Capítulo 31 - Desabando em carne e sangue
Raven estava encostada em uma pilastra descascada perto do clube. Seus olhos acompanhavam o movimento dos técnicos que trocavam cabos e instrumentos no palco. Os últimos acordes da banda anterior ainda ressoavam no ambiente, ofuscados pelo burburinho de conversas dispersas e risadas alcoolizadas. No entanto, algo diferente chamava a atenção agora. O clima tornava-se gradativamente mais denso. A atmosfera estava eletricamente carregada, à espera de uma tempestade que não se anuncia com trovões, mas silenciosamente.
Então a próxima banda subiu ao palco.
Quatro integrantes tomaram suas posições, todos vestindo roupas pretas coladas ao corpo, cheias de fios e placas metálicas costuradas no tecido. O vocalista era um homem magro de olhos vidrados, preso em transe, segurando um microfone sem fio que lembrava um transmissor de rádio militar. O guitarrista usava uma máscara de soldador espelhada, e os tambores da bateria estavam envoltos por cabos que se conectavam diretamente a um sintetizador analógico posicionado no chão, operado por um quinto membro, um técnico que não tocava instrumentos, mas modulava frequências com botões e alavancas.
De repente, uma batida seca ecoou das caixas de som. Essa sequência cadenciada de pulsos eletrônicos não era música no sentido tradicional, soava quase como o ritmo de um coração artificial. Em seguida, a guitarra entrou, fazendo mais lembrar uma sirene desafinada cruzando com o grito de um modem discado.
No começo, o público reagiu como faz costumeiramente sob o efeito da empolgação: as mãos para o alto e as cabeças balançando. Em seguida, no entanto, algo mudou.
O som saía das caixas de som, atravessava o ar e entrava direto na pele das pessoas. Os líquidos dançavam em ondas frenéticas dentro dos copos sobre as mesas, respingando para fora devido aos tremores provocados pelas frequências baixas. Os quadros nas paredes vibravam ligeiramente. Os lustres, para os quais se podia chamar aquelas estruturas de ferro enferrujado, começaram a oscilar como pêndulos.
Raven permaneceu com os olhos focados. Seu instinto imediatamente reconheceu que não se tratava de uma apresentação comum. Era intencional. Premeditada. A música estava em outra camada. Conforme novas variações eram executadas, uma nota ou frequência específica se sobressaía, mexendo com o ambiente ao redor, com uma intensidade que beirava a tentativa de encontrar a ressonância exata das coisas. Eles queriam acordar algo que estava adormecido… ou escondido.
Ao redor de Raven, a multidão começou a se transformar. O processo não era imediato, mas sim como um vírus se espalhando discretamente. Primeiro vieram as risadas. Baixas, tensas, escapando de bocas entreabertas de quem riu, porém não entendeu direito a piada — nem mesmo quem a contou. Um grupo de três garotas encostadas perto da parede trocou olhares, e uma delas tentou disfarçar o nervosismo com um sorriso que não alcançava os olhos. Os dedos de outra branqueavam com a força com que apertava a garrafa.
Alguns começaram a tapar os ouvidos, não por causa do som, mas pela pressão que parecia vir de dentro. Como se os próprios ossos estivessem vibrando, como se o som estivesse atravessando o tecido e ecoando por baixo da pele. Havia olhos arregalados por todo lado — alguns perdidos, outros fixos, alguns molhados. Um cara alto com tatuagens no pescoço apertava os próprios braços como se estivesse tentando impedir alguma coisa de escapar de dentro de si.
Raven era a única que ainda resistia, mas até ela sentia o puxão sutil, como dedos frios roçando a base de sua nuca.
As luzes, dominadas pela energia que impregnava o local, piscavam com uma intensidade estroboscópica antes de se apagarem abruptamente.
As lâmpadas que resistiram lançaram um brilho fraco e instável, deixando a sala em um estado de escuridão sufocante.
No palco, a situação havia chegado a um ponto crítico. As cortinas vibraram como se tivessem sido atingidas por um vendaval invisível. As fibras dos tecidos começaram a se romper com o atrito, enquanto o calor gerado pelas oscilações aumentava exponencialmente.
Então aconteceu o inesperado. Uma pequena faísca surgiu no emaranhado de cabos que serpenteavam pelo chão do palco. O fio defeituoso, superaquecido pelo ataque incessante das ondas sonoras, rompeu.
A faísca atingiu o tecido seco da cortina e, num instante, uma chama saltou descontroladamente, alimentada pelo caos à sua volta. O fogo alastrou-se como uma criatura faminta, devorando a cortina e subindo rapidamente pelas estruturas de madeira.
