Índice de Capítulo

    A última lufada de sol pendia no horizonte feito um dia cansado.

    Darcy apoiou os antebraços na mureta de concreto da cobertura. Na mão esquerda, um cigarro pela metade tremia entre os dedos. A brasa queimava devagar, relutante em se apagar. Ela o levou à boca e puxou a fumaça de modo a permitir que o vazio a preenchesse um pouco.

    Dali de cima, Eugene lhe parecia quieta demais. O tráfego fluía calma e uniformemente, as luzes urbanas piscavam como pulsações de uma criatura viva. Aquele aspecto entorpecido sempre caracterizara a cidade, com sua podridão escondida sob camadas de silêncio bem-educado. Darcy sabia disso. As piores coisas não se abrigavam na escuridão; ocupavam a superfície, fingindo civilidade.

    O cigarro crepitou. Ela virou o rosto para o céu e exalou uma nuvem de fumaça pálida, que se desfez contra o crepúsculo. Era nesses momentos, em que estava sozinha, longe dos protocolos e das câmeras, de que tinha lembranças. Mesmo sem querer, porque os flashes sempre vinham.

    Antes da U.E.C., da sigla no peito como um peso e um escudo, Darcy era apenas uma sombra num sistema falho. Sua infância era um borrão cinza de lares provisórios, vozes desconhecidas e castigos desproporcionais. Nunca foi filha de ninguém por muito tempo. Cresceu nos interstícios, entre um lugar e outro, entre um nome e outro. O Estado a alimentou e lhe deu abrigo, não um rosto.

    Adolescente, se enfiou no que podia para sobreviver. Usou sua inteligência em seu favor, pois era a única coisa que ninguém podia levar embora, sequer quando apanhava calada ou era jogada no fundo de um centro de internação para menores, cujas grades transmitiam mais humanidade que os olhares ao redor. Aprendera a sufocar os gritos internos e a cultivar uma raiva disciplinada. Algo mais fino, mais cortante, não uma fúria cega. Uma lâmina embainhada atrás do sorriso.

    A U.E.C. apareceu como uma oportunidade, mas também como uma armadilha. Assim como um caçador que reconhece o valor de um animal selvagem e opta por adestrá-lo em vez de abatê-lo, a U.E.C. surgiu. Com essa ideia, ela entrou. Sem patriotismo ou redenção. Não havia mais nada, e pelo menos ali o caos tinha nome, os monstros tinham rosto para que pudesse atirar neles sem ter que se explicar para ninguém.

    Darcy olhou para a ponta do cigarro, consumida até restar apenas uma pequena brasa. Deu uma última tragada e o esmagou contra o concreto com a sola da bota. O cheiro agridoce da fumaça persistia no ar, como um fantasma pairando no silêncio.

    Por um momento, seus olhos se desviaram do horizonte, vindo a focar em seu interior quando, de repente, o céu noturno pareceu puxar um fio preso à base de sua nuca, levando sua mente de volta a algo.

    — Fumar não resolve porra nenhuma, nega. Mas acalma a cabeça o suficiente pra cê não meter ela na cara errada.

    Era uma voz soprada no fundo da memória. Grave e rouca. Ria nas pausas, rindo de uma piada triste demais para ser contada por completo.

    — Quando era criança, eu achava que cigarro era tipo feitiço. Acendia e, por uns cinco minutos, tudo parava de doer. 

    Sempre se lembraria de como isso era dito com um sorriso ironicamente derrotado. Um sorriso que surge quando se perde tudo o que importa mais de uma vez.

    — Sabe o truque? Não é o cigarro que acalma. O tempo que cê ganha enrolando o papel, riscando o fósforo, puxando o ar, isso sim é que dá a ilusão de controle. Mesmo que o mundo esteja numa zona, cê ainda pode acender o próximo.

    No entanto, era difícil lembrar quando exatamente ele saíra de sua vida. Sabia apenas que, no fim, tudo ficou mais sossegado. 

