Prólogo
“A crença em uma origem sobrenatural da maldade não é necessária. Homens sozinhos são capazes de qualquer maldade.” – Joseph Conrad.
1955, 13 de Setembro
Um ano tornou-se um ano nos registros da brutalidade humana, um fio vermelho que criou uma tapeçaria de maldade sem igual. O cheiro de cordite e os gritos da Segunda Guerra Mundial deixaram sua marca na própria alma do planeta.
As cinzas desse cataclismo deram origem a uma fênix monstruosa. Uma era de dominação sombria foi inaugurada pela Alemanha nazista, com as suas asas negras batendo com o triunfo dos condenados. O mundo estava condenado a um futuro tão contorcido como o laço de um carrasco, preso numa escuridão interminável de desconfiança e terror. O Terceiro Reich, tendo empregado vitorioso da carnificina, decidiu estender suas garras ambiciosas na direção dos Estados Unidos. 1
Duas superpotências se confrontavam, cada uma armada com sua própria ideologia, divididas por um abismo de crenças e ambições.
A Guerra Fria, um estrangulamento gradual e excruciante, foi uma terrível ironia de seu nome. As batalhas gloriosas e aterrorizantes pertenciam ao passado. A conveniência política tornou-se o altar onde as pessoas eram sacrificadas como moeda de troca no conflito.
As fronteiras, antes linhas manchadas de vermelho de batalhas passadas, transformaram-se em terríveis linhas de falha. Consideradas imutáveis, agora se rasgavam como feridas infeccionadas, vulneráveis ao punho de ferro do poder militar e aos tentáculos insidiosos da subversão.
A bandeira americana, ainda de pé apesar do cerco, assemelhava-se a uma chama trêmula diante da escuridão que se aproximava. Era uma visão desoladora, onde a esperança parecia se dissipar através das fissuras do asfalto.
Os disparos ressoavam contra as paredes em ruínas, como um lembrete cruel das perdas sofridas. Os lamentos dos que se foram reverberavam como um coro melancólico, uma ode ao terror indelével daqueles tempos sombrios.
Uma realidade exposta, tão podre quanto a gangrena, apodrecia no labirinto sujo das ruas destruídas pelo conflito. A própria linguagem se transformou em um véu desgastado, incapaz de esconder a verdade macabra do cemitério que surgiu da batalha. Expressões como “opressão”, “tortura” e “impiedade” eram insignificantes em comparação com o barulho ensurdecedor da angústia.
As tropas nazistas eram efígies ambulantes do mal, com seus uniformes da cor de sangue seco. Para cada ação que fizessem, era uma exibição hedionda de brutalidade, uma apresentação macabra dirigida por um titereiro sádico. Qualquer ato abusivo era um rito sacrílego que tinha grande prazer na decomposição do espírito humano.
A guerra revelou seu verdadeiro rosto, um semblante de olhos ocos e dentes à mostra, uma terrível voracidade que desejava nada além da essência da decência humana, mais do que território ou poder.
No entanto, como um feixe de luz na escuridão, o fim daquele conflito brutal começava a despontar no horizonte.
Mesmo com os esforços daqueles que haviam forjado o destino, as forças americanas começavam a recuar. Os restos dos derrotados cobriam o campo de batalha, um testemunho sombrio da intensidade da luta. O cheiro de decomposição se espalhava como uma praga, mantendo ambos os lados à margem de um ataque nuclear iminente.
New York, Lower Manhattan, à 01h00am.
Na Grand Street, havia um forte gosto residual de metal queimado e ferrugem. Com os olhos embaçados pela sujeira do combate, o cabo Muriel olhou em volta dos escombros para encontrar sua divisão. Três. Só restavam três homens, ele entre eles, os outros reduzidos a manchas vermelhas nos calçamentos. Sua suposta proteção, o tanque outrora dominante, foi reduzida a uma pilha fumegante, um monumento à ira do adversário.
Mesmo nas melhores circunstâncias, a esperança não conseguia se manter e havia se transformado em uma cinza amarga em seus lábios. Uma enchente que ameaçava engolir a linha irregular de evacuados na barricada se contorcia e pulsava. O som dos reforços chegando ressoava ao longe, compondo uma lamentosa melodia de desgraça.
