Capítulo 36 - A Maldição da Vida
Tentáculos saíram enroscados das costas de Raven e atravessaram os três primeiros que se aproximaram. O fluxo de sangue serviu como oferenda para saciar sua obsessão na ocasião em que os apêndices viscosos os suspenderam no ar, levando-os até o teto.
Com uma ondulação, os tentáculos deslizaram de volta para as costas de Raven. Simultaneamente, um Mephisto se apresentou à direita, com o braço estendido como uma adaga.
A agilidade de um predador cintilou em seu movimento ao girar feito um borrão, correndo atrás dele. Com o dedo indicador esticado, tornou-se um espelho arrepiante de uma arma. Gavinhas da escuridão pulsaram como faixas constritivas, enlaçando seu torso e puxando-o bruscamente para a esquerda.
Um baque doentio reverberou pelo local no momento em que ele se chocou contra a parede, imobilizado, com o corpo contraído em uma paródia grotesca da forma humana sob a pressão imposta.
Apesar do caos que reinava em sua mente, em um breve intervalo, uma voz conseguiu emergir e se destacar.
— Raven, o que faz você se motivar? Qual é o seu norte quando o mundo está indo de mal a pior?
Era uma voz familiar, mas ao mesmo tempo distante, como um eco do passado.
— É engraçado e confuso de responder. De vez em quando, parece que estou flutuando em uma jornada sem rumo. Mas, mesmo assim, é como se algo estivesse me guiando. — ela respondeu.
— Uma esperança, talvez?
Era a voz de Mikael, uma âncora momentânea em meio à tempestade que a assolava.
— Podemos dizer que é isso. Mas, sinceramente, acho que é o coração. Embora grande parte de mim tenha mudado, meu coração ainda tem a essência humana. Sinto que é a única coisa constante, a única parte de mim que se recusa a ser corrompida pelo que quer que esteja lá fora.
— Entendi. O coração humano é resistente, não é? Mesmo quando o mundo está caindo aos pedaços, ele continua batendo, procurando por algo mais.
O brevíssimo período de tranquilidade foi interrompido por algo que bateu em sua cabeça e pressionou seu ombro direito forte o suficiente para tirá-la de seu devaneio.
Um estalo doentio dividiu o ar e foi seguido por um ranger de dentes horrível. Raven recuou com uma nova onda de dor ao sentir a criatura agarrar sua carne exposta. Outra monstruosidade se lançou simultaneamente, e suas garras rasgaram suas costelas desprotegidas. Uma flor carmesim desabrochou, pondo manchas em seu uniforme esfarrapado com o jorro de sangue vital.
Um grito gutural saiu de sua garganta quando ela o atacou, conectando seu punho diretamente à face de Mephisto, que a mantinha presa. A criatura cambaleou para trás em estado de momentâneo atordoamento, o que permitiu que Raven capitalizasse a situação. No entanto, o Mephisto voou em um turbilhão de penas negras antes que ela pudesse agir.
Esse Mephisto em particular era uma criatura esguia, toda coberta por ossos e membranas de couro. Ao bater as asas para ganhar altitude, uma visão arrepiante se revelou. Tentáculos saíram das costas de Raven com vida própria. Um deles, com precisão infalível, agarrou o Mephisto em pleno voo, furou seu quadril e o prendeu ao chão ruidosamente.
Raven se aproximou daquela coisa caída, possuída por uma fúria fria que lhe tingia o rosto de vermelho. Uma única e arrepiante palavra, impregnada de veneno, escapou de seus lábios:
— Morra.
Seus dedos fecharam nas asas da criatura com tanta força quanto podiam, canalizando uma energia distinta, ao que se ouviu um grito de dor capaz de anular a vantagem aérea deste. O som de membranas rasgadas e asas despedaçadas propagou-se pelo salão pouco iluminado conforme se apoderava do violento conflito.
Um segundo Mephisto saltou em direção às costas de Raven enquanto o tempo escorria por entre os dedos da besta como sangue. Os tentáculos, que aplicavam pressão constante sobre a besta inicial, reagiram enfurecidos ao intruso.
Um rastro de energia escura viajou pelo ar na mesma velocidade vertiginosa dos dois apêndices. De repente, foram empurrados para a obscuridade da boca aberta, descendo até o abismo do corpo do monstro. O momento se prolongou, agonizantemente longo. A passagem foi instantânea igual a uma lâmina em brasa cortando a carne, deixando para trás apenas uma ponta grotesca.
No segundo instante, uma dor lancinante percorreu seu corpo. Ela se deu conta de que os tentáculos foram cruelmente cortados.
— Ngh…
Os tentáculos, embora fossem uma parte essencial da fusão, também eram seu ponto fraco.
