Capítulo 90 - Covardia disfarçada de dever
O instinto inicial era disparar. Uma reação vaga, direta e pura. Para pessoas com chance de sobrevivência no impacto direto, os reflexos são uma vantagem. Nicholas sabia disso. Contra Ruth, isso era suicídio.
Em menos de cinco segundos, ele observou o Mephisto pela terceira vez, medindo a postura, o alcance dos membros deformados e o padrão irregular de deslocamento. Sem força bruta, Ruth era apenas uma deformidade viva, imprevisível. Um corpo que se moldava ao erro alheio.
Nicholas não podia errar. Nem uma vez.
Pendurado no limite da visão, Sam respirava rápido, inquieto, os olhos pulando entre Nicholas e o monstro, como um cão jovem esperando uma ordem que nunca foi treinada para entender. O homem precisava usar isso.
— Preciso de você funcionando.
O adolescente piscou duas vezes, forçando a cabeça a afirmar. O gesto foi pequeno, mas suficiente.
— Vê aquelas estantes quebradas? — indicou com o queixo. — Empurra tudo pra fechar o corredor da esquerda. Fecha a passagem. Silêncio total.
A hesitação ficou presa na garganta do outro, mas não virou pergunta. Aprendizado rápido. Melhor do que muitos adultos que já tinham passado por suas mãos.
Continuou, direto, sem tempo para didáticas:
— Quanto menos espaço ele tiver, mais previsível fica. Monstro que respira desespero precisa de território. Corta o território, corta as opções.
O garoto olhou de relance para a bagunça que seria sua tarefa. Apertou os punhos, respirou fundo.
— E se ele vier pra cima de mim?
— Corre em zigue-zague. Derruba o que conseguir no caminho. Quanto mais ruído interno, menos chance ele tem de focar. Não pensa em ser herói. Pensa em ser problema.
Dessa vez, o aceno veio mais firme. E antes que a dúvida tivesse espaço para florescer, já estava de costas, caminhando pelas sombras em direção à barricada improvisada.
Sozinho no centro, ajeitou o peso nos calcanhares, redirecionando a atenção total para a criatura à frente. Precisava sobreviver até o resto do plano encaixar.
Inspirou devagar. Analisou o cenário pela última vez: prateleiras semi-caídas, restos de rolos de animação espalhados pelo chão, pontos cegos criados pelas colunas rachadas. Cada obstáculo poderia ser uma vantagem ou uma sentença, dependendo de quem se movesse melhor.
Com o tronco inclinado para a frente, o inimigo farejou o ar, procurava onde a força se partira. Nicholas andou para o lado, permitindo que uma falsa brecha fosse criada. Pequena o suficiente para seduzir, grande o bastante para enganar.
A criatura rosnou, em um som grave que fez a madeira da estrutura vibrar suavemente.
— Vamos lá. Mostra onde dói primeiro.
No fundo da sala, ouviu o primeiro rangido do móvel sendo arrastado, abafado, bem feito.
A primeira peça já tinha se movido. Agora, bastava manter o tabuleiro instável o bastante até que o golpe final estivesse pronto e rezar, só dessa vez, para que o garoto fosse rápido o suficiente.
— Você fala como quem já conhece a dor que eu trago. — disse Ruth.
A atenção dele estava cravada em Nicholas — olhos âmbar, vivos, como brasas afundadas em carne podre. Não havia fome neles. Nem fúria. Apenas… curiosidade. O Mephisto deu um passo, arrastando os pés sobre os escombros no chão.
— Sabe o que eu acho curioso? Você não tem medo de mim.
O agente manteve o corpo alinhado, a respiração ritmada, o centro de gravidade pronto para se mover em qualquer direção. A provocação era óbvia demais para ser mordida.
— Não, medo não. — continuou, inclinando o rosto, estudando cada nuance, cada microtraço que Nicholas se esforçava para manter sob controle. — Tem coisa pior aí dentro. Mais funda. Mais velha.
Os dedos do homem se contraíram levemente sobre a coronha da arma. Pequeno demais para ser notado por olhos humanos. Não para Ruth.
— Tem raiva.
Um sorriso lento abriu caminho pelo rosto rasgado. Um sorriso que não prometia nada de bom.
— E tem uma tristeza tão apertada que chega a feder.
Nicholas deu meio passo para o lado, mantendo-o girando com ele, forçando o monstro a acompanhá-lo e, assim, se afastar do canto onde Sam finalizava o bloqueio.
— Tinha uma garota, né? — Ruth avançou outro meio passo, escorrendo palavras como veneno em água limpa. — Uma vida pequena, boa, fácil de carregar. E você… não foi rápido o bastante.
O maxilar de Nicholas se contraiu. Num movimento rápido, cruzou a distância em dois passos e golpeou Ruth com a coronha da arma, direto no flanco.
