Capítulo 30 - Testemunha das Estrelas
Dairy Queen — 23:42 pm.
Assim que entendi o que Benjamin precisava, eu o acolhi. Mas, no instante em que senti o corpo dele ceder, tive certeza de que ele não estava apenas procurando um lugar para se apoiar, mas um porto. Um abrigo que suportasse tudo o que ele não conseguia expressar em voz alta. O cansaço, o medo, tal mistura de culpa e confusão que vem de confiar em quem não se deve… Klaus Fritz era só um nome, mas tinha deixado uma marca pesada demais.
A ligação que tínhamos era tão forte que se formou no silêncio, sem a necessidade de explicações, apenas com a nossa presença um na vida do outro. Enquanto ele respirava fundo com a cabeça encostada no meu ombro, eu sentia nascer dentro de mim uma espécie de pacto. Um voto mudo de que eu estaria ali enquanto ele quisesse ficar. Para segurar as pontas quando ele não conseguisse mais.
Aos poucos, nos tornamos isso. Um abrigo para o outro. Eu escutava mais do que falava, e ele, mesmo quando tentava esconder, deixava escapar pedaços do que estava guardando. Doía vê-lo carregar tudo em quietude, porém também me fortalecia poder oferecer alguma paz, nem que fosse em pequenas doses. E, no fundo, foi ali que tudo começou quando me tornei alguém em quem ele pudesse confiar de verdade, livremente.
Comecei a levá-lo a lugares onde ninguém notaria o que estava acontecendo. Ruas quase sempre vazias, cobertas pela escuridão das madrugadas. Andávamos juntos por esses lugares à margem do mundo, atravessando espaços que, à primeira vista, pareciam normais, se não fosse a estranheza quase reconfortante que eles guardavam para nós.
Sempre que podíamos, parávamos em restaurantes pouco chamativos, ou em pontos da cidade que aparentemente estavam esquecidos. Não tinham placas chamativas ou luzes convidando para entrar. Eram como a gente e, assim como nós, guardavam histórias pesadas demais.
Com ele, mesmo um jantar se tornava algo clandestino. Como se comer em paz fosse um privilégio raro. E, por mais estranho que pareça, era nesses momentos que eu mais sentia que estava fazendo a coisa certa. Porque não importava onde estivéssemos, o importante era que Benjamin não estava sozinho.
Cada local que escolhemos para saciar os nossos desejos parecia exigir também uma pequena dose de audácia e aventura.
Em vez de as portas estarem abertas, a entrada era conseguida através de uma espécie de invasão voluntária, em que passar o limiar era simultaneamente um desafio e uma afirmação de domínio próprio.
A porta da cozinha rangeu quando Benjamin a abriu. O lugar tinha cheiro de fritura velha misturado com um toque de gordura inescapável. As luzes tremeluziam, letreiros de néon piscavam preguiçosamente do lado de fora, e as cabines de couro rachado ofereciam mais história do que conforto.
Benjamin hesitou, um arrepio subiu pela espinha dele.
— Sério… esse lugar parece cenário de filme de terror. Tô esperando a qualquer momento a gente esbarrar numa reunião de vampiros no fundo da cozinha.
Eu dei um sorriso torto e o cutuquei no ombro.
— Vai saber. Mas, pelo que eu tô vendo das batatas fritas, a única coisa que tá sugando sangue aqui é o ketchup velho.
Com uma risadinha lenta, como se a piada tivesse demorado para chegar, deu a entender que tinha valido a pena.
Recostei-me na cadeira, olhando o salão um tanto escuro, sujo e abarrotado de lembranças que jamais conheceremos.
— E aí, essa cidade é sempre assim? — perguntei, cruzando os braços. — Quero dizer, além dessa vibe meio estranha, o que mais rola por aqui?
Benjamin ajeitou a gola da jaqueta, o olhar ainda meio distante.
— Nada demais. Lugar pequeno, tem gente que tenta fazer a vida, tem gente que só tenta não se ferrar. Mas ninguém fica parado muito tempo.
Com um sorriso meio cínico, confirmou o que eu já pressentia: tinha coisa de verdade naquilo. Que ele não estava falando apenas sobre o lugar, mas sobre si mesmo também.
