Capítulo 29 - Ecos do Mal
23:28
— Sangue, o carmesim derramado até agora é apenas uma oferta escassa. Procurem e façam deles colaboradores involuntários de nosso grande projeto.
Mais formas humanas. Mais corpos amontoados, com seus olhos vazios olhando cegamente para o abismo. Seja qual fosse o terrível objetivo, o ciclo ansiava por uma maré vermelha. Não havia escolha a não ser obedecer; era uma exigência opressiva, um estrangulamento de rendição a um plano desumano que só esperava do outro lado da morte.
A situação estava repleta de uma quietude angustiante, quebrada apenas pelo eco trêmulo das palavras de Fritz e pelo baque desesperado dos corações batendo contra as costelas.
Wolfgang esgueirou-se pelos becos pegajosos de sujeira e tristeza como um fantasma nas sombras da madrugada até alcançar uma casa que se erguia à sua frente, um esqueleto delineado contra os céus carmesim. Suas tábuas gastas estavam se deteriorando, e cada rangido do vento revelava verdades sombrias e há muito enterradas.
O que ele estava fazendo não se limitava a vasculhar o lixo. As ordens, geladas e fétidas como uma tumba, agarravam-se a ele como uma pele extra. Era um altar sinistro, esperando para ser conspurcado com tributos muito mais atrozes do que poeira e sonhos esquecidos.
Seus dedos, úmidos de suor, deslizaram pela maçaneta lascada da porta, que se abriu com um rangido. Lá dentro, a escuridão pulsava como uma entidade viva, densa e sufocante. O ar carregava o cheiro de mofo e algo muito pior – o gosto metálico de sangue, um eco horrível do propósito nefasto daquela noite.
Wolfgang atravessou a soleira, um predador silencioso entrando em um cemitério, disposto a reivindicar seu prêmio terrível em nome de um deus mais terrivelmente cruel do que os vivos jamais poderiam compreender.
A escuridão cobria a figura de uma mulher já morta que ele arrastava pelos degraus, com o rosto mutilado e irreconhecível. O corpo deslizava pelo chão a cada puxão, produzindo um som repugnante que ressoava como um último gemido aprisionado atrás das paredes em ruínas.
Na obscuridade pulverulenta, havia uma mesa velha, cuja superfície era um grotesco mosaico de poeira e fuligem, no centro da sala. O brilho do luar entrava pelas janelas quebradas, dando ao local um brilho prateado espectral.
Sobre este altar improvisado estava a primeira oferenda – uma casca vazia de uma mulher, já pálida e cerosa, olhos eternamente fixos em algum horror invisível acima. Era um presente imaculado, uma imagem enervante de pureza.
Wolfgang deu um passo para trás, pairando sobre ele o fedor da morte como um véu. Seu estômago se remexeu em desafio à terrível tarefa que tinha pela frente. Mas o controle frio do medo rapidamente sufocou qualquer vislumbre de desafio. Ele precisava pegar o outro corpo.
Ele retornou ao interior sombrio da casa, onde o piso rangia sob seu peso, como se fossem almas em tormento. Seus dedos tocaram outro corpo, retorcido e encolhido num canto, cuja vida se esvaíra tão abruptamente quanto a chama de uma vela ao vento. Inspirou profundamente e levantou o corpo em seu ombro.
Se virou e voltou para o altar, com a luz da lua brilhando nos olhos vazios e no sangue que havia escorrido.
Outro corpo, outra mulher reduzida a uma simples tela de degradação, foi acrescentado ao monte nauseante. A desfiguração, resultado da raiva de um louco, desfigurou sua pele em golpes hediondos.
Esta foi uma exposição de arte estranha, com a morte atuando como artista perverso, e não o assassinato.
Seus membros contorcidos apenas refletiam seu último e silencioso grito quando emergiram de sua boca. A sua forma não era apenas rigor mortis; sua rigidez era uma representação assustadora de seus últimos e agonizantes momentos, gravados para sempre na tela de sua carne.
— Isso é tão maravilhoso.
A pele pálida da mulher era uma tela requintada, marcada por lacerações profundas e cruéis que traçavam padrões grotescos. O sangue que uma vez jorrou dessas feridas, caiu em cascatas em riachos vermelhos que pintavam sua carne com uma elegância macabra. Seus hematomas, como flores murchas, floresciam em tons de roxo profundo e amarelo doentio.
Wolfgang deleitou-se com sua criação, uma satisfação perversa curvando seus lábios em um sorriso cruel. Ele havia liberado suas fantasias mais depravadas sobre essa alma infeliz, transformando-a em uma obra-prima grotesca, um monumento vivo aos seus desejos mais sombrios.