Em seguida, houve um estalo alto vindo de trás. O mundo desapareceu em uma estranha loucura de carne e osso. Seus amigos foram arremessados como marionetes despedaçadas, com suas entranhas em um espetáculo medonho que se espalhou pelo asfalto. Muriel sentiu o terrível estalar de ossos e o gosto metálico do sangue espirrando em sua pele.
Ele sentiu o aperto dos invisíveis, o empurrão frenético dos cidadãos presos contra a barricada, através dos poros cheios de suor de suas roupas. O gotejamento logo se transformaria em um dilúvio, uma maré humana que ameaçava submergir todos eles. Uma serpente gelada de pânico se enrolou em seu estômago.
Muriel era um robô movido por deveres severos e adrenalina, capaz de lutar a noite toda. Mas até mesmo sua vontade de ferro parecia uma teia de aranha contra um aríete diante da onda implacável e do peso esmagador da tristeza.
As rotas de fuga estavam abarrotadas de centenas delas, em breve seriam milhares.
Ele podia continuar operando a noite inteira, sem mostrar sinais de cansaço; isso não era um problema. Apenas o tempo resolveria essa situação. Por seus supostos irmãos, que também eram seus próprios, eles continuariam. Matar, matar, era a única saída, uma jornada mais sombria do que nunca.
Os soldados alemães, enclausurados em sua própria covardia, não compreendiam a verdade subjacente. Envolvidos em chamas e desespero, ele tentava resistir, mas suas armas logo foram arrancadas, deixando-o vulnerável à justiça tardia que se aproximava.
Em círculo, como abutres, cercaram o soldado, um por vez, sua crueldade manifestada em atos de violência brutal que lhe desfiguraram o corpo e a alma. Mas Muriel se recusou a dobrar-se diante das torturas. Suas palavras frágeis e as tentativas de intimidação caíram em ouvidos surdos, seu espírito resiliente resistindo a um fio tênue. Mesmo com pulsos amarrados, ele continuou a lutar.
Sangue escorria, lágrimas mesclavam-se ao suor, sua visão estava tingida de vermelho e as cicatrizes físicas marcando-o profundamente.
Um jovem soldado alemão emergiu das sombras, seu corpo esguio destacado pela luz tênue que escapava dos postes distantes. Seus olhos, outrora imbuídos de inocência, mostravam um propósito deturpado. Ele segurava um canivete na mão, um prolongamento de sua crença distorcida que brilhava ameaçadoramente na noite. Em um gesto de cautela, na medida certa, esculpiu a suástica na carne do prisioneiro, utilizando o objeto como se fosse um pincel e o sangue sua tinta.
— Sieg Heil! Sieg Heil!
Com os olhos vazios e o coração endurecido, declarou sua vitória com um grito vil.
Como se as sombras ao redor deles tivessem engolido a esperança, o ar estava denso com uma mistura esmagadora de pavor e revolta. Naquele momento, a humanidade vacilou à beira do abismo, enquanto a escuridão abraçava-os.
Greenpoint, Freeman St, à 01h56am.
Após uma angustiante espera de 50 longos minutos, os soldados americanos finalmente romperam o silêncio com uma retumbante salva de tiros.
As descargas do poderoso M1918 ecoaram, dilacerando a retaguarda do exército alemão. O estrondo dos disparos foi como uma sinfonia mortal que ecoou pelos campos de batalha. A primeira bala que se destacou, maciça e letal, cortou o ar e encontrou seu alvo em um impacto devastador contra o couro rígido da engrenagem alemã.
As balas encontraram seu caminho com precisão letal, perfurando várias articulações da placa de blindagem do tanque inimigo. O estrondo das explosões se misturou ao zunido das balas, enquanto a fumaça começava a se elevar dos orifícios.
Uma segunda explosão irrompeu da entranha do monstro de aço, um rugido ensurdecedor que reverberou pelo campo de batalha; o interior do tanque estava carregado de explosivos, prontos para desencadear o inferno.
O sargento Oliver Thomas, instintivamente, se lançou para trás, buscando cobertura atrás de uma parede que mal havia resistido à carnificina ao seu redor.
Com o coração batendo freneticamente, o soldado Matthew William, um sobrevivente em meio ao caos, ergueu sua arma e retaliou. Cada disparo era como um ato de desafio à escuridão que os envolvia.
As explosões pareciam dançar sobre os destroços de concreto, enquanto as tropas inimigas avançavam.