— Às vezes eu penso que esse lugar aqui tem mais segredo do que o sol tem luz. — Benjamin batia o dedo na mesa meio suja, olhando fixo pra uma mancha qualquer no tampo. — E eu, bem… tô tentando não ser só mais um desses segredos.
Senti que aquele homem estava se abrindo sem precisar de convite e balancei a cabeça, puxando a cadeira para mais perto.
— Não tá fácil pra ninguém mesmo. Mas uma coisa que eu já saquei é que a gente não sai dessa sozinho. Por isso que tamo aqui, no meio desse caos todo, tentando achar um jeito de não se afundar.
Benjamin ficou quieto por um tempo, encarando o néon piscar e o azul esquisito refletido nos olhos dele. Então, finalmente, voltou seu olhar para mim.
— Valeu por não me deixar nessa.
Eu dei um sorriso meio torto.
— Ninguém fica largado por aqui.
Benjamin deu de ombros, meio sem jeito.
— Em Hill City… Antigamente, até rolavam algumas coisas. Mas, pensando bem, acho que nunca realmente experimentei nada disso.
A curiosidade que surgiu quando a conversa ficou séria fez com que eu arqueasse a sobrancelha.
— Por que não? Tem tanta coisa legal pra fazer. Filme, um rango decente, até uma partida de videogame… — Minha voz caiu no meio da frase, percebendo que talvez estivesse pisando em terreno sensível.
Ele suspirou, olhando a mesa com a ponta do dedo, desenhando padrões imaginários.
— Minha mãe… ela tentava me tirar do quarto o tempo todo. Mas eu nunca me animei muito. Na real, as histórias que eu lia nas HQs pareciam mais reais que o mundo lá fora.
Eu ri, mexendo no cabelo, lembrando de mim mesmo.
— Olha quem fala, Sr. Não preciso de amigos, tenho meus quadrinhos. Deve ter sido uma vida meio esquisita.
Benjamin ficou sem graça. Suas bochechas ganharam um tom corado tímido, de quem foi pego com a boca na botija.
— Não é minha culpa se os livros são mais interessantes que… gente.
Eu rolei os olhos, sorrindo, e me levantei devagar da cadeira barulhenta. Estiquei os braços como se fosse espreguiçar, mas aproveitei para passar um braço por cima dos ombros dele, puxando-o de leve.
— Para com isso. A gente só tá começando tarde, só isso. Hoje à noite é a sua chance de recuperar o tempo perdido. Me considera seu guia turístico oficial pra tudo que essa cidade tem de bom, começando com o melhor lugar por aqui pra comer uma gordura honesta.
Benjamin fez uma careta instantânea.
— Urgh, não… obrigado.
Soltei uma risada curta, sincera, e dei dois tapinhas no ombro dele antes de soltar o braço e voltar para a beirada da mesa. Sentei-me de lado, com uma perna esticada e a outra pendurada, apoiando o peso nos braços para trás.
— Justo. Eu te entendo. Pra ser sincero, nem eu curto muito essas coisas. Minha irmã vive pra festa, tipo, ela seria a primeira a dançar em cima de uma mesa. Eu meio que fico com o papel de observador.
Soltou um suspiro abafado. Coçou a nuca com uma expressão desanimada ao se lembrar de que já havia tentado explicar aquilo antes, mas que ninguém escutava de verdade.
— A multidão. Tantos rostos estranhos, aquela barulheira que entra no seu crânio e não sai… é horrível. Sempre me acham esquisito por preferir um livro no sofá do que um monte de gente suada pulando numa pista de dança.
Fiquei olhando pra ele por um segundo, avaliando aquele desabafo com mais atenção do que talvez ele esperasse.
— Estranho? Não, mano. Só… diferente. E isso não é ruim. Curte a própria companhia? Ótimo. Muita gente nem consegue ficar sozinha sem surtar. E olha, quem liga pro que os outros acham?
Ele bufou, meio sarcástico, mas com um sorriso torto no canto da boca.
— Fácil pra você dizer, Sr. Todo-Mundo-Gosta-De-Você.