Deleitava-se com o poder que tinha sobre ela, saboreando o controle que exercia.
— Frágeis demais… — murmurou, quase num tom de lamento. — No fim, todas são.
Seus dedos desceram confortavelmente pela coxa ainda quente, como se estivesse testando a temperatura de um objeto recém-saído do forno. Nada em sua expressão denunciava raiva ou pressa; era apenas uma tranquilidade doentia e fria. Sem culpa nem cerimônia, ele tocava o corpo do jeito que um leitor folheia um diário antigo, sem se importar com as palavras escritas nele.
— Você até tentou, não foi? Tentou resistir. Gritou. Chorou. Mas… — ele inclinou levemente a cabeça, observando o rosto contorcido da mulher, os olhos ainda abertos em espasmo de horror — … ninguém veio. Ninguém nunca vem.
Afastou-se devagar, limpando os dedos no lenço dobrado no bolso do casaco, um gesto quase refinado. Olhou ao redor da sala para ver se havia deixado algo fora do lugar.
— No fundo, eu sou apenas… necessário. Onde há fraqueza, alguém precisa lembrar o mundo do que significa ser dominante. — Respirou fundo, como se aquilo fosse uma filosofia honesta, uma verdade pessoal. — E você, meine Kleine… você me lembrou o quanto isso ainda é fácil.
Um último olhar para o corpo. Nenhuma emoção. Apenas uma constatação indiferente.
— Não foi pessoal.
Movido por uma necessidade insaciável de desejo, sua mão deslizou por baixo da calça e da cueca. O toque persistente e o calor residual de sua pele prolongaram seu prazer perverso no ato de se masturbar. Com a respiração acelerada, foi tomado por uma onda de domínio e controle. Essa sensação de poder, nascida da violência e da morte, proporcionou-lhe o seu mais profundo prazer.
— Quando… vamos ter uma segunda vez?
O prazer pervertido que sentia era viciante, alimentando seu desejo de novos atos sádicos. Wolfgang sempre foi atraído pelos aspectos mais sombrios da natureza humana, buscando refúgio nas profundezas da sua própria depravação.
A onda de dominação que corria em suas veias era como um narcótico, escravizando-o à dança bizarra do poder e da rendição. A cada ato de brutalidade, ele testava os limites dos seus próprios impulsos sádicos, esperando que a próxima vítima satisfizesse a sua vontade.
— O que você está pensando? Parece que carrega o peso do mundo nas costas.
Ouviu-se uma voz do lado de fora. Wolf parou com o que estava fazendo, se aproximou da janela e observou um par de jovens passeando pela rua. Aquilo o encheu de ódio.
— Filhos da puta… Onde está a Mavie? Não quero deixar duas peças faltando.
E enquanto o Wolfgang estava à janela, antes de um ato sinistro, o espaço aberto nos arredores de Hill City foi banhado por um brilho suave da lua.
O vento sussurrava por entre as árvores, testemunhando o evento em silêncio.
A misteriosa e imperturbável Mavie estava submersa na escuridão da noite, com sua silhueta oculta pelas sombras inquietantes que o parque conferia.
A forma sem vida que ela puxava em seus braços era um cadáver, com a pele marcada por cortes profundos e mutilações desagradáveis.
O vento fazia com que os galhos das árvores murmurassem com desdém, dando a impressão de que a natureza era contra o espetáculo horrível que estava acontecendo.
Ela colocou o corpo no chão frio. Havia um odor penetrante de morte, uma mistura de matéria em decomposição e desesperança.
A luz pálida da lua lançava um brilho sinistro no rosto de Mavie, destacando a frieza em seus olhos.
Ela enfiou a mão na bolsa e tirou as luvas, calçando-as cuidadosamente. Quando começou a arrumar meticulosamente os membros dilacerados e a carne mutilada, uma sensação de satisfação se espalhou por seus lábios.
Mavie sempre encontrou um estranho conforto no caos das consequências, encontrando consolo na ordem que criava a partir da destruição.
O corpo infantil, que havia sido exposto a abusos, estava coberto de sombras e parecia irreconhecível. Sua pele estava rasgada. Sua pequena estrutura estava contorcida de dor.
Mavie, com um coração tão sombrio quanto a noite que a cercava, sentiu um lampejo de remorso, mas rapidamente o sufocou com sua fria indiferença.
A satisfação perversa que ela obtinha com seus atos sórdidos se intensificou enquanto ela olhava para a figura sem vida diante de si, sabendo que havia extinguido a luz daquela alma inocente para sempre.