    Por muito tempo, ela o odiou. Logo passou a entendê-lo. E agora não sentia mais nada. Essa indiferença era pior do que simplesmente odiá-lo.

    Com os dedos a tremer, Darcy enfiou a mão no bolso interior do casaco. O estojo de metal surgiu entre os dedos. Abriu a tampa com um clique e retirou um maço novo e lacrado. Apenas o som do plástico ao desfazer-se dava a sensação de um ritual. Aquele era o silêncio tenso entre dois rounds.

    Mas antes que pudesse tirar o primeiro cigarro da embalagem, uma voz surgiu atrás dela, baixa, familiar e irritantemente pontual:

    — Vai fumar o prédio inteiro agora ou só tá tentando me ignorar?

    Manteve a mão suspensa no meio do movimento. Suspirou fundo. Guardou o maço de cigarros no bolso à pressa, engolindo o próprio orgulho.

    — Merda, Arthur… você podia pelo menos fazer barulho subindo.

    — Eu fiz. Você que tava ocupada tendo uma crise existencial. — disse, apoiando o ombro na mureta da cobertura, com o vento da cidade bagunçando os cabelos dele e os olhos semicerrados no contra-luz. — Tava te procurando.

    E ficou assim por alguns segundos. Darcy não proferiu uma palavra. Limitou-se a deixar o silêncio se esticar para além do confortável.

    — Te procurei porque… achei que talvez você quisesse conversar. Ou pelo menos ouvir que ainda tem alguém do teu lado.

    Darcy encostou as costas no parapeito, cruzando os braços.

    — Conversar? Agora? Arthur, a gente tá a um passo de virar manchete. A moral da equipe tá indo pros ares, e você quer que eu fale sobre o meu dia?

    O homem deu de ombros.

    — Só achei que… sei lá. Você tava aqui em cima, olhando pro nada. Geralmente quando eu faço isso, ou quero pular… ou conversar.

    Darcy desviou o olhar e mordeu a língua. Apesar de tudo, ela não estava pronta para admitir que, de certo modo, Arthur estava certo.

    — Eu tava só… lembrando de coisas. De gente que já foi. — Fez uma pausa. — Nada demais.

    O líder caminhou até o parapeito e se posicionou ao seu lado. Passaram um tempo ali, ambos olhando a cidade. Os postes brilhavam amarelo, buzinas soavam ao longe e um trem noturno passava distante.

    — Eu odiava esse lugar quando cheguei. Hoje em dia… só acho que, se alguém precisa de ajuda, não vai ser essa cidade que vai levantar a mão primeiro.

    — Ninguém aqui levanta a mão. A maioria só quer passar o dia sem se ferrar. O resto só quer ferrar alguém antes.

    Arthur soltou um riso curto.

    — Sabe, quando eu te coloquei como vice, ouvi dizer que eu fiquei louco.

    — Deve ter ficado mesmo.

    — Na verdade, entre todas as opções, você era a única que não puxava meu saco e nem tentava me ferrar pelas costas.

    Ela inclinou o corpo contra o parapeito, cutucando a borda do concreto com a unha.

    — Você ainda não entendeu, né? Não é que eu não tente puxar teu saco. É que eu não sei lidar com gente.

    O homem bufou uma risada fingida.

    — Você lida com monstros, Darcy. De verdade. Mas tropeça num bom-dia.

    Constrangida e aliviada, deu uma breve risada.

    — Isso porque você nunca me viu num elevador com recruta novo tentando puxar papo. 

    — Não é que você não sabe lidar com gente. É que você já lidou com gente demais que não valia nada.

    — Talvez. — disse, com os olhos fixos no horizonte, mas sem conseguir enxergar mais além do que a luz que se espalhava na sua frente, que, aliás, era a única coisa que conseguia ver. — Mas você também não é o cara mais sociável do mundo.

