Capítulo 27 - O Balé Desordenado da Vida
O cheiro de álcool derramado e a atmosfera de expectativa ansiosa permeavam o clube onde estava Raven. Não era um refúgio para pessoas solitárias em busca de companhia; ao contrário, era um teatro macabro onde a solidão assumia muitas formas. Todas as sextas-feiras à noite, rostos animados vinham para cá, atraídos pela perspectiva de amizade, mas se perdiam em um mar de rostos desconhecidos.
Sentada em uma mesa de canto com sombra, Raven era uma testemunha experiente dessa comédia humana. O couro desgastado parecia refrescante em sua pele, proporcionando um forte contraste com a intensa energia negativa que percorria o espaço lotado.
Cada um dos que chegavam era uma figura em um palco escuro. Os fanfarrões estavam presentes, suas gargalhadas eram vazias no vasto salão enquanto suas vozes ressoavam com histórias exageradas de conquistas.
Os espíritos temerosos se agarravam às laterais, com os olhos correndo de forma errática enquanto procuravam freneticamente por um lampejo de esperança em meio ao barulho.
E havia os que estavam com o coração partido, com a dor encharcada em um líquido âmbar, um desânimo estampado em suas faces que nenhuma quantidade de falsa comemoração poderia apagar.
Para alguns, o veneno de ação lenta do tédio se infiltrou sob a superfície. Sua fuga temporária da monotonia da vida cotidiana foi encontrada na amarga angústia da embriaguez. Nesse estado, suas inibições desapareciam, expondo as ideias mais absurdas e os sentimentos mais puros.
Raven descobriu que essa era a única diversão que tinha a oferecer. Uma coleção de tentativas patéticas das pessoas de preencher o vazio dentro delas, era um show hediondo que servia como um lembrete constante de como era ridículo procurar conexão em um lugar onde a solidão reina.
Na perspectiva convencional, não era uma festa. Para as almas perdidas que buscavam o esquecimento no fundo de um copo, era uma espécie de purgatório. Por trás da superfície desse lugar, havia uma fome extraordinária, um desespero faminto que corroía sua humanidade.
Os indivíduos mais agitados pareciam ter certeza de que poderiam vencer a gravidade, como evidenciado por seus olhos vidrados e clareza distorcida, que precediam suas inevitáveis quedas na pista de dança.
Aborrecida, Raven atravessou a multidão em busca de um refúgio temporário. Suspirou ao se sentar em uma cadeira vazia que havia notado escondida em um canto escuro, com um copo de água sobre a mesa. Apoiou a cabeça na palma da mão e descansou o cotovelo no tampo pegajoso da superfície.
Máscaras festivas se esticavam sobre seus rostos, mas mal disfarçavam o vazio que os consumia por baixo. Eles riam amargamente e se divertiam, tentando desesperadamente afogar o terrível peso de sua existência. Com seus olhos como um bisturi cortando a folia vazia deles, Raven observou:
“Impulsionadas pelos desejos mais básicos…”, Curvou os lábios em uma careta sarcástica. “Se tornam meras marionetes dançando ao som de sua própria autodestruição.”
Era fascinante e confuso olhar para esse tecido de emoções humanas. Um paradoxo inexplicável foi revelado em meio ao barulho da música e de conversas apaixonadas. Beberam e dançaram, inconscientes das sombras que esperavam atrás das paredes escuras, com os rostos cheios de falsa alegria.
Com o primeiro gole de uma bebida forte, o mundo exterior e todas as suas preocupações e medos pareciam desaparecer. Seus problemas evaporavam no líquido âmbar, revelando conchas ocas que se deliciavam com esse esquecimento passageiro.
No entanto, eles estavam enganados sobre o quão poderosa era a poção mágica.
O olhar aguçado de Raven foi capaz de perceber as lacunas em sua fachada. Uma mão trêmula buscando mais bebida, uma risada estranha que rompeu as costuras, uma breve expressão desanimada que brilhou em um olhar embriagado. Serviam como sussurros do mundo exterior, lembretes que não passariam completamente despercebidos.