O som foi seco, a sensação do impacto subindo pelo braço dele como um estalo velho de osso trincado. O Mephisto apenas riu — um som áspero, disforme, que parecia brotar de um lugar vazio dentro do peito.
No fundo, o estrondo abafado confirmou que o móvel tinha tombado no lugar certo. O acesso estava bloqueado. Sam havia feito o que precisava ser feito. Nicholas nem olhou. O sangue subia em espirais lentas e pesadas dentro da cabeça, cada batida alinhada com o veneno que Ruth destilava.
A criatura inclinou o rosto de lado, fixando aqueles olhos mortos no centro da alma dele, como quem fura o casco de um animal ferido só para vê-lo tremer.
— A gente nasce da sujeira que ninguém limpa. Da sobra que apodrece quando todo mundo vira o rosto.
A voz não tentava ser cruel. Era apenas nua. Um pedaço de carne crua jogada no chão.
— Você sabe. — continuou, a fala roçando na audição como vidro moído. — Você viu. Você ainda acorda ouvindo o som que ela fez… quando o pulmão falhou de vez. Quando não sobrou mais nada pra você segurar.
O mundo se mostrou reduzir à sua volta, um sufocamento progressivo que apagava o calor, a textura do ar e até o ruído do próprio corpo lutando pela sobrevivência. A única coisa que restou foi o peso da arma em mãos e o amargo acúmulo de pressão no fundo da garganta.
Ruth não precisava agredir fisicamente; bastava abrir as passagens adequadas na memória para provocar um sangramento interno em Nicholas. Ele mantinha a arma firme, o dedo flertando com o gatilho, tentando vencer. Porém, a batalha ocorria em um terreno diferente, onde nenhuma bala podia atingir.
As imagens retornaram lá, nesse espaço desprotegido. Não neste cômodo destruído, mas em um corredor extenso e estreito de um abrigo abandonado, onde paredes úmidas filtravam a luz e o frio penetrava nos ossos. Uma pessoa estava deitada no chão, de uma maneira absurda, como se fosse uma boneca descartada. A blusa leve presa ao corpo, o pescoço torcido, os olhos abertos, secos, testemunhando a falta que ele havia prometido nunca permitir.
Nicholas não fora capaz de chegar a tempo. E este pormenor, simples e cruel, era a ferida que Ruth havia acabado de tocar com as unhas sujas,
Um estalido agudo veio da arma. O homem disparou sem refletir, como se o som pudesse trazer o passado de volta ao lugar onde deveria estar. A bala atingiu Ruth, fazendo com que a criatura recuasse meio passo, mas não o derrubou. Ao invés disso, ele soltou uma risada desajeitada, um som que mais semblava um rangido de osso do que um riso humano.
A visão era apertada, o som do sangue ressoava forte nos ouvidos, e o aroma do estúdio grudava na língua como ferrugem. Qualquer batimento cardíaco era tal qual um impacto no peito.
Ruth inclinou a cabeça, um gesto tão despretensioso que debochava da sua tentativa de manter a calma, os olhos vazios nele, mergulhando ainda mais profundamente.
— Quer saber a parte engraçada? Mesmo que tivesse feito algo, ela ainda teria morrido. Com ou sem você. Só teria levado você junto.
As palavras causaram um impacto maior do que qualquer agressão física. Nicholas atirou novamente, sem aguardar o resultado. Todo disparo era uma reação instintiva, um esforço desesperado para afastá-lo do ferimento aberto, mas a criatura já estava arraigada nele como um prego.
O semblante dele se transformava nas extremidades, incorporando seus traços, unindo o passado ao presente.
Os seus olhos adquiriram uma tonalidade âmbar, dourada e opaca, tal como os seus. Eram olhos que outrora irradiaram confiança e esperança. Atualmente, opacos, imersos em órbitas obscuras, retirados de um cadáver e colocados à força naquela anomalia.
A pele, que antes era quente e dourada como areia ao ar livre, esta vez exibia um tom moreno manchado, endurecido, coberto por fissuras secas e rachaduras expostas, semelhante a uma superfície que ficou muito tempo exposta à decomposição. Em certas áreas, fragmentos de tecido se desprendiam das articulações.
Os cabelos, que Nicholas se lembrava serem ondulados, cheios de vida, espalhavam-se num emaranhado sujo, colados ao couro cabeludo com umidade doentia. As ondas dos seus estavam embaraçadas, puxadas em tufos quebradiços como palha velha, misturando-se a pedaços de tecido e sujeira incrustada.
A boca se esforçava para sorrir, com os lábios rachados e escurecidos revirando para trás, expondo dentes quebrados e desalinhados, numa expressão que não refletiva alegria ou zombaria, mas uma imitação patética de algo que já foi humano.
