Capítulo 37 - Bang!
Prairie Berry Winery
— E você, Mikael? Para onde você olha quando tudo ao seu redor está de cabeça para baixo?
— Nunca pensei muito sobre isso, é um pouco estranho. Sempre tive outras preocupações. Sobreviver, talvez. Não sei se tenho uma direção clara. Apenas sigo em frente, um passo de cada vez.
O suor escorria pela testa de Mikael enquanto ele se movia entre as videiras abarrotadas de uvas maduras, esquivando-se dos ataques do Mephisto.
Desviou-se atirando-se para o lado, mas acabou caindo entre um canteiro de flores silvestres, enquanto o punho cerrado da criatura passava velozmente à esquerda de sua cabeça. Por um triz, ele conseguiu evitar um golpe que poderia ter esmagado os ossos de seu crânio, tamanha a força que fez um jato de pétalas carmesim voar e transformar a beleza outrora vibrante do local em um confete trágico pelo campo verde do vinhedo.
Antes que Mikael pudesse aproveitar o lapso momentâneo, Mephisto já o flanqueava em outra investida destinada a esmagá-lo sob a fachada idílica do local.
Instintivamente, estendeu os antebraços à frente para se defender, embora a intensidade da pancada o fizesse voar pelos ares igual a um golpe de martelo.
Após ser arremessado para o pátio, Mikael colidiu com as mesas de madeira, adornadas com toalhas brancas imaculadas e copos reluzentes, que se despedaçaram doentiamente com o impacto. Com um baque surdo de ossos rangendo, atingiu a parede mais distante.
— Mas deve haver algo que lhe dê força, mesmo quando tudo é difícil. Algo que forneça energia, mesmo que seja simples.
— Acho que, de certa forma, é a chance de fazer a diferença. Mesmo que seja apenas para uma pessoa, mesmo que seja apenas por um momento. Quero usar essa força que tenho para alguma coisa.
O Mephisto foi irredutível em sua aproximação à velocidade de uma sombra voraz.
Estava prestes a investir em outro ataque por ele, quando foi pego de surpresa pelo cerco de uma força imparável.
Uma força não identificada, poderosa e invisível, o jogou para trás, numa aparente decisão de interromper o duelo.
A precisão extrême na forma de um braço estendido como a culatra de uma pistola era uma representação óptica da sua técnica fascinante: Bang.
O uso da energia negativa como catalisador para amplificar seu impacto fez com que a técnica utilizasse a energia cinética de forma concentrada.
As partículas subatômicas carregadas negativamente atuaram em uma escala molecular correspondente a essa energia negativa. Os dedos posicionados em uma matriz receptora direcionaram essa energia para eles. Com a transferência efetiva, a carga negativa foi transformada em uma onda cinética focalizada.
O resultado foi uma explosão controlada e um distúrbio atmosférico momentâneo que indicaram a conversão efetiva da energia negativa latente em uma força poderosa e ativa.
“Há uma falha em sua defesa que posso usar a meu favor.”
Levantou-se ileso, sem exibir sinais de contusão, a despeito do formidável impacto sofrido. O Mephisto, por outro lado, estava no extremo oposto do espectro das consequências do ataque, mas já se recompunha e se adaptava.
“Mesmo que ele se recupere rápido, é possível identificar um momento de transição. Se eu alterar o padrão de ataque agora, posso encontrar uma brecha.”
Ele estava admitindo para si mesmo que poderia ter agido de maneira diferente, mas em meio ao combate pela sobrevivência, não havia lugar para arrependimentos.
Todas as armas, armaduras e poderes normais pareciam ser tão frágeis quanto papel quando comparados com o poder corrosivo de uma criatura de classe mortal.
“Não vai ser tão simples.”, Seu rosto estava contorcido em assombro. “Mas não é impossível.”
Os dois se moveram com uma sincronia impressionante. Com brutalidade primitiva, a mão monstruosa do Mephisto descreveu um corte no ar, que foi imediatamente contornado por Mikael, o qual não fugia, mas mergulhava de cabeça no perigo. Ele escorregou sobre o chão empoeirado usando um impulso firme da perna esquerda, sem que o atrito o alcançasse, e deslizou num semicírculo até se posicionar nas costas da criatura em menos de um segundo.
A palma de sua mão brilhou por um breve instante. Mikael lançou um Bang concentrado contra a pele exposta da criatura. A explosão foi um estalo de energia comprimida capaz de rasgar a membrana escura e espalhar fumaça e uma espécie de sangue evanescente.
Mais rápido do que a criatura pudesse reagir, Mikael já estava em movimento novamente. Sua trajetória formava um arco oblíquo perfeito. As costelas abertas de Mephisto latejavam com a cicatriz energética da explosão. Sem hesitar, Mikael disparou um soco que não somente colidiu com a carne e os ossos, bem como reverberou em seu interior por meio da energia negativa canalizada através do punho, abrindo caminho tal qual se procurasse algo escondido, uma rachadura espiritual para ser violada.