Naquele momento de coragem, o sargento Oliver avançou.
Seu uniforme esvoaçava ao vento, um testemunho visual de sua resistência, enquanto Matt continuava a disparar contra o inimigo. O estrondo constante do rifle automático era uma nota persistente na cacofonia da batalha.
Movendo-se por instinto, sem hesitar, Oliver se lançou à frente, arremessando uma granada com precisão sobre o avanço alemão. O clarão da explosão pintou o cenário com tons de fogo e fúria. O rugido da explosão ecoou nos ouvidos de todos.
As faces pálidas das vítimas testemunhavam a carnificina que se desdobrava.
Quatro indivíduos severamente enfermos tentaram permanecer vivos diante da perda de sangue, com uma exuberante espuma carmesim transbordando sobre os lábios.
Porém, em meio ao caos, o exército americano persistia, uma chama de resistência que se recusava a ser extinta. Enquanto o batalhão alemão avançava, a raiva e a determinação moldavam suas expressões, palavras de maldição e saliva voando em um coro de fúria:
— Arde no inferno, filhos da puta!
Os rifles alemães rugiram em resposta, suas balas encontrando alvos no modo automático, uma resposta letal ao desafio imposto pelos americanos.
Os mísseis dos tanques, como punhos de vingança, foram lançados em direção ao ditador Erich Schneider, encontrando seu alvo com precisão cirúrgica.
O coração do inimigo tremia ao impacto dos projéteis, uma última tentativa de deter o avanço do seu domínio.
O campo de batalha havia se transformado em um turbilhão de fumaça, chamas e desespero, enquanto ambos os lados lutavam pela vitória.
A fronteira entre a vida e a morte, a coragem e o medo, estava se tornando cada vez mais tênue contra o pano de fundo de uma batalha sem fim. O destino de nações inteiras estava em jogo enquanto heróis sem nome se lançavam ao desconhecido, determinados a pagar o preço máximo pelo triunfo.
South Side, às 02h21am, em um beco.
Adam Hall estava coberto de suor, com as bochechas manchadas pelo líquido vermelho escuro que descia da ferida em seu rosto. Ele se encostou na parede, sentindo o impacto em seus ombros contra a superfície áspera enquanto seu corpo deslizava para baixo.
Seus olhos piscaram, lutando para ver além da névoa de sua visão turva.
O capacete em sua cabeça e as faixas ao redor de suas pernas estavam desgastadas, mas era a M1928 que ele segurava que tinha sofrido o maior estrago.
Adam avaliou seu estado, inspecionando a área lesada: pequenas fraturas pontilhavam sua pele, e hematomas imensos causavam uma dor aguda. Contudo, para alguém acostumado a tantos desafios quanto ele, essa dor era apenas um transtorno temporário.
Lutando para se manter consciente, no andar superior do prédio, pessoas que também lutavam para sobreviver a esse caos foram jogadas da borda de uma abertura no concreto por uma explosão colossal que sacudiu os tijolos com um barulho ensurdecedor.
Três vítimas já ensanguentadas caíram, encontrando a morte instantaneamente no impacto brutal.
O soldado deslizou suas costas na parede até sentar-se. O sangue fluía de suas feridas, manchando sua farda, enquanto a condição deste piorava rapidamente.
Seus dedos, tremendo levemente, mergulharam sob seu uniforme, emergindo com um pingente de prata firmemente agarrado. Um sorriso suave e nostálgico enfeitou seus lábios enquanto ele olhava para seu mundo em miniatura encapsulado ali. Sua esposa, capturada em um momento de beleza atemporal, encontrou seus olhos. Um lampejo de ansiedade, um contraste gritante com a serenidade da imagem, dançou em seu reflexo.
Era sua única chance de agir e a última que teria. Embora não pudesse mais lutar por seu país, estava ciente do imenso fardo de defender sua família.
— Cassidy… — murmurou, seus olhos fixos na imagem desta. — Isso é totalmente doentio. Eu não queria estar aqui. Ninguém merece passar por isso, né? É medonho.
Sua voz fraquejou quando a tosse sangrenta o interrompeu.
— Espero que isso acabe logo para que possamos viver os momentos em que cuidávamos um do outro como se fôssemos um só. Mas, ainda assim…
Adam fez uma pausa por um momento, reunindo forças, antes de continuar
— Se eu não puder viver, se não puder estar ao seu lado nos dias que virão, por favor, continue vivendo. Não deixe o peso deste pesadelo tocar você e nem ao nosso filho. Vocês merecem encontrar a felicidade novamente, mesmo que eu não possa estar presente para compartilhá-la.