— Lily… — disse Nicholas.
Não era Lily, contudo, carregava seu sorriso inocente, seu olhar fatigado e a respiração que falhou enquanto ele, pequeno demais, frágil demais, jurava inutilmente que a protegeria.
— Porra!
O desespero não veio em explosões. Cresceu por dentro como ferrugem, consumindo devagar tudo o que ainda segurava a mão de Nicholas na linha da disciplina. Ele sabia, em alguma camada quase apagada da mente, que cada tiro, cada respiração puxada com violência, o arrastava ainda mais fundo. Mas o que sobrara de controle já não se importava. Era o lado antigo, rasgado e faminto, que tomava conta agora – o lado que só queria fazer qualquer Mephisto desaparecer da existência, nem que fosse esmagando-o com as próprias mãos.
O último tiro estalou seco. O click vazio ecoou, anunciando o fim das balas. Nicholas não teve dúvidas. Nem considerou. O seu braço se movia apenas por impulso, atirando a arma sem munição para longe, onde colidiu com o chão e ressoou para a escuridão.
Os olhos estavam concentrados na coisa deformada que simulava evocar o rosto de Lily. Antes mesmo da mente formular qualquer pensamento lógico, o corpo já avançava.
Foi em direção a Ruth movido por uma violência cega, com os pés batendo forte no piso. A distância entre eles se evaporou em questão de segundos. A primeira coisa que tocou foi uma das prateleiras caídas ao lado – a madeira rachada e rasgada, úmida ao toque. Nicholas segurou uma tábua de bordas irregulares e a puxou vigorosamente, ouvindo os pregos desgastados rasgarem o ar com ruídos ásperos.
Com um grito abafado na garganta, balançou a madeira direto contra Ruth, acertando-lhe o ombro com força suficiente para estourar o impacto num estalo bruto. Fragmentos de madeira se soltaram no ar, pedaços de poeira e lascas girando em volta deles.
Ruth cambaleou. Girou o corpo em movimentos trêmulos, instáveis, tentando recuperar a base. Nicholas não deu tempo.
A mão livre tateou ao redor. Agarrou uma velha luminária caída, o cabo de metal frio e irregular deslizando nos dedos suados. A girou como um martelo e desferiu um golpe brutal no flanco. O som do impacto foi oco, seco, uma vibração desagradável que subiu pelo braço inteiro até o ombro.
Ruth deu dois passos para trás, uma perna frouxa, como se o corpo estivesse se quebrando de dentro para fora. O sorriso persistia ainda estampado no rosto deformado, ainda zombava silenciosamente.
Nicholas engatou novamente, toda a musculatura do corpo gemendo sob tensão, em desconsideração à dor que se manifestava nos braços e nas costas. Abandonou a luminária quando ela se quebrou demais para ser usada como arma e recolheu o que se assemelhava a uma antiga barra de ferro fino, em outra parte da estante. Ele empurrou violentamente o ferro diretamente contra o peito de Ruth, até que a criatura batesse contra a parede.
O contato do metal contra a pele rasgada do Mephisto emitiu um som molhado, perturbador. Segurou o ferro com ambas as mãos, o rosto a poucos centímetros do inimigo, a respiração rasgada, os olhos ardendo com a lembrança da irmã morrendo de novo e de novo em cada piscada.
Os pés prendiam o corpo ao solo, enquanto os ombros se contraíam como fios de aço. Todas as células do corpo afirmavam que era inútil, que o Mephisto não era feito de carne que se desfaz, mas Nicholas não escutava. Não existia mais lógica, missão, nem formação. Apenas a necessidade suja de esmagar até que aquilo parasse de sorrir.
O ferro tremia na mão. O suor misturava-se com sangue – dele ou da criatura, pouco importava agora. A garganta queimava de tanto conter gritos que ameaçavam explodir.
— Nick…
Ele congelou. Aquela voz Nicholas conhecia melhor do que a própria respiração. Era Lily. Só que não era a Lily das lembranças boas, era a Lily real, ou o que sobrava dela, distorcida até o âmago, arrancada das memórias que tentava sufocar.
— Você sempre achou que era melhor do que todo mundo. Sempre se escondeu atrás dessa pose de forte, como se bastasse ficar duro por fora pra ninguém ver o que apodrecia por dentro.
Nicholas apertou os dentes até sentir o gosto do sangue na boca.
— Você nunca cuidou de ninguém. Só sabia se distanciar. Queria ser útil, ser o bom soldado, o irmão perfeito, mas no fim era só covardia disfarçada de dever. — A respiração dele ficou mais pesada, mais curta. — Você queria que eu fosse forte, que eu suportasse as coisas que você não suportava. E quando eu precisei de você… você se escondeu atrás de desculpas.