Cicatrizes transcendiam a simples manifestação de poder; simbolizavam um grito acumulado de dor e desespero, a expressão física de tudo o que o portador havia suportado. Todas as emoções reprimidas e todos os traumas enterrados emergiam como fissuras na realidade. Sob a pele, a energia negativa borbulhava como um líquido corrosivo prestes a transborda e suas marcas se tornavam visíveis, abrindo caminho para o inevitável.
Um surto.
A reação foi imediata. O público, que lutava para entender o que estava a acontecer, entrou em pânico. Gritos perfuraram o ar enquanto as pessoas procuravam uma saída. Alguns tropeçaram em móveis derrubados, outros tentaram abrir caminho no meio da confusão.
O chão tremeu levemente antes de rachar em pontos específicos. Do teto, começaram a cair partículas de pó, que balançavam no ar como uma poeira tóxica. Ondas de energia negativa emanaram do epicentro, sobrecarregando os sentidos.
Muitas pessoas corriam loucamente, desorientadas. Os gritos eram o som primal do desespero humano, um apelo inútil contra um destino que se aproximava com uma inevitabilidade esmagadora.
Uma mulher tropeçou em uma garrafa caída no canto da sala e caiu de joelhos. O tombo rasgou sua pele contra os cacos de vidro do chão, que se misturaram com o sangue e a sujeira acumulada. Tentou se levantar, mas um empurrão de um homem a fez cair novamente, desesperadamente tentando segurar algo sólido com as unhas.
Perto da entrada principal, um grupo de pessoas se pressionava contra uma porta dupla de metal, que se tornara o centro de sua esperança. No entanto, a saída estava bloqueada, os mecanismos estavam emperrados ou talvez selados por algum peso externo. Um homem corpulento batia na porta. Golpes como esse o esgotavam cada vez mais, mas ele não parava.
A fumaça, tóxica e espessa, invadia o espaço, transformando o ar num obstáculo traiçoeiro que roubava o fôlego daqueles que ainda lutavam para sobreviver. Tosses convulsivas se ouviam. Mãos trêmulas procurava instintivamente algo que pudesse servir de barreira para os pulmões atormentados.
Um jovem, com o rosto coberto de fuligem, usava o braço da camisa para cobrir a boca, mas seus olhos lacrimejantes denunciavam o esforço inútil. Deu dois passos hesitantes em direção a ela, mas parou ao ver a cor vermelho-escura que se espalhava pelo corpo. Sangue misturava-se às lágrimas no chão, numa poça que refletia o brilho vacilante das chamas.
Com pequenos estalos, o teto começou a ceder. Uma viga metálica se dobrou quando os parafusos se soltaram das paredes rapidamente. O colapso culminou em uma explosão de concreto e faíscas, que caiu diretamente sobre dois homens encurralados contra a parede.
O impacto os esmagou instantaneamente, transformando-os em figuras indistintas sob os escombros. O som de ossos quebrando misturou-se ao barulho abafado da estrutura desabando.
A multidão se debatia em um frenesi irracional, como um mar de corpos que não encontrava terra firme. Outra adolescente foi jogada. Estendeu a mão, buscando apoio onde não havia nada. O vestido azul que vestia era apenas trapos sujos de fuligem e sangue.
Um homem a viu e correu em sua direção. Havia algo no rosto dele — desespero ou talvez um resquício de coragem em meio àquele inferno. Mas ele não chegou até ela.
Uma barra de ferro, grossa e enferrujada, desabou do teto em colapso e o atingiu com um som surdo e nauseante. O crânio se partiu, sangue e pedaços de matéria cinzenta espirraram como um borrifo grotesco.
O corpo dele caiu pesado, sem vida, a apenas dois metros da garota.
Ela gritou, mas sua voz era engolida pelo barulho incessante. Pessoas empurravam, corriam, caíam. Havia gritos, mas nenhum pedido de ajuda era ouvido. Estava sozinha naquele instante.
Viu mais um pedaço do teto ceder. Abaixo dela, as sombras do homem morto começaram a se direcionar até ela como serpentes vivas. Primeiro lentas, depois rápidas, as formas escuras subiam por seu corpo, envolvendo-a em um abraço frio.
O pedaço solto caiu. O som do impacto ecoou alto e estilhaçou-se sobre a mesma, no entanto, as sombras agiram como uma capa protetora.
Ela não entendia como aquilo acontecia. Talvez estivessem a responder à sua agonia, contorcendo-se, moldando-se em formas que nenhum olho humano deveria ver.
Até que, ao seu lado, alguém disse:
— Vem.
