Índice de Capítulo

    Prairie Berry Winery, minutos antes.

    Em direção ao saguão do edifício, Mikael caminhou pelos corredores mal iluminados. O ar rarefeito e fétido pesava sobre seus ombros, enquanto o som de vidros quebrados e a visão de corpos ensanguentados o acompanhavam adiante.

    O piso não era mais brilhante e perfeito, era um mosaico nojento de sujeira e vísceras. Pedaços de vidro estilhaçados estavam espalhados por todo o piso, o que significava tanto o colapso literal do local quanto sua normalidade simbólica.

    Ele passou por um corpo estendido no chão, sobre o qual uma mesa havia tombado. O cérebro dele estava esmagado, transformado em uma massa desagradável de sangue e tecido que escorria para o chão através da abertura no crânio.

    — A queda da civilidade… — murmurou. — Manifestada em cada fragmento.

    Os órgãos expostos eram um testemunho horrível da fragilidade humana, e ele se sentiu em conflito. Raiva contida, repulsa e uma pitada de melancolia se misturaram durante a avaliação das imagens obscenas.

    — É uma coisa que vai além do simples ato de matar.

    Ao longo de sua jornada, Mikael enfrentou o absurdo com uma calma impávida, mesmo quando confrontado com os horrores que desafiavam sua humanidade. A estranha realidade diante dele desafiava toda a lógica, independentemente da força de cada um.

    Ao entrar na câmara principal da vinícola, encontrou barris despedaçados entre videiras quebradas, liberando um forte cheiro de uvas fermentadas misturado com o avassalador cheiro de sangue.

    — Eles querem corromper, destruir coisas belas para revelar a imundície que está por trás delas.

    Garrafas adornadas com marcas caprichosas estavam quebradas, abandonando pedaços como uma triste lembrança da brutalidade ocorrida no local. O nariz de Mikael foi assaltado pelo cheiro putrefato de comida estragada. Ao se aproximar, seus passos o levaram para mais perto da visão horrível. Viu mais vítimas esparramadas em posturas medonhas, com os rostos paralisados de pavor e dor.

    Um homem estava deitado de costas, com o corpo desfigurado e esmagado como um inseto sob o pé inclemente de um gigante, cuja coluna vertebral estava exposta em um arco assustador. Ao redor dele, uma poça de sangue espesso e pútrido crescia, e o odor nauseabundo de um cadáver em decomposição enchia o ar.

    Uma mulher estava deitada de lado ao lado dele, de útero aberto com as entranhas evisceradas expostas ao ar frio. Seus olhos, esbugalhados e apáticos, pediam por ajuda que nunca viria.

    — O que é humano é uma perversão. — Ele disse, as palavras saindo como um sussurro estrangulado. — Para os Mephistos, a morte não é apenas o fim, é a abominação do corpo e da alma.

    Algumas figuras empunhavam objetos quebrados, o que sugeria que lutaram desesperadamente antes de cair. Pedaços de madeira e tigelas quebradas estavam espalhados por toda parte.

    — Uma violação do sagrado, do comum. — acrescentou.

    Mikael engoliu em seco, sentindo a garganta ardendo. Seguiu o rastro de sangue pelo depósito, que se entrelaçava no chão como um fio carmesim.

    Logo que abriu a porta, observou os barris de vinho empilhados, decompondo-se como lápides num cemitério. As paredes, cobertas de teias de aranha, e o ar úmido, perfumado com mofo e putrefação, criavam um ambiente sinistro para os sonhos e esperanças outrora perdidos ali.

    As lanternas suspensas nas paredes escarpadas projetavam sombras que teciam padrões labirínticos ao redor dos barris de carvalho, formando uma tapeçaria de formas peculiares, onde cada uma possivelmente escondia um Mephisto.

    As únicas perturbações no silêncio eram os sons da respiração e dos passos. As paredes de pedra úmida faziam ressoar o mistério no ar com tanta intensidade que davam a ilusão de que estavam vivas.