— Ah, por favor — dei uma risada curta —, você devia ver a quantidade de vezes que já fiquei preso no banheiro fingindo que tava ocupado só pra escapar de uma conversa fiada. Popularidade é só uma palavra bonita pra sei me virar fingindo que tô bem.
Benjamin me lançou um olhar que mesclava surpresa e alívio, talvez porque ele não era tão diferente assim.
— Sério?
— Sério. A real é que a gente tá todo mundo tentando fingir que sabe o que tá fazendo. Só muda o estilo da máscara.
O garoto coçou a testa, encolheu os ombros e deixou o corpo relaxar só um pouco. Foi o suficiente. Um sinal de que, finalmente, ele estava baixando a guarda.
— Você fala como se tivesse trinta anos a mais que eu.
— É que não dá pra viver se importando com o que os outros acham. A maioria mal sabe lidar com a própria vida, quem dirá com a sua. Então, deixa pra lá. Se for pra escolher entre multidão falsa e um hambúrguer decente, irmão… eu fico com o lanche. Todo. Santo. Dia.
Benjamin fez que sim com a cabeça, devagar, como quem tava mastigando as palavras. Puxou o cardápio meio amarrotado de cima do balcão e abriu, com o papel rangendo entre os dedos.
— É… talvez um hambúrguer seja um destino melhor pra uma sexta-feira do que ficar esbarrando em gente bêbada e ouvindo piada sem graça de macho tentando ser engraçado.
— Agora sim, tamo falando a mesma língua.
Me joguei no banco de vinil do outro lado da mesa e estiquei as pernas.
— Cheeseburger clássico… ou o tal do Inferno no Pão? — Olhou pra mim de canto. — Parece que colocaram pimenta suficiente nesse aqui pra matar um cavalo.
— Depende. Tá se sentindo corajoso ou só com fome?
Ele riu de novo, agora mais solto.
— Vai ser o clássico hoje, então. Mas da próxima vez, a gente vai num lugar que eu escolher.
Bati de leve na mesa com a palma aberta, satisfeito com a resposta.
— Fechado. Mas ó… se for restaurante vegano, vou fingir que a bateria do meu celular morreu e desaparecer no meio do caminho.
— Nada de salada com nome complicado.
Ainda não éramos melhores amigos, apesar de já termos uma conexão se formando, um entendimento compartilhado que transcendia rótulos como “estrangeiro” ou “popular”. Começava algo real, construído no respeito mútuo e no simples prazer de desfrutar da companhia um do outro, longe do barulho da multidão.
De repente, meu estômago deu um nó. Eu precisava contar algo a Benjamin, algo que poderia destruir a frágil confiança que estávamos construindo. Respirando fundo, soltei:
— Ei, escute, tem uma coisa que preciso esclarecer.
Os olhos de Benjamin saltaram do cardápio, um lampejo de preocupação cruzando suas feições.
— O que é?
— Olha, eu prometi manter isso seguro, e isso significa ser honesto com você. A verdade é que algo semelhante aconteceu comigo uma vez. A vida ficou… confusa. Muitas coisas ruins aconteceram. — As palavras pareciam pesadas na minha língua, a memória era uma mancha escura no meu passado.
Ele permaneceu em silêncio. Havia uma mistura de emoções girando em seus olhos – curiosidade, uma pitada de suspeita, talvez até um pouco de compreensão.
— Você deve ter ouvido falar sobre toda aquela coisa da escola. — Arrisquei, minha voz pouco acima de um sussurro. — Aquele que está em todos os noticiários.
Não respondeu, mas a maneira como sua testa franziu me disse que ele sabia exatamente a que eu estava me referindo.
— Sim. — Me forcei a continuar, encontrando seu olhar de frente. — Era eu.
Sua mão apertou o cardápio, os nós dos dedos ficando brancos. Ele abaixou-o lentamente, seus olhos fixos nos meus com uma mistura de choque e descrença.
— Tá tudo uma bagunça. — Uma risada amarga escapou dos meus lábios. — O mesmo cara que… bem, que fez o que fez, tentando oferecer algum conforto a uma criança. Acredite, entendi a ironia.