Embora possa ter sido brevemente submerso, seus medos nunca foram totalmente afogados. Abaixo da superfície, havia um leviatã monstro que estava apenas esperando para reaparecer com a inevitável ressaca da realidade.
Parecia que as pessoas estavam anunciando ao caos lá fora que não permitiriam que o medo as controlasse através da dança e do deleite exuberante. Mesmo sendo falso, o riso deles era um hino de rebeldia diante de um mundo imprevisível. Esta noite eles construíram um santuário improvisado no meio da tempestade, um oásis colorido onde as preocupações eram deixadas de lado para uma celebração momentânea.
Mesmo com seu cinismo, Raven teve que admitir para si mesma a audácia de sua rebelião. Foi assim que a humanidade enfrentou o abismo, necessidade básica de se unir e encontrar forças contra uma ameaça onipresente.
Havia um fascínio irresistível nesta exibição de alegria incontrolada, embora a sua própria mente ansiasse pela razão e pelo conforto gelado dos fatos concretos. Houve uma pequena pontada de ciúme até mesmo por ela, uma espectadora indiferente por natureza. Eles tinham uma capacidade admirável de encontrar momentos de alegria mesmo nas piores circunstâncias.
Ao observar as figuras oscilantes na pista de dança, Raven notou um toque de resiliência e uma evidência da tenacidade do espírito humano. Talvez, pensou ela, o mundo criado por eles não fosse realmente uma saída. Quem sabe não tenha sido um ato essencial de desafio, uma forma de recuperar o controle em um mundo que frequentemente era completamente incontrolável?
Na boca do estômago dela, algo brilhou, uma luz há muito adormecida. O clube poderia oferecer mais do que entretenimento, apesar de sua aparência horrível. E se houvesse alguma conexão humana real, mesmo em meio à falsa felicidade e aos medos comuns?
Pela primeira vez em muito tempo, Raven sentiu um vislumbre de algo que se aproximava de pertencimento.
“Esse… esse sentimento…”, Sua mão agarrou a borda da mesa até que os nós dos dedos ficaram brancos. “Essa sensação de… me sentir como uma pessoa com um coração batendo e uma alma que dói. Quero isso também.”
Geralmente tão gelados e distantes quanto os céus, seus olhos brilhavam como um lindo filme.
“Quero recuperar essa parte de mim mesma, essa capacidade de sentir todo o espectro das emoções humanas… alegria, tristeza, raiva, até mesmo desespero. Sentir algo… Essa sensação de conexão, de vulnerabilidade, de simplesmente estar… viva.”
Soltou um suspiro longo e rouco, pesado pelos anos de retraimento emocional que havia imposto a si. Essa era a realidade, e infelizmente ela não tinha escapatória.
— Boa noite, senhorita.
O homem que se aproximou controlou bem os músculos do rosto, mas o leve estreitamento de seus olhos castanhos traiu o alerta que soara em seu interior.
Os cantos da boca de Raven curvaram-se num sorriso que carregava um fragmento de malícia, mascarando o desconforto que sua presença gerava.
— Olá, alguma novidade?
Ela se referia tanto às notícias quanto às reais intenções por trás daquela aproximação.
O recém-chegado escolheu o caminho mais seguro:
— Nada que quebre a monotonia. A noite segue seu curso normal, aparentemente.
— Que tranquilizador. Deve ser reconfortante encontrar tanta previsibilidade nestes tempos.
Apesar de o sorriso do homem permanecer, exigia claramente um esforço visível para se sustentar. Os seus olhos percorreram rapidamente a sua figura, desde o sobretudo impecavelmente cortado até aos sapatos sociais que destoavam completamente da atmosfera do lugar.
— E você? O que traz uma mulher… vestida assim para uma festa dessa?
A sua atenção estava focada em extrair algo mais substancial, por isso, ignorou o comentário sobre a sua aparência.
— O mesmo que traz todos aqui. Uns momentos de distração, mas você não veio por distração, veio?
— Haha. — Deixou escapar uma risada baixa, então endireitou-se. — É só distração também. Já que estamos compartilhando este canto… Damon. Damon Vogler.
Estendeu a mão direita. Sua pele mostrava cicatrizes finas ao longo dos nós dos dedos.