— Você sempre teve essa facilidade de manter firme sua alma viva ainda que tudo ao seu redor esteja ruindo. É uma qualidade rara, algo que muitos perderam por causa desse mundo triste. Eu admiro isso em você.
Raven escutava a voz de Mikael novamente em sua mente corrompida.
Suas palavras deixavam uma impressão duradoura, reverberando no tempo e emergindo no presente para trazer de volta sentimentos e lembranças que há muito estavam enterrados.
— Isso que torna você única, essa capacidade de encontrar sabedoria em meio à incerteza. Até mesmo eu não sou capaz disso.
Utilizando-se o rio de cadáveres como trilha, um Mephisto avançou enquanto soltavam um uivo louco. Sendo o mais veloz; um deles se adiantou a todos os outros como se fosse seu privilégio.
「 Presas da Noite 」
Raven, com os olhos brilhando com uma vitalidade perturbadora, canalizou uma torrente de energia negativa. O próprio chão se contorceu em resposta, espinhos escuros nasciam do chão como dentes malévolos. Eles ficaram à espreita, uma armadilha de obsidiana para os incautos.
O Mephisto caiu na armadilha. Os espinhos, respondendo à vontade de Raven, dispararam, empalando sua carne. O corpo da criatura se sacudiu violentamente enquanto as espinhas rasgavam tendões e ossos.
Um grito gorgolejante escapou da boca do Mephisto, mas a consciência fugiu dele antes que ele pudesse compreender completamente o horror de sua situação. Os espinhos irregulares, uma vez incrustados profundamente em seu corpo, começaram a se contorcer e a se transformar em gavinhas escuras e musculosas. Essas gavinhas cresceram com uma rapidez assustadora, invadindo cada fenda do seu ser.
O cheiro pesado e tóxico de sangue podre era tão destrutivo quanto sua força vital começava a desaparecer. Raven estava no meio do derramamento de sangue, com o rosto inexpressivo. Ela ainda podia ver a cena horrível à sua frente, seus olhos ainda brilhando com aquela luz enervante. Ela tinha apenas uma resolução fria e distante; ela não sentiu ressentimento nem satisfação.
O crescimento explosivo atingiu o clímax quando as gavinhas explodiram de dentro para fora. O som era uma ruptura úmida e repugnante, como o rompimento de uma fruta madura. O sangue espirrou em um arco carmesim, espalhando-se pelo chão e enchendo o ar com o fedor acre da decomposição. Vísceras desfiadas e fragmentos de ossos espalhados, pintando um quadro macabro de morte.
Os restos espalhados do Mephisto testemunharam a força maligna de Raven. O sangue foi absorvido pela sujeira e as gavinhas recuaram para o chão como se nunca tivessem existido.
No entanto, através da névoa desta exibição horrível, nem um lampejo de ódio estragou a expressão de Raven. Foi uma transação – poder pela dor, controle pelas consequências. O preço era alto, gravado não apenas nos tentáculos, mas na própria essência do seu ser.
— Às vezes, acho que sou teimosa demais. Simplesmente não consigo desistir, por mais difícil que seja a situação.
— Bom, considerando o que você já enfrentou, acho que a teimosia é uma qualidade sua.
Apesar de uma imprudência que levou a morte de um deles, os outros continuaram.
「 Prisão das Sombras 」
Combinando à Presas da Noite com seu poder, Raven conjurou um líquido sinistro que se acumulou a seus pés. Esse fluido se espalhou, infiltrando-se no solo como uma maré insidiosa, transformando a própria terra em uma armadilha de metamorfose. As ondas escuras do líquido moviam-se com uma fluidez, um tsunami rastejante de corrupção que representava uma ameaça direta a qualquer infeliz o suficiente para entrar em contato com ele.
O terreno à frente transformou-se num campo de perigo letal, um território de morte onde estacas afiadas de vários tamanhos disparavam, prontas para perfurar carne e quebrar ossos. Esses espinhos mortais irromperam com precisão brutal, criando um recinto de agonia que ensinava tudo ao seu alcance.
Os espinhos da morte atacaram os Mephistos enquanto eles estavam presos neste domínio. Com força brutal, as estacas perfuraram sua carne, rasgando tendões e ligamentos. O poder dentro da massa escura consumiu suas essências, com uma fome insaciável. A resistência deles desmoronaram – foram reduzidos a uma surra angustiada enquanto os tentáculos o rasgavam.
A ideia básica de fuga transformou-se num mito cruel. O simples toque dos espinhos causava dor intensa, e seu veneno espalhava angústia pelo corpo dos Mephistos. Suas carnes foram desfiadas, vísceras se espalhando em uma exibição horrível. As gavinhas, impiedosamente, rasgaram seus órgãos, causando uma cascata de sangue coagulado.
A visão se transformou em um tributo à força que Raven, em seu estado alterado, foi capaz de conjurar quando os últimos lamentos diminuíram e a última onda de transfiguração passou.