Era Raven. Se ajoelhou ao lado da garota. A mão dela, ainda tremendo, se agarrou à sua como um último fio de esperança.
— Vou tirar você daqui.
Ela acreditava nessas palavras, mas sabia que a crença por si só não bastava. A sensação de segurança durou apenas segundos. Uma explosão violenta no extremo oposto do salão abalou tudo. O teto ruiu parcialmente, e os destroços caíram, espalhando fragmentos de concreto e metal.
Instintivamente, Raven girou o corpo, movida pelo reflexo de proteger a garota. A energia negativa que circulava em seu interior reagiu prontamente. As sombras que a cercavam ergueram-se como muralhas vivas, bloqueando os estilhaços antes que atingissem o alvo que jurara proteger.
— Não saia daí!
No entanto, o mundo não concedia misericórdia para quem estava dividido entre tantas frentes.
Um brilho traiçoeiro surgiu no meio da destruição. Não houve tempo para reação. Raven sentiu o impacto antes mesmo de compreendê-lo. Uma dor aguda atravessou seu corpo. Um pedaço de vergalhão irrompeu de seu flanco, rompendo carne, costela e ossos, atravessando-a como uma lança.
— Hm…?
Seu instinto a incitou a se mover, mas o segundo golpe veio antes que conseguisse fazer qualquer coisa. Outra barra de ferro a atingiu, cravando-se em seu ombro e prendendo-a ao chão. A dor foi esmagadora, tão real que quase passava para segundo plano diante do cenário de ruína ao seu redor.
O sangue fluía livremente, quente e viscoso, formando poças que se misturavam à poeira e à sujeira. Enquanto respirava dificultosamente, o gosto de sangue invadiu sua boca. Encher os pulmões era um esforço desesperado, marcado por espasmos involuntários que balançavam o peito, como se o próprio corpo lutasse para desistir.
Ela olhou ao redor do salão. Viu a garota que tentava salvá-la. A mesma corria. O cabelo estava despenteado, o rosto manchado de lágrimas e sujeira, mas ainda estava viva. Isso deveria ter trazido alívio, mas não trouxe. Não enquanto a energia em torno dela emanava algo muito mais escuro, algo que ela conhecia muito bem.
“O que posso fazer?”
Um grupo de Mephistos emergiu das ruínas como predadores atraídos pela agonia.
Raven tentou se mover. As sombras responderam, mas estavam fracas e instáveis, espelhando sua própria fragilidade. Ela sabia que o tempo estava se esgotando, mas seu corpo já não obedecia. Estava presa pelo vergalhão.
“Não adianta.”
Um deles cravou suas garras no torso da jovem, esfacelando a carne como se fosse papel. Houve um grito alto, mas este durou apenas um momento, antes de ser sufocado pelo barulho desagradável de osso partido.
O segundo afundou os dentes no local onde estava o ombro, e arrancou parte do braço com um estalo nauseabundo. O sangue jorrou num arco, manchando o chão sujo e os restos de móveis partidos com manchas escarlates.
O outro Mephisto atacou o estômago. As suas mandíbulas abriram-se incompreensivelmente antes de se fecharem bruscamente. Explodiram-se os órgãos numa cascata de hemorragia e vísceras. A pele rasgada revelou a carne exposta de um vermelho pulsante.
Tudo o que as criaturas faziam era acompanhado por ecos e crepitações, que soavam como se estivesse desfazendo uma boneca feita de carne e osso.
Tentou gritar novamente, mas o sangue que enchia a sua garganta transformou-se num gorgolejo. Os dedos dela ergueram-se uma última vez, em busca de algo a que se agarrar, antes de caírem sem vida.
“Salvar vidas… ou o que resta delas.”
As criaturas não pararam. Continuaram a devorá-la. As mandíbulas trituravam os restos dos membros. O corpo dela ficou irreconhecível em questão de minutos.
A alguns metros de distância, Raven observava impotente. Amaldiçoou-se mentalmente. O sentimento de falha queimava como ácido, mas naquele momento, mesmo com todo o seu poder, não havia mais nada que pudesse fazer.
Não havia armas que funcionassem contra aquilo. Eles não matavam apenas; faziam desaparecer por completo. A carne rasgava-se como se implorasse para ser destruída. Raven sentia o sangue que lhe escorria pelos dedos. Sentia a sua vida a escapar à sua volta como se cada morte lhe arrancasse um pedaço da alma.
Ela havia jurado proteger as pessoas, ser a barreira entre o mundo humano e essas criaturas, mas agora, enquanto via uma mulher a ser devorada diante dos seus olhos, começava a pairar na sua mente a dúvida.