A vergonha e o arrependimento foram difíceis de suportar, mas também restava uma ponta de esperança. Compartilhar minha verdade talvez pudesse construir uma ponte entre nós e estabelecer uma relação de confiança com Benjamin.
— Sabe aquela sensação de estar preso num lugar… onde cada volta que cê dá só te joga mais fundo? Tipo um labirinto, desses que parecem ter sido desenhados pra te ferrar. Tô vivendo isso. E nem tô exagerando. É tipo andar em círculos, achando que a saída tá a três passos… mas ela sempre desaparece.
Benjamin desviou o olhar, mas não disse nada. Apenas escutava. O silêncio dele era barulhento, não julgava, tampouco deixava barato.
— E o pior… — continuei, encarando o tampo da mesa como se fosse confessar pra ele. — … é que cada escolha errada que eu ainda faço me empurra mais pra dentro. Como se eu tivesse cavando com as próprias mãos. Não tenho mais ninguém. Só eu, esse pessoal da agência, minhas decisões merda e uma versão minha que eu já nem reconheço.
Um grilo cantou do lado de fora.
Respirei fundo. Me forcei a olhar pra ele.
— Mas aí, Ben… — falei, devagar. — O que eu percebi é que, mesmo nos labirintos mais fodidos, tem sempre uma saída escondida. Pode não ser bonita, pode ser apertada, mas tá lá. Só que você precisa olhar de outro jeito, parar de bater a cabeça na parede e tentar outro caminho. Nem que seja rastejando.
Benjamin largou o cardápio e cruzou os braços na mesa. Seus olhos agora estavam grudados nos meus. Não dava para saber se ele estava bravo, triste ou apenas incomodado com as coisas ruins que acontecem no mundo.
— Então o que você tá me dizendo é que… mesmo quando tudo parece afundando, ainda tem uma brecha?
— É nisso que eu tô tentando acreditar. Não que as coisas vão melhorar do nada… mas que dá pra achar um jeito. Nem que seja empurrando parede com a testa até uma rachar.
— Você é mesmo um cara esquisito, Krynt.
A gente ficou ali por mais alguns segundos. O letreiro tremeluziu de novo. O cheiro de fritura continuava uma merda. Mas, de algum jeito, aquela mesa engordurada virou o centro do mundo.
O peso do meu fardo não desapareceu. Ele grudou em mim como o frescor úmido da noite, penetrando em meus ossos e causando um desconforto contínuo. Era um peso que não conseguia remover completamente.
Por algum motivo, lágrimas escorriam silenciosamente por seu rosto. Um gesto tão raro, tão vulnerável, que me pegou de surpresa.
— Qual é, cara, o que tá pegando?
Ele tentou enxugar as lágrimas com as mãos trêmulas, um esforço para conter uma emoção que transbordava de si. Era como se a barreira que ele construiu ao seu redor estivesse finalmente cedendo, permitindo que suas emoções fluíssem livremente.
— Sério, o que te fez assim? Isso é meio estranho.
— Obrigado… — Ele finalmente conseguiu dizer, uma palavra simples carregando o peso de mil emoções não ditas.
O momento se estendeu entre nós, um espaço silencioso onde anos de sentimentos reprimidos poderiam finalmente se espalhar.
— O mundo é cruel, mas… você não.
Suas lágrimas eram um testemunho de sua vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, de sua coragem por deixá-las fluir.
— Ah… claro. — Andei em sua direção para enxugar uma lágrima perdida. — O mundo pode ser um lugar muito difícil, mas isso não significa que todos devem ser.
Nunca antes, em toda a sua vida, ele havia encontrado alguém que o compreendesse tão profundamente, que o acolhesse em sua vulnerabilidade.
Eu, por minha vez, senti que estava desvendando camadas do seu ser que ele havia mantido escondidas por muito tempo.
Em meio à escuridão da noite, sob as estrelas cintilantes, estávamos nos abrindo um para o outro, construindo um laço que resistiria aos desafios que ainda estavam por vir.
— Pode me levar para casa da Amy?
— Amy… — repeti. — Sua namorada?
Benjamin bufou, revirando os olhos como se eu tivesse falado a maior besteira do mundo.
— Ela é minha amiga, cara.