A garganta dele se contraía. Todas as palavras ressoavam em sua mente como verdades que ele já conhecia, mas que se negava a encarar diretamente. O suor gelado e repulsivo escorria pela nuca e pelos ombros, enquanto o corpo perdia o equilíbrio, sentindo-se dobrado e destruído pela pressão das acusações.
— A verdade é que você não correu, na verdade, simplesmente fingiu que era outra coisa. Se enterrou no que queria ser, pra nunca ter que encarar quem você era de verdade.
Nicholas tentou se firmar, buscou algo para segurar dentro de si, mas tudo parecia fugir, desmoronar, como areia passando pelos dedos.
— Você nunca me protegeu. Você só me deixou pra trás no mesmo vazio onde você se enfiou.
O mundo aos poucos se fazia menor, e com cada palavra que ouvia, um peso afundava em seu peito. A destruição já estava feita. Nicholas, de joelhos, respirava em espasmos, com a pele pálida sob o suor frio e o olhar vazio, rasgado entre o que foi e o que ainda tentava ser.
E naquela ruína silenciosa, na borda do esquecimento, a voz de Lily sussurrou a sentença final, a mais cruel, a mais verdadeira:
— Você devia ter ficado no chão naquele dia, Nick. Não ela. Não eu. Você.
Nicholas não respondeu. Não chorou. Apenas ficou ali, a cabeça baixa, o corpo tremendo, o coração batendo fraco, como se mesmo ele tivesse entendido que não havia mais porque continuar batendo.
Ruth não precisava se mover. O agente já estava no chão, despedaçado. Exatamente como deveria estar.
No centro da armadilha, não havia mais resistência, apenas a aceitação da queda. Porém, a ilusão não era meramente uma lembrança. Era uma estrutura formada e nutrida pela criatura que estava diante dele. Ruth não precisava de garras ou algemas. Bastava olhar. Bastava ser vista. Seus olhos armavam armadilhas em camadas, entrelaçando culpa, remorso e temor até aprisionar a alma do alvo em um ciclo de autodestruição. Uma autoridade suja, mais primitiva, que utilizava a consciência da vítima para o seu próprio benefício. Uma vez preso, era difícil escapar.
Nicholas não sabia disso. Ou soube tarde demais. O que Ruth fazia era mais do que ilusão; era uma cirurgia na alma, arrancando pedaço por pedaço de tudo que mantinha uma pessoa em pé.
Foi então que algo cortou a densidade sufocante. Um zunido, um deslocamento de ar, um estalo seco.
A arma do agente, lançada ao ar durante o combate, retornou voando, atravessando o espaço e atingindo Ruth diretamente na cabeça. O impacto provocou um estalido em seu crânio, que a fez perder o equilíbrio por um instante crucial.
A ligação foi quebrada.
Nicholas piscou, ofegante, e o chão voltou a existir sob seus joelhos. O peso insuportável recuou como uma maré de água podre. Sua cabeça latejava, o estômago revirava, e as mãos tremiam sem controle. Era como acordar debaixo d’água, engolindo ar e desespero ao mesmo tempo.
— Caralho, velho… — Sam resmungou, ainda agachado atrás de uma mesa virada, evitando a todo custo olhar diretamente para a criatura. — Quase que ele te ferra de vez.
O garoto segurava uma segunda arma nas mãos, uma tábua, mas ainda era só um apoio.
Ao tentar se levantar, o peso corporal duplicou e os músculos não conseguiram se contrair a cada esforço. Era como se cada osso estivesse desgastado internamente. Sua boca estava seca e sua visão, embaçada. Ele ainda não sabia onde estava.
— Levanta! — Sam insistiu, a voz rouca de nervosismo. — Não olha pra ele, porra. Deixa ele olhar pra parede, pra sei lá o quê, mas não encara de novo!
O garoto, com os olhos apertados em fendas, focava tudo menos o rosto de Ruth. Sam tremia, mas se mantinha firme — o tipo de coragem que não vinha da experiência, mas da necessidade crua de salvar alguém que, mesmo caído, ainda era tudo o que tinha.
Nicholas respirou fundo, lutando contra o próprio corpo. Sentiu o gosto amargo da bile subindo pela garganta, mas empurrou o peso das pernas para frente. Os joelhos protestaram, mas ele se forçou a ficar de pé, apoiado em uma mesa para não desabar de novo.
Ruth balançava a cabeça lentamente, recobrando o equilíbrio, mas o poder havia sido rompido. A criatura perdeu o brilho hipnótico nos olhos por um instante, como uma lâmpada falhando.
— Bora, cara. — falou de novo, sem disfarçar o medo que escorria na voz. — Dá pra acertar ele agora. Dá pra acabar com essa merda.
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