Os seus pensamentos tropeçaram na ideia de que era seu dever de salvar. Uma ideia tola, agora. Salvar quem? Para quê? Perguntas que se enredavam como espinhos na sua mente, pondo em causa qualquer vestígio de sanidade que ainda resistia.
A culpa não a largava. Consumia-a, como um veneno que se espalhava por todos os poros da sua existência. Mas a culpa, por pior que fosse, ainda era um motivo de consciência, de que ela existia, de que havia algo dentro de si que não fora devorado.
Enquanto o mundo desabava em carne e sangue, Raven agarrava-se à culpa como se fosse a última coisa real, mesmo quando o seu peso esmagava a sua vontade.
Suas mãos tremeram quando tentou se apoiar no chão sujo. Os dedos agarraram qualquer superfície que pudessem encontrar, mas o mundo girava ao seu redor. A luz fraca do salão era quase inexistente, como se até ela tivesse desistido de lutar contra o que se aproximava.
“Salvar um, dez, cem… talvez isso não mude nada.”
À medida que tentava se levantar, um novo sentimento tomou conta dela. Não se tratava de uma revelação, mas de uma aceitação fria e brutal. A luta não tinha mais glória, nem aqueles que tentavam salvar vidas eram redimidos.
Os herois eram apenas fantasmas, ilusões alimentadas por uma esperança que não existia mais. Tudo o que restava era permanecer de pé, não porque fosse o certo, mas porque era o único caminho.
O metal que a prendia ao chão ainda estava lá, rasgando sua lateral e ombro, mas ela moveu o corpo mesmo assim. A dor se espalhou como fogo, queimando a carne e os nervos, mas não a fez parar.
Seus olhos estavam turvos, mas ainda enxergavam as figuras ao longe. Os Mephistos se manifestaram como predadores. Eles não esperavam. Não hesitavam. Eram uma força pura e destrutiva, e ela sabia que não poderia enfrentá-los no estado em que estava.
— São… almas perdidas.
Ela tentou se mover. O vergalhão resistiu. O ferro raspou contra o osso e emitiu um som que faria qualquer estômago virar. Um gemido escapou de sua garganta, seco e rouco.
Com um esforço, Raven plantou os pés no chão. Seu corpo tremia como uma folha, mas ela se ergueu, puxando o ferro que a prendia como se fosse um espinho. O vergalhão não saiu facilmente; ele lutou, arrancando carne e derramando mais sangue.
Então, finalmente ficou de pé. Seu corpo estava quase irreconhecível. O sangue escorria de suas feridas, misturando-se com suor e poeira, cobrindo-a em um véu carmesim. Seus olhos brilhavam com algo que não era mais humanidade. O reflexo da mulher que fora estava desaparecendo, substituído por algo que nem ela conseguia nomear.
— Almas perdidas…
A energia que controlara outrora como uma extensão de sua vontade ora vacilava. As formas que surgiam em torno de seu corpo estavam enfraquecidas, tal qual o estado de espírito que as alimentava. Havia algo quebrado nelas, uma instabilidade que não podia ser ignorada.
Raven deu um passo, depois outro.
Quando finalmente parou, os Mephistos estavam a poucos metros de distância. Tudo ao redor pareceu desacelerar, quase como se o tempo estivesse interessado naquele momento mórbido.
A última centelha que a mantinha de pé não era para salvar o mundo nem para proteger alguém. Era apenas para provar a si mesma que, mesmo quando tudo estava perdido, Raven ainda podia se levantar. Mesmo que fosse pela última vez.
O primeiro Mephisto avançou, rápido demais para o corpo exausto dela reagir completamente. Ele a atingiu no flanco com o braço, jogando-a para trás contra uma pilastra. O impacto arrancou o ar de seus pulmões, mas ela não parou. Antes que a criatura pudesse atacá-la novamente, Raven se lançou para frente, cravando o pedaço de ferro no peito dela com toda a força que conseguiu reunir. O Mephisto soltou um grito horrendo antes de tombar, com o líquido negro escorrendo pelo chão.
— Um. — murmurou, a voz rouca. — Quem é o próximo?
Outro veio rastejando pelo chão. Seus membros alongados se arrastavam como se não houvesse ossos em seu corpo. Raven tentou levantar a barra de ferro, mas seus braços estavam fracos.
Mal ela pôde protestar, a criatura saltou sobre si, empurrando-a para o chão. Seus braços foram rasgados por garras afiadas, que abriram um corte profundo do qual jorrou sangue.