— Tô zoando contigo, relaxa.
E mesmo na brincadeira, me peguei lembrando dela. Mesmo longe, de alguma forma ela sempre parecia perto nos piores momentos. Engraçado como a distância não interfere nisso — já bastava lembrar a maneira como ela falava meu nome para o mundo se tornar menos tóxico. Tinha dias em que eu quase esquecia quem éramos. Em outros, eu tinha a sensação de que só ela segurava o fio que me impedia de despencar de vez.
— O que foi? — perguntou ele.
— Nada. — Suspirei fundo. — Bom, se ela é sua amiga, tamo indo lá então. Só me guia pelo caminho.
*** *** ***
O som dos meus passos ressoavam no pavimento.
Eu observava as fachadas das casas, que tinham uma variedade de estilos arquitetônicos e cada uma oferecia uma visão única. O bairro era tranquilo, com jardins bem cuidados e vasos de flores a adornar as varandas.
— A casa da Amy é ali, a última à esquerda. — Benjamin apontou para uma casa pintada com tons suaves, com luzes amareladas brilhando pelas janelas.
A caminhada prosseguiu e o ambiente urbano deu lugar a um bairro mais residencial. Casas com quintais espaçosos e luzes acolhedoras dão ao bairro uma atmosfera familiar.
À medida que se aproximavam da casa, os detalhes da arquitetura destacavam-se.
A fachada da casa de Amy era uma mistura de tijolos expostos e janelas adornadas com cortinas que balançavam ligeiramente ao sabor da brisa.
— É bonito. — disse, avaliando a residência. — Depois do que aconteceu, não garanto que ela esteja aí. Parece vazia.
— Me espera aqui.
Ao aproximar-se da porta, Benjamin bateu levemente, revelando a ansiedade de um amigo que apresenta outro ao seu círculo pessoal.
A antecipação encheu o ar enquanto esperavam por uma resposta, e o som abafado dos passos de alguém a aproximar-se ecoou pelo corredor do outro lado da porta.
A madeira rangeu suavemente quando a porta se abriu, revelando Amy, cujo sorriso caloroso dissipou qualquer resquício de nervosismo que pudesse ter pairado no ar.
— Oi, Ben!
Os seus olhos curiosos perscrutaram a figura do seu convidado, prontos para receber mais uma pessoa em sua casa.
— Olha! Ele é seu amigo?
O calor da recepção transformou-se num frio cortante que me percorreu a espinha.
O sorriso caloroso da Amy, em vez de trazer conforto, provocou-me uma profunda confusão.
Como um fantasma de um passado recente, Amy estava ali, aparentemente viva, mas os meus sentidos insistiam numa verdade mais sombria.
“Como caralhos?!”
O espanto apoderou-se da minha língua, transformando em silêncio qualquer saudação planeada. No entanto, algo sinistro estava à espreita na escuridão. Foi então que, como um pesadelo que se materializava, um vulto emergiu das sombras.
— Benjamin!
Uma figura ágil, movendo-se com destreza predatória, convergiu rapidamente para ele. O ar pareceu congelar quando me notei ameaça iminente. Num movimento fluido e rápido, coloquei-me entre Benjamin e o recém-chegado, empurrando a criança para trás e assumindo uma postura defensiva.
Surpreendido pela resposta inesperada, ele ajustou a sua abordagem, reencaminhando o seu ataque para mim. Um objeto afiado, antes escondido na penumbra, brilhou brevemente na luz, e a intenção assassina se manifestou claramente.
Num instante de desespero e adrenalina, consegui esquivar-me parcialmente do golpe iminente, mas não escapei ileso. O objeto afiado deixou um rastro de dor na minha pele, um corte profundo que marcou a ousada defesa.
A dor aguda alimentou a minha mente, e eu insisti com um golpe rápido, afastando o indivíduo o tempo suficiente para me permitir segurar Benjamin e podermos recuar.
— Ah… merda.
O corte profundo marcou a minha pele no lado esquerdo do meu tronco, estendendo-se desde o topo do meu ombro até ao meio das minhas costelas.O sangue escorria, formando um rastro vermelho que lhe manchava a roupa e delineava a extensão da ferida.