    O ar espesso dificultava a respiração ao ponto de provocar uma sensação opressiva de claustrofobia.

    No meio da cena, jazia um corpo irreconhecível e deforme. O corpo estava cercado por uma poça de sangue coagulado assemelhada a um lago de necrotério, derramada pelo chão por onde se via carne retalhada, órgãos internos e ossos quebrados.

    — Olhos que não verão mais a beleza do mundo. Mãos que não mais tocarão seus entes queridos…

    Outro cadáver estava deitado ao lado deste, que tinha o crânio esmagado similarmente a uma fruta podre. Um filete vermelho se unia à poça central e se esparzia pelo chão.

    — Uma vida brutalmente arrancada.

    Mais adiante, Mikael descobriu um terceiro corpo, pendurado em uma das vigas do teto. O corpo balançava suavemente ao sabor da brisa, assustadoramente como um pêndulo.

    Ele notou que o cheiro de seu sangue era fresco, de uma vítima que acabara de falecer.

    — Um fim terrível para uma alma inofensiva. Não haverá paz enquanto esses monstros estiverem à solta.

    Um voto vicioso começou a fermentá-lo por dentro. Era um juramento inato, carregado com o sabor amargo da obliteração, um desejo fervoroso de justiça e uma sede selvagem de retribuição. Por cada gota de sangue derramada e espírito impiedosamente arrancado de seu receptáculo, Mephisto seria recompensado.

    Esse voto não era apenas uma palavra jurada, mas um ultimato. Era uma obsessão que dominava suas inspirações, ações e noções. Uma força imparável que o impulsionava implacavelmente em direção ao seu atual percurso.

    — Está uma noite fria, não é verdade? Perfeita para um encontro como este. — Ele lançou um olhar lateral para os barris atrás de si. — A justiça não se curva nem se deixa corromper. Vai cair sobre vocês como uma avalanche, os esmagando sob o peso de seus pecados.

    Um sorriso cruel desenhou-se em seus lábios, exibindo dentes tão brancos quanto a neve, em contraste com a escuridão que o envolvia.

    — Uma noite gélida, como os corações de vocês.

    O silêncio tomou conta do ambiente, interrompido apenas pelo crepitar das tábuas de madeira sob seus pés.

    — Uma noite perfeita para o encontro que planejamos.

    Um grito gutural rompeu a névoa úmida do depósito como um chicote. Uma figura rápida se aproximou de Mikael pela esquerda disposta a cortar sua pele mediante suas garras afiadas como lâminas.

    Girou sobre os calcanhares à sua direção para interceptar o ataque agilmente, agarrando-o simultaneamente pelo braço em um aperto de ferro para arremessá-lo contra outro Mephisto que se aproximava sorrateiramente pela direita.

    Os dois corpos se chocaram com um forte estrondo, resultando em um emaranhado de membros, grunhidos e barris que deslizaram pelo chão de pedra.

    Um uivo de fome animalesca resvalou pelo ar antes que outra criatura caísse sobre Mikael.

    Ele evitou o ataque virando-se à direita, como um junco que se curva ao vento. Desequilibrado pela intensidade do golpe, o Mephisto aterrissou ruidosamente no chão, com os olhos arregalados de surpresa e pavor.

    Imediatamente, Mikael o agarrou pelo pescoço em uma das mãos e o levantou do chão como se fosse um inseto insignificante.

    Ele o jogou contra a lateral de um barril de carvalho. O impacto foi devastador. O crânio do monstro rachou feito casca de ovo ao se despedaçar sob a força brutal do golpe.

    O corpo dele, uma massa disforme de sangue e ossos quebrados, deslizou pela borda do barril e caiu no chão, transformando-se em uma pilha grotesca de carne e vísceras.