Raven fez um esforço cuja dor se espalhou por suas costelas e, com os dedos, pressionou os olhos do monstro, afundando-os até sentir a substância gelatinosa escorrer pelas mãos.
O grito da criatura quebrou o seu foco e foi suficiente para fazê-la se soltar e se afastar. Cambaleante, Raven atacou novamente com um pedaço de madeira que encontrara no chão, esmagando a cabeça da criatura.
— Eu… ainda consigo.
O próximo Mephisto era maior. Ele golpeou sem que ela tivesse chance se defender, cravando seus punhos em seu peito e arremessando-a contra uma parede. O impacto foi brutal. Algo estalou dentro dela.
A criatura não lhe deu trégua. Agarrou-a pelo tornozelo e a puxou pelo chão. Detritos cortavam suas costas. Aproveitando-se do momento em que Mephisto a segurava com uma das pernas, acertou um chute na sua cabeça com a outra, forçando-o a soltá-la.
Raven pegou um caco de vidro em cima da mesa. Logo que a criatura avançou, atingiu-a na lateral da cabeça. A criatura cambaleou, e isso a ajudou. Empurrou o caco no pescoço da criatura, enterrando-o. O corpo caiu com um baque pesado.
— Ainda… consigo.
Outros já estavam à espreita.
Dois Mephistos avançaram ao mesmo tempo. Um pela direita, outro pela esquerda. Ravem viu o ataque vindo, mas sabia que não conseguiria evitar ambos. Jogou o corpo para frente, permitindo que o primeiro errasse o golpe, mas o segundo atingiu seu flanco.
As unhas dele rasparam a carne e a fizeram cair de joelhos. Ao invés de desistir, ela o agarrou pela perna e torceu.
O monstro urrou e desabou, dando lugar ao outro, que já estava sobre ela. As mãos lhe agarraram o pescoço forte o suficiente para sufocá-la.
Sua consciência fraquejou, até que uma chave de carro foi vista no chão. Esticou a mão para pegá-la e, quando conseguiu, cravou-a no olho do Mephisto com o que restava de sua força, empurrando-a e fazendo com que a soltasse
Raven desabou no chão, tossindo. O ar finalmente entrou em seus pulmões. O sangue dela misturava-se ao dos Mephistos, criando uma poça grotesca que se espalhava pelos destroços.
— Não vou cair…
Seu corpo era uma coleção de cortes e hematomas, porém seus olhos transpareciam uma força inquebrável. Saber que não sobreviveria a todos eles era inevitável. Suas forças estavam acabando. Ainda assim, ela continuava.
O suor escorria de suas mãos como se drenasse algo além de líquido.
Raven observou as primeiras manchas, pequenas e despretensiosas, surgirem em sua pele. Elas eram difíceis de enxergar, embora soubesse o que significava.
Não era a primeira vez que aquilo acontecia, nem seria a última. A energia que ela usava, extraída da negatividade ao seu redor, tinha um preço. Sempre cobrava.
A cada vez que ela liberava o poder, sentia o peso aumentar. As manchas se espalhavam lentamente, aprofundando-se na carne como se fossem gravadas com fogo negro. Começavam discretas, mais densas com o tempo.
Raven poderia canalizá-la, moldá-la e fortalecê-la, no entanto, essa conexão vinha com um custo que ela nunca conseguia prever por completo. Quanto mais utilizava, mais as manchas cresciam. Quanto mais cresciam, mais difícil era distinguir onde terminava a energia e onde começava sua própria essência.
— Esse sentimento…
Seu corpo enrijeceu. Uma silhueta moveu-se na periferia de sua visão, entre os escombros e o fogo, como um borrão. Uma dor aguda tomou conta dela antes da reação. Não era uma dor qualquer. Era a invasão de algo que atravessava sua carcaça, violando o que ainda restava de sua humanidade.
Seu abdômen arqueou com a irrupção da garra monstruosa em sua pele. Uma coisa grotesca, brilhando com vísceras e sangue, projetava-se de seu corpo e se tornava uma extensão da própria violência com que se deparava.
O tempo desacelerou. Só se ouviu o som úmido e gorgolejante do sangue que escapava de sua garganta, sem que houvesse grito. Seus olhos, arregalados, fixaram-se na cena, incapazes de compreender completamente o que estava acontecendo.
— O quê…?
Uma lembrança emergiu do fundo de sua mente como uma lâmina que cortava antes mesmo de ser percebida. Era algo que enterrara há muito tempo. Agonia e escuridão. Um momento em que se viu à mercê da mesma força que agora controlava. Não havia nomes ou rostos, apenas uma sensação sufocante e um desejo desesperado de esquecer.
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