    — Verdade, e mesmo assim eu gosto de pensar que a gente se entende por isso. — — Puxou o casaco contra o peito, sentindo o vento subir. — E, sei lá, quando tudo isso der errado, bom, pelo menos eu sei que, se tiver que morrer num tiroteio, você vai tá do meu lado.

    Darcy não conteve a expressão ao ser surpreendida com uma pequena rachadura no escudo pelo seu sincero.

    — Não sei se isso é uma declaração ou um pedido de socorro.

    — Pode ser os dois. — Sorriu de volta. — Sou multitarefa.

    O caos do resto do mundo diminuía por um momento. Entre dois agentes cansados demais para fingir que eram somente colegas de trabalho, a fumaça dos carros, o ruído da cidade e o gosto velho da solidão ficavam suspensos na borda daquele prédio.

    Darcy tirou o maço de novo do bolso, olhou pra ele, e guardou de novo.

    — Se você me disser mais uma coisa piegas, eu acendo dois de uma vez.

    Arthur levantou as mãos.

    — Tô quieto. 

    Devagar, Arthur se aproximou, sem tirar os olhos dela. Adotou um comportamento ponderado por temer que qualquer gesto mais ousado fizesse tudo desmoronar. Apesar disso, um sentimento persistia naquele instante e se recusava a evaporar.

    Esta o encarou por um tempo longo demais. Nenhum dos dois recuou o olhar. Além de cansaço e cicatrizes mal curadas, enxergou-se claramente um reconhecimento mútuo. 

    Arthur deu um passo a mais.

    — Posso te contar uma coisa?

    Darcy torceu o canto da boca, mas não se afastou. Uma ponta de seu lábio se curvou ao perceber que estava prestes a cometer um erro ou permitir que o cometessem com ela.

    — Espero que valha a pena.

    O homem sorriu. Estavam perigosamente próximos um do outro. Perto o suficiente para o cheiro se misturar, para a respiração se entrelaçar. Em que as palavras simplesmente deixam de importar.

    Levantou a mão e ajeitou uma mecha do seu cabelo desarrumada pelo vento. Somente isso. Um toque leve fez com que o coração batesse no lugar errado. 

    — Eu nunca confiei em ninguém como confio em você. 

    Darcy prendeu o ar. Estava com os olhos fixos nos dele. Em contraste, a cidade abaixo continuava ignorante, barulhenta e viva. Naquele pequeno pedaço de concreto, porém, o mundo também conteria a respiração.

    Arthur inclinou-se ligeiramente. Darcy não mexeu um músculo. Nenhum dos dois piscava. A distância entre os rostos diminuía. Milímetros.

    De repente, ouviu-se um som metálico alto quando a porta da cobertura se abriu. Os dois se afastaram rapidamente.

    — Opa. 

    Os dois se afastaram, envergonhados. Arthur ajeitou o casaco para parecer mais composto. Darcy deu um passo atrás para mostrar que já estava a meio metro dali desde sempre.

    — Uau. — disse, arqueando uma sobrancelha com o canto da boca puxando num sorriso travesso. — Cheguei numa hora errada… ou certa?

    Ela segurava o tablet com uma das mãos, apoiado no quadril, e olhava de um para o outro.

    Arthur pigarreou para assumir uma postura de autoridade, mesmo estando em uma situação comprometedora.

    — Fala logo, Monroe.

    — Ligação do gabinete do senador Rowley. Tá esperando alguém responsável pra atender. Agora.

    Ao engolir o constrangimento na forma de um suspiro, Darcy cruzou os braços.

    — Eu vou. — disse, já andando na direção da porta.

    Monroe abriu caminho, ainda sorrindo e a acompanhou.

    — Isso, vice. Salva nós e depois, quem sabe, termina o que começou aqui em cima. A tensão desse terraço tá matando as plantas

    Arthur coçou a nuca, visivelmente incomodado.

    Quando a porta se fechou atrás das duas, o silêncio tomou a cobertura de novo.

    Este olhou para o horizonte, conteve um riso e balançou a cabeça.

    — Merda.

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