algumas nunca saíram do estágio de rascunho.
Ele caminhou mais para o fundo da sala, onde mesas estavam cobertas de pranchetas e papéis amontoados. Alguns desenhos estavam enquadrados, como retratos de um passado que nunca aconteceu. Nicholas o seguiu, parando ao lado de uma pilha de folhas caídas no chão. Pegou uma delas e a ergueu para a pouca luz que entrava por uma fresta na parede.
— Cooly, o Gato Preto. — leu em voz alta. O desenho mostrava um felino estilizado, com um cachecol envolto no pescoço e um sorriso esperto no rosto. — Ele parece familiar.
Sam olhou por cima do ombro.
— Era pra ser amigo do Benny. Mas o estúdio decidiu que um gato preto não vendia tanto quanto um coelho falante.
Nicholas soltou um som de desdém e jogou o papel de volta na mesa. Algo nisso o incomodava. O conceito de que personagens poderiam ser apagados da existência como se nunca tivessem sido imaginados. Uma ideia tinha tanto valor quanto sua aceitação. Se ninguém se lembrava, então, para todos os efeitos, nunca havia acontecido.
— O estúdio guardava esses rascunhos, mas descartava os artistas. — Passou os dedos por outra moldura empoeirada. — É irônico, não acha? As ideias foram preservadas. Mas os criadores, esses foram esquecidos.
Os olhos do agente encontraram algo diferente. Um desenho entre tantos outros, mas que parecia distinto de alguma forma. Ele o pegou com mais cuidado, virando lentamente a folha para Sam ver.
Era um retrato de uma garota. Diferente dos outros personagens, ela não tinha nome rabiscado ao lado. Seu vestido era simples, os cabelos curtos, loiros e os olhos… vazios. Sem detalhes, sem vida. Apenas um espaço em branco onde sua expressão deveria estar.
— E essa?
Sam franziu a testa.
— Nunca vi antes.
— Então por que tá aqui?
— Às vezes, um artista só desenha algo e nunca termina. Sem explicação.
Uma sensação incômoda se espalhou pelo peito do homem, um frio desagradável que rastejava sob a pele.
Então, um som quebrou a quietude.
Um farfalhar.
Nicholas ergueu a cabeça no mesmo instante, e Sam, que até então estava absorto nas pranchetas cobertas de rabiscos, se virou bruscamente. O barulho era discreto, mas nítido o suficiente para se destacar no silêncio.
Os papéis sobre uma das mesas se moveram sozinhos, deslizando levemente, como se uma corrente de ar tivesse acabado de percorrer o ambiente. Mas não havia vento ali. Nada que justificasse aquele movimento.
O farfalhar continuou.
Dessa vez, veio do fundo da sala.
Nicholas levou os dedos diretamente para a arma no coldre, o polegar destravando-a em um movimento rápido e treinado. Sam prendeu a respiração, o olhar oscilando entre os papéis que pareciam se mexer sozinhos e a escuridão que se acumulava nos cantos do cômodo.
— Você viu isso? — perguntou o garoto, quase um sussurro, como se falar mais alto pudesse despertar algo que talvez fosse melhor deixar adormecido.
O outro assentiu devagar, os olhos varrendo cada canto da sala, atento a qualquer mínimo sinal de movimento. O peso da arma na mão lhe dava um senso de controle, mas também deixava claro que algo ali estava fora do normal.
O farfalhar cessou, mas a sensação de que não estavam sozinhos permaneceu.
Sam inspirou fundo, os ombros rígidos, e apontou para um armário de metal encostado na parede oposta. A porta entreaberta exibia uma escuridão espessa, densa demais para ser apenas um efeito da pouca luz.
Nicholas seguiu a direção do gesto, e então o olhou. Nenhum dos dois precisou dizer nada.
O som veio dali.
Sam umedeceu os lábios, hesitando. Nicholas deu um passo à frente, ajustando a posição da arma, mantendo-a apontada na direção do armário.
— Abre. — ordenou.
— O quê? Por que eu?
— Porque eu vou atirar no que quer que esteja aí dentro. E você não é bom com armas.
Sam cruzou os braços, recuando um passo.
— Isso é um péssimo plano.
— É o único que temos.
O farfalhar retornou, dessa vez um pouco mais intenso.
Sam trincou os dentes, lançando um olhar para o armário e depois para Nicholas. A tensão nos olhos dele era um aviso claro: ou ele abria a porta, ou o agente faria à força.
— Você tá falando sério? — Estreitou os olhos.
Não houve respostas, apenas apertou o cabo da arma.
— Merda. Tá bom.
Nicholas, porém, não demonstrou reação. Apenas fez um ligeiro aceno de cabeça e ajustou-se melhor, com as pernas um pouco afastadas, preparado para qualquer eventualidade.
Sam acenou com a mão, relutante, tocando a superfície fria e áspera do metal oxidado. Um frio percorreu sua coluna vertebral. Ele engoliu em seco, mentalmente contando até três, e abriu a porta depressa.
O que estava dentro os encarou de volta.
No meio de caixas de papéis embolorados e rolos de esboços amarelados, uma figura se encolhia contra o fundo escuro do armário. Pequena, de formato arredondado, os olhos grandes e expressivos brilhando na penumbra.
Sam piscou.
A figura piscou de volta.
Era um urso, mas não qualquer urso.
Nicholas baixou a arma devagar, observando as características familiares do personagem. Ele era simples, praticamente infantil, mas com um sorriso acolhedor e um olhar que transmitia uma compreensão além do que realmente deveria.
A linha traçada em volta dos olhos conferia a ele uma aparência de boneco de pelúcia, com o esboço de um sorriso que oscilava entre a felicidade e a tristeza.
Sam o identificou imediatamente.
— Bear, o Urso?
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