Raven baixou o olhar para a mão estendida, depois voltou ao seu rosto. Seus próprios braços permaneceram soltos ao lado do corpo.
O silêncio prolongou-se por dois batimentos cardíacos, três, após os quais o espaço entre ambos ficou enchergado de um constrangimento pungente.
O sorriso de Damon esmaeceu nos cantos. A mão dele baixou lentamente e seus dedos se fecharam.
— E com quem tenho a honra? — insistiu, com a voz um pouco mais fina, porém cordial.
Raven tomou um gole lento de sua água e pôs o copo de volta na mesa.
— A honra é toda sua. — Os olhos dela estreitaram levemente, captando a luz de forma estranha. — E eu prefiro mantê-la assim.
Damon recuou com um movimento fluido, levando a mão ao bolso do casaco, o que sugeria que esse sempre tinha sido o plano.
O músculo na sua mandíbula, porém, contraiu-se uma vez, rápido e tenso. Algo na recusa dela, na falta de cortesia mais básica, quebrou o guião que ele preparara.
O que sentia não era raiva, mas sim… recalibragem.
Ele avaliou-a por uma fração de segundo e, pela primeira vez, Raven viu uma fenda na fachada que lhe despertou uma genuína curiosidade, seguida pelo frio reconhecimento de que ela não era o que ele esperava. E que, talvez, isso a tornasse muito mais perigosa.
— Entendo. Alguns de nós valorizamos a discrição. Outros… simplesmente a usam como outro tipo de armadura.
O desconforto deixara de ser subserviente para se tornar uma presença física, um véu que separava os seus espaços.
Algo naquele simples ritual quebrado revelava mais sobre os seus verdadeiros jogos do que qualquer palavra poderia ter feito.
— Na verdade, tenho negócios. Assuntos pendentes. — confessou ele.
— Assuntos pendentes. — Repetiu as palavras como se provasse seu sabor. — Termo tão amplo que cabe tanto dentro dele.
— Digamos que a família traz… assinaturas complicadas. Essa festa serve como intervalo entre um ato e outro da mesma peça.
As palavras foram cuidadosamente filtradas e polidas para esconder suas arestas verdadeiras. Raven notou como ele desviou o olhar para um ponto além de seu ombro.
— Famílias são complexas. — Sua voz manteve uma textura neutra, sem ceder à facilidade da falsa cumplicidade. — Sempre carregam alicerces que não aparecem nos projetos.
Embora ele parecesse aliviado com a abertura mínima, os olhos de Raven permaneceram analíticos.
As pessoas sempre ofereciam versões editadas de suas tormentas porque a verdade nua era grande demais para ser carregada em conversas de festa.
— E você? — Ele tentou mais uma vez. — O que traz alguém como você para um lugar como este, além do óbvio?
— Todo mundo carrega suas próprias chaves e cadeados. Às vezes a fuga está em fingir que não temos nenhum dos dois.
Sua risada era suave, ainda que carregasse a acuidade de uma gota de veneno. Um aviso sutil de que certos territórios permaneceriam inexplorados.
— Você dança bem nesse jogo. Mantém o ritmo sem revelar os passos.
Raven inclinou a cabeça em reconhecimento.
— Os mapas mais interessantes são os que deixam espaços em branco.
— Talvez. — Os olhos dele se estreitaram levemente. — Mas alguns terrenos exigem pisagem firme, não apenas sombras.
— Nem todas as sombras escondem monstros. Algumas apenas… profundidade.
O ambiente festivo persistia ao redor como uma ironia sonora contra a quietude que se estabelecera entre eles.
O homem inclinou de repente para a frente, a ponto de invadir o espaço pessoal dela.
Agora sem a cortesia anterior, seus olhos refletiam uma lucidez perturbadora.
— A vida humana é uma estrutura de vidro sob tensão. Um sopro no lugar errado e tudo se estilhaça. É curioso como uma única decisão pode alterar completamente a trajetória de uma existência.
Raven manteve a respiração estável, mas cada fibra em seu corpo estava em estado de alerta.