Repentinamente, uma outra voz ressoou.
— Ainda pode sentir emoções tão fortes mesmo estando cercado por tanta crueldade, isso é admirável.
Adam desviou seu olhar para a direita, seus olhos fixando-se em algo que surgia à vista, algo que desafiava todas as leis da natureza.
Sua fisiologia peculiar sugeria que ele havia sobrevivido nas condições mais adversas. Com uma altura de 1,90, o recém-chegado estava vestido com um longo sobretudo preto aberto, revelando uma camisa e calças da mesma cor. Luvas brancas envolviam suas mãos e um chapéu de feltro cinza repousava em sua cabeça.
Adam poderia ter gritado para indagar suas intenções, mas em vez disso, agiu por instinto, sacando a pistola HP-35 de seu coldre na cintura e apontando-a para a figura enigmática.
O som de sete disparos ecoou pelo beco, cada bala cortando o ar em direção ao oponente.
Entretanto, o que ele enfrentava estava longe do comum.
Conforme as balas atingiam sua figura, cada ferida se regenerava, cada rasgo em sua vestimenta se reparava. A transformação era incrível, quase sobrenatural.
Hall sentiu os dedos estremecerem à volta do cabo da pistola, sob o efeito do suor frio que lhe escorria pelo rosto enquanto os olhos se fixavam naquela figura à sua frente.
A silhueta estava envolta em sombras, mas o sorriso hediondo e torto era visível mesmo sob o chapéu que ocultava grande parte do rosto. A presença daquele ser fazia o ar parecer mais denso, quase irrespirável.
— Só pode ser brincadeira…
O estranho inclinou ligeiramente a cabeça, como se apreciasse a confusão que havia provocado.
— Se você não conseguir controlar suas emoções, terei que matá-lo. De todos aqui, você ainda nutre algo valioso… um sentimento que o torna diferente.
Os seus olhos, de repente, brilharam na penumbra, vermelhos como sangue, perfurando a escuridão com uma intensidade monstruosa.
— As balas…
O ser inclinou-se levemente para frente, quase num gesto de desprezo.
— O dano físico já não me afeta. Disparar seria um desperdício de esforço… da sua parte.
Por entre a confusão, o mundo começava a distorcer-se, como se a própria realidade estivesse à beira do colapso. Para Adam, já não se tratava de uma guerra; não era a Alemanha, nem o fardo da Guerra Fria. Era um pesadelo que desafiava toda a sua compreensão do mundo.
“Essa coisa… Que merda é essa?”
A pergunta ecoou em sua mente enquanto lutava para compreender o que via. Contudo, por mais que o desespero ameaçasse tomá-lo, algo dentro dele se recusava a ceder. Desistir não era uma opção. Ele ajustou o peso do corpo, os músculos tensos, enquanto tentava manter o controle.
A criatura continuou.
— Enfim, apesar de tudo, você é apenas um ser humano comum. Um ser humano… que sente.
Adam desviou o olhar de forma deliberada, uma pequena rebeldia que não havia planejado. O gesto surpreendeu aquela coisa, que o observou com algo que parecia fascínio.
Um brilho quase intrigado cruzou o olhar vermelho.
— Interessante. As emoções são interessantes. São algo que já não possuo. Embora o tempo continue mudando, envelhecendo tudo, o que vocês sentem… isso permanece. Algo eterno nesse mundo quebrado.
De forma desapontada, ele observava os corpos espalhados pelo chão. Era como se os cadáveres fossem menos uma tragédia e mais uma peça mal acabada de uma obra perdida.
— Contemplar a paixão e a dor, o ódio e o amor… É como admirar uma pintura em constante transformação. Cada emoção é uma pincelada única de cor na imensidão cinzenta da vida.
Adam o encarou, ainda tentando decifrar o que via.
— Certo… Eu não sei quem ou o que você é, e nem como diabos veio parar aqui. Mas isso só torna tudo ainda mais… — Ele desviou os olhos para longe, como se quisesse fugir daquela presença sufocante. — … esquisito.
O visitante voltou o olhar, e, mesmo sem expressão clara, havia algo em seu rosto que parecia divergir entre curiosidade e tédio.