— Benjamin Moore… Nossa, vejo que você fez um novo amigo. Ainda não o matou?
A voz de Fritz, contida e fria, perfurou o ar enquanto suas palavras pendiam como um desejo vil. A tensão se enroscou ao redor de nós como uma serpente prestes a atacar.
— Cala a boca, porra. — disse num tom alarmante. — Ou prefere que eu te cale à força? Tava querendo quebrar a cara de um estranho mesmo.
Uma expressão de surpresa nublou seu semblante por um momento. Suas feições geralmente compostas sendo surpreendidas por minha atitude desafiadora. A faísca de fúria dentro de mim ardeu mais intensamente, alimentada pela minha vontade de socá-lo.
— Corajoso… Um cão hostil, eu diria.
As palavras de Fritz estavam cheias de desdém puro, sua voz envolvida em uma certeza irônica que ecoava pelo ambiente. Seu sorriso mordaz abriu em seus lábios, revelando o prazer que ele tinha em subestimar a situação.
Meu olhar agudo, cheio de aversão, encontrou-se com o dele.
— Benjamin, o corajoso pretendente, pronto para defender sua amiga. Mas, como é engraçado que até mesmo os heróis mais valentes possam ser vítimas de destinos cruéis.
Ele agachou-se ao lado da garota, passando os seus dedos sujos pelo rosto dela.
— Amy, a donzela em perigo, esperando para ser resgatada.
Inclinou a cabeça, como se estivesse a contemplar uma obra de arte macabra.
— Ah, um casal moderninho e romântico. Um amor que floresce nas sombras da tragédia, como uma rosa cultivada em um jardim de espinhos. Veja bem, o amor é a arma favorita que o destino usa para nos ferir.
Ele deu uma risada baixa e doentia antes de continuar:
— O que é o amor, senão uma armadilha que vocês humanos criam para si mesmos? Uma teia entrelaçada com emoções torturadas, uma ilusão de redenção que muitas vezes leva à própria queda.
Parecia saborear cada palavra, como se estivesse a provar um vinho envelhecido, enriquecido com o sofrimento humano.
Apesar de tudo, Amy ainda estava sorrindo inocentemente.
Benjamin manteve-se concentrado nela, sem se dar conta do esquema maléfico que estava a ser levado a cabo.
Os olhos dela, no entanto, refletiam a opacidade de um destino brutalmente interrompido, em vez da luz da vida.
Benjamin sentiu o choque do reconhecimento nos seus olhos, e então a realidade atingiu-o como um deslizamento de terra deprimente.
— Amy…
O que restava dela era uma casca fantasmagórica da pessoa que ela tinha sido um dia.
Benjamin deparou-se com a visão da morte, inevitável e implacável, como um abraço gélido de um destino certo.
— Tem que ser muito sem noção pra fazer uma parada dessa, né, ô seu arrombado?!
Ele parecia surpreendido com a minha reação, como se a minha agressividade desafiadora o tivesse apanhado desprevenido. Mas isto era apenas o início. As palavras afiadas e os olhares desafiadores eram apenas o começo.
— Não…
A dor e a raiva agitavam-se dentro de Benjamin como uma tempestade de emoções. Lágrimas derramadas pelo seu rosto, e os seus olhos ardiam com o calor da raiva controlada. O seu coração estava cheio de revolta e desespero, fazendo com que ele caísse impotentemente de joelhos sobre o chão.
A visão de Amy presa a um destino injusto era como uma lança perfurando seu coração e enviando uma onda venenosa de desesperança por todo o seu corpo.
O grito contido dentro de Benjamin encontrou finalmente um escape.
— Eu te odeio!
Sua última sentença pendia no ar como um desabafo.
— Eu te odeio do fundo do meu coração!
Da sua esfera sombria, ele deliciava-se a observar a angústia de Benjamin. Os seus olhos estavam cheios de um desejo desumano enquanto saboreava cada segundo do desastre que tinha planeado.
Um sorriso abominável deformou o seu rosto, espalhando a alegria sinistra de um diretor a conduzir uma sinfonia de dor.
Carregado por essas emoções negativas, Klaus disse:
⌊ Cicatrizes ⌉
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