    Com os sentidos em alerta máximo, ele antecipou o próximo ataque, agachando-se para evitar a mordida mortal que visava sua garganta. Movido por pura força, golpeou o abdômen da criatura de maneira poderosa, fazendo-a dobrar-se com um urro agudo de dor.

    O primeiro Mephisto que o havia atacado antes avançou novamente no instante seguinte. Mikael estava pronto e usou o corpo do monstro que acabara de golpear como um escudo improvisado, puxando-o pelo braço para a frente, para que a garra que se aproximava perfurasse o peito do ser.

    Um jorro de sangue negro jorrou da ferida, engasgando o monstro enlouquecido por dor. A vida se esvaía rapidamente de seu corpo, incapaz de continuar a luta.

    Mikael levantou a mão esquerda rapidamente e a apontou para cinco barris. Seus dedos emitiam a energia positiva emanada de seu corpo em um ponto central. A energia vibrou em torno de sua mão, dando origem a uma auréola brilhante.

    A superfície dos barris tremeu bruscamente. Apareceram pequenas rachaduras na madeira, que logo se expandiram em uma rede de pequenas linhas. Ele canalizou e ampliou a energia positiva para criar uma força que atraiu o objeto na direção de ambos.

    Os cinco aceleraram enormemente, transformando-se em projéteis letais.

    O impacto destes nos corpos dos Mephistos foi terrível. A força do choque foi semelhante à de uma colisão com um carro veloz na qual seus corpos foram brutalmente espremidos contra a parede. Os ossos racharam, os órgãos internos foram dilacerados e o sangue espirrou em uma exibição medonha.

    — Urf… — Um suspiro áspero escapou de seus lábios. — Alguns já se foram.

    Um olhar rápido ao redor revelou a magnitude da batalha. Corpos mutilados jaziam por toda parte, vítimas impiedosas do conflito que se abateu sobre eles. O ar estava saturado das essências de sangue e carne estragada.

    — Vamos continuar, agora, para outro lugar.

    De volta à porta, a luz fraca que se esgueirava pelas frestas dela contrastava com a escuridão que o envolvia por dentro.

    Ele forçou a porta, e as dobradiças enferrujadas gemeram de dor. Mikael cruzou a soleira e entrou novamente na câmara principal da vinícola. O luar suave penetrava pelas fissuras da parede, projetando sombras alongadas no chão de pedra.

    A serenidade que ele havia criado com tanto cuidado foi mais uma vez quebrada pela visão das vítimas imóveis. O silêncio avassalador amplificava a indignação que queimava em seu interior. O espaço ao redor adquiriu um tom azulado e fraco, remoto e insignificante, banhado pela luz do luar, envolta em um cheiro de álcool e madeira podre.

    — Eu falhei, não foi? 

    Ao caminhar entre os corpos, sua sombra se alongava na fraca luz da noite. A cada passo, a culpa parecia pesar mais em seu coração.

    — Eu falhei com todos vocês. Sempre vai ser assim. Não posso salvar todo mundo, só posso juntar os cacos.

    As palavras foram como um lamento áspero de um homem rasgado pelo arrependimento. Mikael reconhecia a verdade. Ele compreendia que, não importa o quanto se esforçasse ou sacrificasse, sempre haveria aqueles que ele não conseguiria salvar. Contudo, isso não diminuía a dor do fracasso nem atenuava o peso da culpa que o consumia.

    Ao parar no centro do recinto, Mikael ajoelhou-se diante de um corpo inerte, fixando seu olhar nos olhos vazios que antes brilhavam com vida e alegria. E, naquele vazio, percebeu um vislumbre que indicava algo mais. Talvez fosse esperança, a esperança de que fizesse justiça por eles, de que se tornaria o protetor que não puderam ser.

    — A única coisa que posso fazer é encontrar os responsáveis por isso. Fazer justiça para que esse mal desapareça junto com ele.