— Apenas observo. — respondeu, com uma simplicidade desconcertante. — Minha única intenção é compreender. E, pelo que vejo, minha curiosidade me trouxe até alguém que está à beira da morte.
Um aperto no peito fez o coração de Adam bater mais rápido, mas não teve tempo de reagir. Foi como se uma dor lancinante lhe rasgasse o corpo e ele, instintivamente, pressionou o tecido encharcado do seu uniforme contra o ferimento.
O visitante inclinou levemente a cabeça, observando o esforço dele.
— Você é corajoso. — comentou, sem emoção, mas com algo que lembrava admiração distante. — Encarar sua própria mortalidade com dignidade é uma característica rara. Talvez até… notável.
Adam riu baixinho, um som seco que fez o gosto metálico do sangue subir à boca.
— Não é dignidade… Ainda não consigo acreditar nisso tudo.
A coisa deu um passo à frente.
— Existem segredos neste mundo que nem eu sou capaz de entender completamente, mas de alguma forma, o destino nos colocou no mesmo caminho. Por quê? Talvez apenas o tempo nos revele.
Com os músculos ardentes de dor, o soldado ergueu os olhos, mas a sua mente debateu-se para encontrar algum sentido naquela interação. Tudo o que sabia era que a batalha que enfrentava agora estava muito além de qualquer guerra humana.
A figura endireitou a cabeça e o seu sorriso adquiriu um toque de ironia.
— Se não fosse por essa miséria, talvez nenhum de nós estivesse aqui.
Adam engoliu em seco, limpando a garganta antes de responder.
— Eu só estou aqui porque preciso estar. Mais gente está se filiando ao Partido Nazista… Eles estão invadindo tudo, se espalhando como um veneno. — Parou para recuperar o fôlego, sentindo o gosto amargo do sangue na boca. — É por isso que temos que impedir essa bagunça.
— Impedir? — Após uma risada seca, carregada de sarcasmo, a palavra escorregou de seus lábios como uma piada mal contada. — Você deveria saber o quão libertador é agir sem um propósito maior. Sem bandeiras, sem lados. É cansativo, na verdade. Repetitivo. Um ciclo que só existe porque vocês insistem nele.
— De qual lado você está? Você também faz parte deles?
— Lado? Não me confunda com um cachorro domesticado do exército.
A resposta o deixou ainda mais confuso. Nada naquela criatura fazia sentido, desde suas palavras até sua presença.
— E então, o que você está fazendo aqui?
Com a luz fraca da lua a iluminar-lhe o rosto, inclinou-se ligeiramente.
— Estou aqui porque toda essa compaixão que você valoriza foi aniquilada há muito tempo. O que resta agora é ódio, medo e dor. Tudo o que vocês mesmos cultivaram. — Ele virou-se lentamente, deixando o olhar se perder na noite. — E é por isso que o Mundo Carmesim deve surgir.
O homem seguiu o olhar dele até à lua, que brilhava com um contraste surreal contra o céu estrelado. Aquelas palavras voltaram à sua mente, mas não houve explicação, senão o frio que se fazia sentir.
— Huh?
— Não vai importar pra você. Não desse jeito.
Sem desviar o olhar da criatura, Adam percebeu que sua visão começou a turvar. Seu corpo, já enfraquecido pela perda de sangue, dava sinais de que não suportaria por muito mais tempo. Ele sentia o frio aumentar, não pelo vento da noite, mas pelo gelo que se espalhava em seu interior. Havia uma estranha leveza substituindo a dor, que antes era insuportável.
A figura permaneceu imóvel por um instante, ainda olhando para a lua com um semblante contemplativo.
— Tudo isso é cíclico. Uma roda que gira e esmagará tudo de novo. Seu esforço, suas crenças… no final, são poeira no tempo.
Voltou-se lentamente para ele, como se esperasse alguma reação, algum retorno. Mas Adam já não tinha forças. Com o olhar vazio, fixo em algum ponto além da realidade, ele dizia tudo. O corpo estava imóvel, e a respiração havia cessado.
No entanto, a criatura continuou falando, aparentemente alheia à morte que acabara de ocorrer.
— Humanos sempre acreditam que podem mudar algo. Mas vocês são apenas fragmentos de uma história escrita por forças maiores. — Ele inclinou-se levemente, observando o rosto pálido do soldado, ainda sem perceber a ausência de vida. — Acreditava em justiça, não é? Em um futuro onde sua luta significasse algo. Admirável… mas tão previsível.