— E você, querida? — A voz dele baixou para um tom conspiratório. — Uma tragédia tão específica moldando seu caminho. Aquele acidente aéreo… um evento de consequências tão radicais. Interesso-me pela forma como o trauma reescreve uma pessoa.
A forma como ele falava transmitia a sensação íntima de quem consultara um álbum de recordações, onde se revelava familiarizado com momentos que ela mantinha sob chave.
“Ele sabe demais.“
— Às vezes… fico pensando se o destino tem senso de humor… ou só gosta de quebrar gente interessante.
Um riso breve escapou dele.
— Um avião cai. Dois pais morrem. Uma garota sobrevive e ela só torna outra coisa. História forte. Difícil esquecer. — falava e dedilhava a superfície da mesa. — Mais difícil ainda… esconder.
Algo frio tocou a espinha dela.
— Tristeza como essa cria rachaduras. Gritos internos. Fantasmas no encalço. Nada some — Voltou seu olhar para ela. — Você sabe bem disso. Será que foi por acaso?
“Mas como…?”
— Demônios internos todo mundo tem — acrescentou. — Mas os seus… são únicos.
Ela respirou devagar, pensando no mínimo de palavras necessárias.
— Está apostando numa leitura confortável da minha vida como se fosse um jogo. Uma leitura que nem eu assinei. Por que sabe tanto sobre meu passado?
— Jogo? Não. Prefiro chamar de… alinhamento dos fatos. A questão é sobre o que você faz quando esses fatos batem na porta.
Raven estreitou o olhar.
— Você me conhece?
— Sou quem mais te conhece.
Ela ainda não tinha tido tempo de formular uma resposta quando Damon se levantou. A cadeira arrastou-se suavemente pelo chão e ele desvaneceu-se na multidão como uma sombra na penumbra.
Raven levantou-se para o seguir, mas o impacto de uma mulher nua sobre a mesa à sua frente impediu-a. Acima dela, um homem despia-se. Nos seus olhos não transparecia um pingo de prazer, tão somente um vazio possuidor e frenético.
Caiu sobre Raven um peso silencioso. Neste caso, a ausência de som não era o que se fazia sentir, mas sim uma presença grotesca. A música continuava a tocar, mais distorcida, pareceu-lhe que era como se fosse tocada através de água espessa.
Viu um casal próximo, travado num beijo entre mordidas e carícias, com os lábios ensanguentados sobre copos esquecidos; um homem sozinho aos puxões de cabelo; uma mulher com um elegante vestido vermelho com ranhuras de unha no braço.
O homem e seus segredos súbitos tornaram-se secundários.
Isto era maior.
O seu instinto gritou ao pegar seu celular do bolso interno do seu sobretudo.
Ela recisava ligar para Mikael, pois um vaso estava prestes a estourar, mas um empurrão interferiu.
Um homem cambaleante colidiu com o seu ombro. O mundo ficou inclinado o suficiente para o celular escapar dos seus dedos e cair no chão enlameado de derramamentos de bebidas.
A tela foi pisada por um salto alto. Seguiram-se outros pés que arrastaram o aparelho para o turbilhão de corpos em movimento caótico.
Raven baixou-se e estendeu o braço para resgatar o dispositivo da corrente humana, mas este já tinha sido engolido, reduzido a uma casca preta e prateada.
A conexão com o mundo exterior foi cortada. Sozinha, estava imersa naquele pesadelo.
O ressoar baixo da música distorcida aumentou até se transformar num rugido nos seus ouvidos.
Os rostos à sua volta deixaram de ser apenas estranhos para se tornarem uma potencial ameaça.
Uma atmosfera pesada e adocicada fechou-se com consigo como uma armadilha.
A solução lógica surgiu na sua mente com uma clareza perigosa.
“Se eu usar meus poderes, posso conseguir encontrá-lo.”
A lógica era simples, as opções eram poucas. Para encontrar uma agulha neste palheiro humano, era necessário um ímã. A convocação do corvo servia precisamente para isso, pois era uma ferramenta perfeitamente adaptada para sintonizar e intensificar a escuridão que já pulsava no ambiente.
Aquele homem era um fio que a levaria até ao Mephisto responsável por tudo. Deixá-lo escapar seria uma negligência grosseira, uma falha na sua função mais básica.