    Justiça. A palavra retumbou na câmara constituindo uma promessa repleta de ambiguidades. Erradicar a raiz dessa escuridão, um horizonte elusivo sempre oculto pela névoa, parecia uma missão impossível. Se ele conseguisse ao menos diminuir suas margens e prevenir que tal tragédia se repetisse com outros, isso teria de ser suficiente por ora.

    Mikael levantou-se, e o peso de seu voto solitário recaiu sobre seus ombros pesadamente. Afastou-se dos que jaziam caídos e lançou um último olhar à câmara deserta.

    — Acho que foi, hein, Não vejo mais nenhuma aberração por aqui.

    Avançou até a saída do depósito e entrou em um corredor mal iluminado, onde as luzes fluorescentes zumbiam feito mosquitos prestes a explodir. Parou no meio do caminho. Algo apertou seu estômago. Não era dor. Sentiu uma pressão. Um peso. Desconforto que não era físico. Ele tinha a sensação de estar sendo observado e cutucado por dentro.

    Ele girou sobre os calcanhares, varrendo o corredor com os olhos. Tinha aprendido a confiar nesse tipo de sensação. Ainda assim, tentou racionalizar.

    — Essas coisas… tão se infiltrando na minha cabeça. — sussurrou, franzindo o cenho.

    Passou a mão pelos cabelos, os dedos deslizando nervosos entre os fios loiros. 

    — Deve ser só o cansaço. Dor demais deixa o cérebro meio mole… sei lá. Coisa da mente tentando me ferrar.

    Continuou andando, pisando nas manchas escuras de um chão antes branco. Respirou fundo. As paredes pareceram mais próximas na medida em que ele caminhava, tal como se cada passo encurtasse o espaço — ou se ele estivesse ficando grande demais para o lugar.

    — A Raven fala desses focos de energia negativa como se fosse só dar um pulinho, sugar tudo com o poderzinho dela e pronto. Enquanto isso eu tô aqui… fazendo papel de coadjuvante sem roteiro.

    Bateu de leve a cabeça contra a parede, fechando os olhos por um segundo.

    — Eu tô aqui… ajudando, certo? Certo?! 

    Soltou uma risada abafada e amarga. Passou de novo a mão no rosto e suspirou.

    — Talvez seja hora de largar isso. Pegar um sofá, assinar um streaming qualquer… e maratonar reality show idiota com gente gritando por causa de bolo. Parece bem mais seguro do que lutar com Mephisto que sai da parede.

    O corredor estava mais estreito agora. As câmeras de segurança, montadas nos cantos, o observavam atentamente, com os olhos vermelhos piscando, zombando dele em forma de pequenas sentinelas.

    — Ou melhor… Talvez eu vire comentarista para…

    A parede à esquerda de Mikael explodiu com um estrondo visceral, cuspindo estilhaços de concreto e pedaços de fiação para todos os lados no formato de uma granada maldita. Uma nuvem densa de poeira engoliu o corredor em um segundo ao engolfar o ar e transformá-lo em cinza sufocante. Do buraco irregular, saiu o Mephisto que, por sua deformidade, parecia uma criatura ainda em mutação, vomitada pelo próprio inferno.

    Sua carne negra pulsava em manchas úmidas sobre um arcabouço esquelético de fios metálicos emaranhados, criando a impressão de que o monstro fora montado às pressas por um godô insano. De sua espinha arqueada e retorcida, nasciam tentáculos em pares, vibrando como cobras famintas. Suas extremidades eram lâminas orgânicas, reluzentes e afiadas como bisturis banhados em óleo.

    Antes que o pensamento pudesse alcançá-lo, Mikael recuou num pulo, por instinto puro tomando o controle. 

    — Cacete!

    O rugido do monstro foi um gorgolejo disforme vindo de um ser que vomitava ossos enquanto berrava. Um suporte de câmera caiu do teto com um baque metálico e Mikael o agarrou no ar, depois o atirou para longe.