— Tudo por ele.
Os corpos que se sobrepunham criaram uma escultura odiosa feita de dor e carne.
O segundo corpo – desmembrados pela crueldade da violência – e a vítima menor foram agrupados para criar um triste mosaico de depravação e morte.
Como se as árvores guardassem um segredo aterrorizante, preservando a memória do que acabara de acontecer, o vento sussurrava entre as folhas.
— Sempre por ele.
Baseado na convicção de Klaus de que a vida não acabava realmente depois da morte, em vez disso, era uma porta para um mundo de segredos e potencialidades não realizadas, Mavie e Wolfgang pensavam que podiam transcender os limites da existência humana e tornar-se um ser que existia entre os vivos e os mortos através destes ritos sacrílegos.
Cada corte que faziam num corpo, cada gota de sangue que deixavam correr, era um sacrifício oferecido à divindade malévola que esperavam invocar. As referidas cerimônias, que se distinguiam por uma liturgia perversa e distorcida, eram a chave para abrir as comportas do além e deixar as sombras transbordarem para o reino dos vivos.
O Mephisto via os cadáveres como mais do que simples coisas em decomposição; eram instrumentos, contentores para a força maléfica que ansiava controlar.
— Espero que dê certo.
A lança ensanguentada de Mavie, sua arma e companheira, estava por perto, incrustada na terra e brilhando ao luar. Suas bordas afiadas brilhavam com uma aura ameaçadora, como se guardasse os segredos de inúmeras batalhas travadas.
Aproximou-se do objeto e o retirou do solo.
— Quanto tempo falta ainda?
Dando meia-volta, ela andou pelas ruas da cidade afora da planície. Ao dobrar uma curva, avistou dois jovens caminhando pelo mesmo caminho, conversando.
— Não é medo, é mais como um incômodo geral. Como se algo estivesse fora de sintonia.
— Já lidamos com tantas situações esquisitas, Lewis. Achei que você estivesse acostumado com a ideia de que a normalidade tá fora de cogitação.
As luzes da rua ao longe lançavam uma sombra irregular sobre eles, destacando a pureza jovem que se destacava na escuridão que se seguiu.
Mavie escondeu-se instantaneamente nas sombras, observando-os casualmente enquanto se aproximavam.
Um estreito vão entre duas casas proporcionava um abrigo improvisado à sua esquerda. Ela deslizou como uma sombra ao longo da parede, até a pequena abertura.
Latas de lixo estavam empilhadas em um canto para maior proteção. Mavie optou por se esconder ali, misturando-se às margens como se fossem uma parte natural da paisagem.
“Agentes?”, perguntou-se, aguçada por um misto de curiosidade e suspeita, enquanto os seus olhos perscrutavam ambos à sua frente.
Aqueles que entravam no espaço, identificados pelos seus uniformes padronizados, desencadeavam uma reação calculada.
“Perfeito.”
A palavra escapou dos lábios de Mavie com uma inflexão sutil, um tom que misturava aprovação e fria determinação. A perfeição, neste caso, não era apenas uma aprovação casual; era uma aprovação discreta de que os elementos do plano estavam a alinhar-se como desejado.
A residência que Klaus havia reivindicado como seu santuário parecia um monólito negligenciado. Ele irradiava dilapidação, e suas paredes desgastadas davam a impressão de murmurar segredos veneráveis, servindo como um santuário para ritos proibidos.
Suas janelas eram olhos vazios, olhando cegamente para a noite. Um vento frio sussurrava pelas aberturas à sala de estar, carregando consigo uma corrente subterrânea de malícia, alertando qualquer um que ousasse contemplar a natureza do que residia lá dentro.
— Ele está vindo para ver você.
A fronteira era cercada por árvores, cujos membros lembravam os dedos estendidos de um esqueleto. Os arredores adquiriram um ar espectral com a passagem do luar sobre as folhas irregulares, iluminando o rosto de uma criança, a qual Klaus se agachou à sua frente.
Sua pele clara e seus cabelos castanhos emitiam um leve brilho em ondas suaves que caíam sobre seus ombros. Um círculo de pequenas flores coroava seu cabelo, enfatizando seu charme inato. Ela usava um vestido vibrante adornado com padrões florais.
— E quando ele te ver aqui, vai ser o suficiente. — Ele traçou a bochecha da criança com um dedo, um gesto ao mesmo tempo terno e ameaçador. — Será o fim. Para ele. Para tudo.
Ela segurou o dorso da mão que a havia tocado. Acenou levemente com a cabeça, como se concordasse com suas palavras.
— Sim, senhor.
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