“Mas…”
Havia um problema na sua assinatura energética. Era impossível senti-la como uma criatura separada. A sua energia confundia-se de forma perfeita com a da multidão, uma proeza pouco provável para um ser humano comum, a menos que não fosse um Mephisto, o que seria igualmente raro, mas sim um vessel especialmente treinado ou um operativo que aprendera a mimetizar a escuridão à sua volta com fins de camuflagem.
Qualquer uma dessas opções o tornava mais perigoso do que Raven tinha previsto.
Sua respiração, até então ofegante, acalmou.
“Isso vai ser inútil.”
— Socorro…
Ouviu-se, de repente, uma voz fraca, atrás de si.
Raven se virou para ver, e o seu coração parou em seu peito.
A festa desfez-se. No lugar das luzes estroboscópicas roxas e âmbar, o laranja sinistro de chamas vorazes tomou conta do espaço.
O chão era ora um campo de destroços amontoados, terra revolvida e pedaços de fuselagem prateada espalhados como papel de alumínio.
O outrora opressivo odor a suor e álcool dera lugar a um cheiro agressivo a querosene, fumaça e carne queimada. A música eletrônica cedera o lugar ao crepitar das chamas misturada ao ranger do metal sob tensão.
A alguns metros dela, uma figura arrastava-se no chão. As roupas de festa jaziam carbonizadas, tal como a pele, que era uma paisagem de queimaduras e cortes profundos.
Os dedos estavam enterrados na terra, e o corpo era puxado para a frente num movimento agonizante e inútil.
— Socorro… — suplicava antes do seu sopro final.
Quando recuou um passo, Raven esbarrou com algo macio no calcanhar. Olhou para baixo e viu que era um braço, cuja pulseira de LED azul piscava alegremente, de forma incongruente.
“Não… Isso não é real. É um truque. Tem que ser um truque.”
O calor das chamas queimava-lhe o rosto. A fumaça ardia na garganta como um ácido.
O peso da catástrofe, as fragrâncias da morte, a textura do solo sob os seus pés foram tudo experiências de uma visceralidade e esmagadora tangibilidade.
A sua mente, condicionada a distinguir o real do ilusório, opunha-se à sua própria percepção. Aquilo não era uma memória que lhe aparecia; tinha a sensação de que a sua consciência fora fisicamente transplantada para dentro da memória, e de que essa consciência se tornara parte integrante do pesadelo.
Sabia o que era. O acidente. Seu próprio acidente. O ponto zero de sua dor, o evento que desencadeou tudo. Quem quer que fosse não estava apenas mostrando a ela, o que estava fazendo era forçá-la a revivê-lo para que sentisse o peso de cada vida perdida naquela noite como se fosse a primeira vez.
Era um fardo a cada passo que dava para trás, na tentativa de escapar de seu coração de inferno. Em seu caminho, suas botas encontravam corpos e destroços. Sua visão captava detalhes horríveis tais como uma mala aberta com roupas infantis espalhadas, um par de óculos em que uma das lentes estava estilhaçada e um livro parcialmente queimado.
Tudo era uma facada de culpa. A sobrevivente era ela.
Aquela recriação brutal, porém, fazia com que sua sobrevivência parecesse a maior das traições.
Viver onde outros, mais dignos, perderam a vida. A partir do momento em que o seu mundo desabou, a sua própria existência se transformou no mais perverso dos atos de rebeldia contra a ordem natural das coisas.
Ela não deveria estar ali. Seus pés não deveriam tocar o chão, nem seus pulmões encher-se de ar; seus olhos, testemunhar o céu ao entardecer.
“Quem sou eu agora?”
Um tambor fúnebre martelava a pergunta no âmago de sua alma. A pessoa que fora antes estava morta e enterrada sob os escombros daquele dia. O que emergiu não foi um renascimento, senão um fantasma vestido com suas roupas, um ectoplasma que aprendeu a replicar seus gestos.
Algo frio, uma superfície polida e quebradiça como gelo negro, sem espaço para emoções. Como uma sentinela em um muro, separava o antes, radiante e perdido, do agora, um território árido e vigilante.