    O primeiro tentáculo veio de cima, rasgando o ar como um chicote de aço. Mikael se lançou de joelhos no chão, à medida que a lâmina passava a centímetros de sua nuca. A ponta atingiu o piso com força suficiente para deixar uma rachadura fumegante nas lajotas.

    Outro tentáculo investiu lateralmente, e ele rolou para a direita, ainda assim a ponta dentada roçou seu ombro, abrindo um talho ardente que pintou o tecido de vermelho.

    — Ngh…! 

    O corredor fechava-se em torno deles, e as luzes acima oscilavam qual se estivessem à beira da morte elétrica. O chão rangia sob seus pés, salpicado de óleo, sangue antigo e cacos de vidro das câmeras destruídas.

    Sentindo o cheiro da carne ferida, o Mephisto urrou novamente e avançou, esta vez com três tentáculos que chicoteavam em sincronia mortal de maneira caótica e animalesca.

    Com a respiração ofegante, Mikael se levantou num impulso e jogou o corpo contra a parede a tempo de escapar de ser empalado. Pedaços da estrutura voaram em todas as direções, criando um trovão seco ao baterem no concreto. 

    O reflexo dele era tudo o que o mantinha vivo — ainda.

    A dor queimava em seu ombro com a mesma intensidade da adrenalina circulando em seu corpo, entorpecendo os nervos e clareando o foco. Os batimentos cardíacos eram como tambores no campo de batalha e ritmavam seus movimentos. Quando o Mephisto desferiu o próximo golpe em forma de um punho disforme coberto por placas ósseas, Mikael deu um salto para o lado.

    O chão tremeu com o impacto, e rachaduras serpenteavam como veias negras onde o punho da criatura havia colidido. Mikael pousou agachado sobre as pontas dos pés, com os joelhos dobrados em tensão elástica.

    — Estava se escondendo, né!?

    Em resposta, o Mephisto rosnou com um som grave e borbulhante, capaz de vibrar nas alturas conforme saía de seu interior. Girou para encarar Mikael com a cabeça deslocada, o pescoço esticado além da posição normal, e três tentáculos brotaram de suas costas negras como lanças prontas para perfurar.

    Eles avançaram com um estalo seco, velozes demais para serem vistos a olho nu. O agente jogou-se para a frente, deslizando de joelhos sobre o chão onde, um segundo antes, seu peito estivera, com as pontas farpadas rasgando o ar. O vento cortante do golpe passou rente, tão próximo que arrancou fios de seu cabelo.

    — Merda! — rosnou, girando o corpo com o embalo da queda para lançar um pedaço de vidro em arco, mirando o braço mais exposto da criatura.

    A ponta cravou-se entre placas de carne metálica de onde jorrou um líquido espesso e negro como petróleo queimado. O Mephisto gritou, ou melhor, vomitou um urro, tomado pela dor, cujos tentáculos espasmaram em convulsão.

    O monstro explodiu de fúria. Seus tentáculos rasgavam o teto, arrastavam lâmpadas, esmagavam tonéis e varriam o chão como guilhotinas vivas. Um barril inteiro foi arremessado contra uma parede, explodindo com o estrondo de uma bexiga de vinho envelhecido. O líquido escuro escorria pelas pedras e manchou o chão com uma coloração vermelho-escura.

    Mikael correu entre as colunas e madeiras, agarrou uma corrente pendurada usada para içar tonéis e saltou sobre a criatura pela lateral, com o impulso de um corpo exausto e desesperado.

    Sem armas às mãos, fez uso do próprio peso e velocidade em seu ataque. Cravou os dedos no crânio do Mephisto no ponto em que a carne pulsava exposta para, em seguida, martelar sua cabeça violentamente contra a borda metálica de um suporte de tonel.

    Uma, duas, três vezes. Somente então o som de osso rachado se misturava ao guincho animal da criatura.