O silêncio respondeu, mas a criatura, como se dialogasse consigo mesma, prosseguiu.
— Talvez seja isso que me intriga. Esse impulso de continuar, mesmo sabendo que o fim é inevitável. Um traço fascinante. Inútil, mas fascinante.
Sobre eles, a lua brilhava, derramando sua luz prateada sobre o corpo de Adam, transformado em uma figura imóvel, sem resistência, sem dor. Mais uma vítima em uma guerra sem fim.
Finalmente, a criatura endireitou-se, fitando o soldado morto. A conversa deu lugar ao silêncio, cujo peso quase tangível enchia o ar. Com um gesto que poderia ser de respeito ou desprezo, inclinou a cabeça.
— Hm. Então era isso. Um ouvinte vazio.
Por mais alguns instantes, o ser observou o corpo inerte do soldado, como se considerasse algo que jamais compartilharia. Os olhos, frios e impassíveis, capturavam o cenário ao redor — a terra marcada por sangue, os escombros de uma batalha que não havia terminado e, sobretudo, a morte silenciosa que tomava conta daquele lugar.
— Não vale a pena viver neste mundo. Por isso, encontre um lugar melhor.
Sem esperar qualquer resposta, virou-se lentamente, as botas pisando na terra encharcada, desaparecendo na vastidão escura da noite.
A paisagem do campo de batalha estava mergulhada em um torpor assustador. As chamas que ainda se alastravam em alguns pontos projetavam sombras trêmulas sobre os destroços. Não havia espaço para misericórdia ou redenção. As guerras não apenas matavam corpos, mas também despedaçavam a alma daqueles que permaneciam.
Os adversários não mostravam piedade nem por aqueles que não podiam lutar. Eram inimigos declarados, movidos por ódio visceral, e a equipe de Schneider estava no centro de seu desprezo. A única lei que existia ali era a de lutar até o fim, até que o último fôlego fosse roubado pela força ou pela bala.
A guerra transformara a humanidade em algo irreconhecível. A vida, o bem mais precioso, era tratada como algo descartável. Famílias, comunidades e gerações inteiras eram consumidas por uma fogueira incessante alimentada pela ganância, pelo poder e pelo desejo de dominação.
Para aqueles que observavam de longe, a guerra era um reflexo inescapável da natureza humana. Um ciclo interminável, no qual a insanidade era tanto a faísca quanto o combustível. Não se tratava de uma dádiva divina, como alguns insistiam em acreditar, mas de uma maldição ardente que consumia todos que se aproximavam.
Os heróis eram uma ilusão. Eles pereciam como qualquer outro. Sem aplausos, sem salvação. Apenas a mordida fria e inevitável da morte os aguardava no final.
As palavras da criatura ainda pairavam no ar, impregnadas de uma certeza sombria:
— Está tudo errado. Estão afundando o mundo nesse buraco sem fim. Eu devo para isso.
Ele pressionou a mão contra o peito, como se tentasse sufocar algo que o consumia por dentro.
— Uma nova era. Não. Mãe, me diz que consigo. Me diz que posso parar tudo isso. Me diz que ainda há tempo.
Uma nova era. Mas não de redenção ou esperança. Era algo que ninguém poderia imaginar, um futuro moldado por angústia e desespero.
Conforme a noite se aprofundava, sombra após sombra engolia os campos, as cidades e as almas daqueles que ainda lutavam para resistir. Fora driblada mais uma vez a verdade inescapável de sua vulnerabilidade e de seu fracasso em escapar de sua própria destrutividade.
Com o mundo aguardando sob o manto de uma escuridão cada vez mais densa, a humanidade enfrentava essa verdade. Não por paz. Não por misericórdia. Mas pela chegada de uma era que finalmente revelaria o preço de sua arrogância.
- Em vez da tradicional guerra entre os EUA vs a União Soviética, ao inverter o curso histórico e apresentar a Alemanha Nazista como uma superpotência, o mundo ficou dividido entre os blocos liderados pela Alemanha e os Estados Unidos. A União Soviética, embora enfraquecida pela Segunda Guerra, ainda se mantém como uma potência significativa e uma terceira força no novo equilíbrio global.[↩]
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