— Eu costumava pensar que a vida era complicada há algum tempo, Mikael, mas agora… parece muito mais simples.
— Acredito que é assim que a maioria de nós se sente.
Uma alma infeliz conseguiu escapar ilesa das correntes mortais que circulavam pela área, enquanto outras morreram, afinal, possuía características de uma mariposa desdenhosa.
O Mephisto, cujas asas haviam sido cruelmente arrancadas antes, ainda estava vivo, com as suas asas regeneradas. Garras alongadas, finas e surpreendentemente ásperas voaram em sua direção, ameaçando perfurar sua pele e arrancar seu coração enquanto se estendiam ameaçadoramente para atingi-la no peito.
Uma maré agitada de obsidiana surgiu do chão, atrás de Raven, solidificando-se com um som nauseante em uma mão colossal e escura. Sua superfície brilhava com um brilho de óleo, veias de um verde doentio e fosforescente pulsando sob a superfície como artérias. Este apêndice seguiu o movimento de seu dedo indicador.
Seu alvo gargalhava de alegria, as presas brilhando como fragmentos de obsidiana à luz da lâmpada. Mas a alegria de Mephisto morreu gorgolejante quando aquela massa o atingiu.
O estalar nauseante de ossos quebrando sob uma pressão inimaginável encheu o ar, um contraponto ao grito de surpresa de Mephisto, que abruptamente voltou a ser um gorgolejo úmido e sufocado.
Do ponto de impacto, uma teia de rachaduras vermelhas irradiou pela carne pálida. Seus olhos saltavam das órbitas, a parte branca sufocada por uma rede de capilares rompidos. Um gêiser vermelho irrompeu de sua cavidade torácica rompida, um buquê de vísceras – intestinos brilhantes, tecido pulmonar pulsante – espalhando-se com respingos.
O fedor de putrefação, uma mistura inebriante de enxofre e decomposição, enchia o ar, espesso o suficiente para sufocar.
A mão colossal, com sua tarefa concluída, dissipou-se lentamente em um vórtice rodopiante de gavinhas escuras. Em seu rastro, Mephisto permaneceu, uma paródia grotesca de seu antigo eu. Uma única lágrima brilhante rolou de seu olho leitoso, traçando um caminho por sua bochecha arruinada.
— Não sei se é uma escolha ou uma maldição, Mikael. Algumas vezes sinto que meu coração é tanto meu abrigo quanto minha prisão. Mas é tudo o que tenho e, enquanto ele bater, continuarei lutando.
Cadáveres moribundos cobriam o solo, formando um mosaico desagradável de tecido cortado e sangue pingando. O fim definitivo da batalha serviu como um lembrete sangrento do preço que foi pago pela vitória.
Os membros decepados de Mephistos estavam espalhados como peças de um quebra-cabeça.
Restos humanos não identificáveis e deformados se misturavam aos cadáveres dos Mephistos.
O único som que perturbava o silêncio era o eco de um suspiro fundo de Raven.
— Em um mundo como o nosso, manter a humanidade é uma vitória em si.
Uma forte energia vibrava através do ar, como se as forças que moldavam Raven estivessem precariamente equilibradas. As sombras que estavam pulsando ao redor dela começaram a oscilar e não tinham mais a unidade que lhes dava uma forma clara.
Raven teve a sensação de estar perdendo gradualmente sua identidade, como se estivesse sendo diluída em um oceano turvo. Todos os traços e características que a diferenciavam começaram a se desvanecer.
As sombras ao seu redor começaram a se dissipar, revelando uma figura que gradualmente tomava a forma de seu eu passado. Em seu estado original, Raven inspecionou o ambiente em busca de vestígios de si mesma. Seu núcleo humano permanecia inalterado; a dualidade que antes a definia já não existia mais.
Um suspiro escapou de seus lábios, com uma expressão visual da amargura que ela carregava consigo.
— Estar viva agora… não deveria ser considerado um milagre, mas um voto maldito. — murmurou, com os dedos tocando distraidamente uma cicatriz em sua costela. — Que droga.
Ao dirigir-se para a saída, nos dois passos à frente, Raven pisou acidentalmente em um braço cortado à altura do cotovelo.
— Lamento que eu não tenha conseguido salvá-la. Se existir um céu, espero que você descanse lá.
O mar de sangue são corpos cadavéricos, já que não tiveram a chance de viver o suficiente. Era uma paisagem indelicada pintada de vermelho.
— Não posso tolerar vidas sendo destruídas por uma falha da natureza.
O custo foi substancial. Milhares de vidas foram perdidas na luta para acabar com o mal que persistia. O peso da perda estava dominando o agora silencioso campo de batalha.
— Muito menos uma hipocrisia minha.
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