    O Mephisto estremeceu violentamente. Espasmos correram por seus membros. Os tentáculos bateram contra o chão. Foi como cobras morrendo. Mikael caiu de lado, inspirando e expirando superficialmente. O corpo da criatura desabou numa batida molhada acompanhada da dispersão dos fluidos negros ao redor.

    Ele ficou ajoelhado, coberto de sujeira e sangue, encarando o cadáver com uma estranha mistura de nojo e alívio.

    — Que merda… foi essa?

    O corredor estava destruído, mas ainda estava de pé. E isso era o bastante por ora.

    Passou as mãos pelos cabelos desgrenhados, puxando-os para trás, e então se levantou devagar. Ao dar os primeiros passos em direção à saída do corredor destruído, sentiu uma forte queimação no ombro esquerdo. Uma dor latejante, densa e surda. Ele estancou o passo, puxou a gola da camisa e expôs a pele abaixo.

    Sob o tecido rasgado e úmido, uma mancha escura se expandia em sua pele, irradiando linhas finas e ramificadas levemente pulsantes sobre uma teia de tinta derramada em água. As bordas da ferida estavam rígidas, e a epiderme ao redor adquiria uma aparência estranhamente vítrea e oleosa. Além de infecção, tratava-se de contaminação por energia negativa.

    — Droga…

    Já estava acostumado a isso. Aquelas criaturas não apenas atacavam o corpo, mas também injetavam traços de sua própria entropia vibracional. A estrutura energética do Mephisto, ao entrar em contato com o tecido biológico humano, reprogramava lentamente a célula para o colapso.

    Mikael sabia que não podia deixar aquilo se espalhar.

    Fechou os olhos por um instante, respirou fundo e concentrou-se. Visualizou o ponto de dor como um núcleo contaminado. Ergueu a mão direita lentamente e pousou sobre o ferimento.

    Concentrou sua energia positiva. Um calor suave irradiou da palma da mão e fluiu no sentido dos capilares até penetrá-los. Eles se alinharam, as células vibraram numa frequência de recuperação.

    A mancha recuou.

    As ramificações enegrecidas foram se retraindo até desaparecerem, como raízes arrancadas à força. O brilho doente desapareceu para dar lugar a uma pele úmida e rosada, ainda sensível, mas limpa. A dor não desapareceu por completo, embora Mikael tenha sentido quando a influência estranha foi arrancada de sua carne.

    — Só não vira hábito. — disse para si mesmo, com um meio sorriso.

    Ao se dirigir à saída, Mikael sentia o calor do próprio sangue esfriar sobre a pele ao mesmo tempo em que o cheiro de madeira queimada e vinho fermentado tornava o ar denso como um véu de fumaça doce. Além disso, havia algo mais, um som rastejante e molhado, lembrando carne sendo costurada viva. Primeiro veio como um estalo suave, depois uma sequência crescente de estalidos rítmicos vindos de dentro das paredes ou de algo que não devia mais estar em pé.

    Mikael parou e se virou devagar.

    Ali, entre os destroços e os restos de madeira quebrada, o Mephisto movia-se, erguendo-se. As pernas trêmulas sustentavam o peso grotesco do corpo esfacelado. Partes da carcaça esquelética se reconectavam entre si com um som viscoso, de tendões de borracha esticados ao limite e repuxados de volta para o encaixe. As fibras negras que costuravam os membros se reagrupavam rapidamente, cobrindo os ossos metálicos.

    O rosto da criatura tinha sido esmagado, e agora pulsava, com a carne ondulando em pequenos espasmos autônomos por entre as fraturas da mandíbula, refazendo sua forma, que Mikael pensara ter destruído.

    — Ah, que ótimo.

    Olhou ao redor. Nada ao seu alcance. Nenhuma arma. Nenhuma rota segura.

    E agora, nenhum tempo.

    — Claro que você não ia morrer fácil. Vocês nunca morrem fácil.

    O Mephisto se esticou como um animal em preparação para o ataque. Mikael sabia que a próxima rodada começava naquele momento.

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