Tornara-se… o quê? Um monumento à dor? Uma traidora, cujo único crime foi permanecer de pé?
No cerne de tudo, a mais cruel das alquimias era a memória do evento, retalhada e reconstituída em um loop infinito incapaz de glorificá-lo. Reviver cada detalhe era um novo golpe, não no corpo, mas na essência do que ela julgava ser.
De repente, um empurrão brusco e anônimo a arrancou do abismo introspectivo. Ela não soube distinguir se foi um impacto de cotovelo ou de ombro, mas o fato era que Raven chocou-se contra o corpo de alguém suado e alheio.
Invadiu suas narinas o cheiro forte de álcool barato e perfume enjoativo. A música explodiu em seus tímpanos numa cascata de risos altos. O clarão difuso que ela via se revelou em cortinas de luz cortando a multidão em flashes desconexos de rostos contorcidos pelo frenesi da festa.
Raven piscou, ofuscada. O mundo conceitual da culpa se dissolveu, tomado à força pela realidade física, imediata e vulgar daquela festa abarrotada.
O fantasma foi enxotado de volta à sua caverna e o que restou foi uma mulher de carne e osso, com o ombro latejando da batida e os ouvidos apitando.
Raven precisava de um escudo, algo que a anestesiasse daquele circo de sensações e, mais importante, do tribunal interno que se instalara em sua mente.
Seus olhos vasculharam a mesa mais próxima, repleta de copos sujos e garrafas pela metade. Ele pousou os dedos no vidro gelado de uma garrafa de gim Bombay Sapphire. O azul cobalto da garrafa foi, por um instante, a cor da sua própria melancolia.
— Não posso beber nada alcoólico.
Um princípio que vinha da pessoa que outrora habitara seu corpo sussurrou uma objeção fraca em seu íntimo. Ela mesma tinha estabelecido um limite que a separava do abismo, uma das poucas fronteiras que a mantinham segura.
Mas a voz foi engolida pelo ruído da festa mais alto de sua própria necessidade.
“Um gole.“, pensou, num ato de rebeldia contra si mesma. “Apenas um gole para calar o barulho.”
Levou a garrafa aos lábios num movimento brusco. O líquido âmbar desceu direto por sua garganta como uma língua de fogo, transportando o sabor de zimbro e de um desespero elegante.
O álcool não o acalmou; foi como despejar gasolina em uma ferida aberta. O esôfago e o estômago, já tensionados pela ansiedade e pela sensação de vazio, sofreram uma queimadura.
Imediatamente, o estômago se revoltou, dando início a um espasmo incontrolável.
Já não havia tempo de procurar um refúgio. Ela se curvou sobre si mesma, com uma das mãos apoiada na mesa para se sustentar, enquanto o corpo se arqueava em um contorcionismo convulsivo.
O gim voltou misturado com o amargo da bile, numa jorrada vergonhosa no chão encharcado ao pé da mesa.
Seus olhos encheram-se de lágrimas involuntárias pela violência da expulsão. Um suor frio lhe percorreu a nuca.
Levantou o rosto pálido como a lua, com a boca ainda ardendo. Limpou os lábios usando o dorso da mão.
Cuspiu para fora o veneno que tentara ingerir. Então, restava engolir o próprio nojo e continuar. Mesmo que o caminho a levasse mais fundo ainda na própria escuridão, precisava segui-lo.
A música morreu subitamente.
Tudo aconteceu de forma abrupta, como o rompimento de um fio vital. As luzes piscantes se acalmaram. Uma iluminação crua e branca banhou o salão, realçando a beleza deteriorada daqueles que abusaram da bebida e do cansaço.
No palco improvisado, uma figura esguia e andrógina surgiu, envolta em uma fumaça residual que cheirava a incenso.
Ela empunhava um microfone, e sua voz, quando se ouviu, não tinha a entonação animada de um mestre de cerimônias, mas a solenidade lúgubre de um arauto:
— E aaaaaí, galera! A noite tá só começaaaaando! Para incendiar de vez essa festa, deem as boas-vindas aos convidados especiais da madrugada… Caaaaaarrion Kings

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