A criatura arqueou o tronco, emitindo um som semelhante a vidro rangendo sob pressão. Mikael usou o próprio recuo para ganhar impulso. Saltou à frente como uma flecha viva, os braços próximos ao corpo e as pernas levemente flexionadas visando maximizar a força do próximo golpe. Na altura do pico do pulo, rodou de leve o quadril e desferiu um chute em linha reta, acertando o centro do abdômen com o calcanhar.
Sua carne ondulou devido ao impacto com a força de uma onda sísmica, expelindo energia em anéis concêntricos para todos os lados, arrastando poeira, sons e até o fôlego ao redor. E um baque grave reverberou pelo ambiente, igual a um trovão asfixiado por carne comprimida.
O Mephisto foi lançado para trás, os pés rasgando o solo e as garras tateando o vazio em busca de equilíbrio. Atordoada e instável, contorceu-se em meio à sensação de que sua estrutura interna fora desalinhada. Aquele golpe afetara não só o corpo, senão também a alma, como se parte do seu centro tivesse sido quebrado caladamente.
Logo adiante, Mikael caiu agachado, sem perder o ritmo, prontamente se preparando para o próximo movimento, os olhos cravados no oponente cambaleante.
“Deve ser o suficiente. As falhas na defesa do Mephisto ficam mais claras a cada ataque.”
A sua expressão facial revelou a seriedade do momento, com suas feições esculpidas pela concentração.
“Três impactos consecutivos acentuam os danos.”
Embora seus membros estivessem paralisados, o Mephisto permanecia de pé com o corpo levemente curvado.
O forte oponente se viu em uma situação precária em decorrência dos impactos desestabilizadores dos ataques subsequentes.
“Agora, a incerteza paira no ar. É hora de capitalizar essa lacuna antes que ele recupere seu equilíbrio.”
Com os detalhes precisamente esboçados, ele estava preparado para converter suas observações em ações decisivas na perigosa dinâmica que se desdobrava à sua frente.
Com a mão erguida e a palma aberta, Mikael se dirigiu à criatura, que estava agoniada, tentando se recuperar dos golpes sofridos anteriormente.
As pontas de seus dedos começaram a brilhar com um fulgor sombreado de energia negativa.
Essa energia se comportava como uma corrente elétrica sob seu comando e era intensamente poderosa, embora invisível aos olhos. Sempre que uma onda de energia negativa era liberada, o ar vibrava, e um zumbido sutil se espalhava pela área.
As partículas de energia negativa se organizavam em padrões complexos à medida que giravam em torno de Mephisto, identificando seus pontos fracos.
“É hora de usá-la como um instrumento de destruição.”
Durante a preparação para a liberação total de sua força, ocorreu uma ligeira mudança de posição, que ele mesmo notou. A criatura dava a entender que estava ciente da ameaça iminente antes mesmo de atacar.
Um brilho desconcertante irrompeu de seus olhos. Tais olhos não estavam cegos para a energia negativa ao redor das mãos do agente.
— Só pode tá brincando.
Mikael hesitou um pouco.
Por uma fração de segundo, toda a imensa energia que o cercava congelou.
— Você gosta de apanhar mesmo, hein?
A fera lançou-se contra o homem, enraivecida e ávida pelo desejo de derrotá-lo. Mikael permaneceu calmo ao observar o colossal punho despencar diante de si, com a terrível finalidade de esmagá-lo em um momento de ira desenfreada.
À medida que o braço da imensa criatura avançava, uma espécie de vácuo era criada, provocando um deslocamento violento ao redor. Seria como se a própria natureza se curvasse diante da ira desse ser, aumentando sua força conforme ele agia.
Mikael percebeu a ameaça em curso e, com agilidade e instinto, reagiu prontamente. Recuou do caminho que o levaria a um fim fatal. Todavia, o solo sob o monstro não teve a mesma sorte.
Incapaz de suportar o peso avassalador, o chão cedeu e rachou, rendendo-se ao poder monstruoso da besta.
Rápido como um felino e com um raciocínio afiado, avaliou a trajetória dos tentáculos disparados em sua direção.
Sua resposta ao tentáculo a caminho de seu flanco direito foi quase imediata.
Desviou-se da ponta letal a milímetros de sua pele à custa de uma agilidade sobre-humana, saltando para o lado. O tentáculo voou pelo ar, arrastando um rastro de vento.
Tão logo tocou o chão, Mikael fez uma escolha surpreendente e ousada. Diferentemente do que se esperava, ele não recuou, pelo contrário, se lançou em prol da criatura.
A manobra era arriscada, praticamente suicida à primeira vista, não fosse a calma inquietante e a eficiência praticada de seus movimentos a desmentir o perigo bruto.
Mergulhou no contra-ataque numa velocidade de borrão, controlando o pânico, quando um ferrão afiado passou sussurrando por sua orelha e arrancou um fio de cabelo. À direita, mais um quase acidente, a ponta roçou seu nariz na medida em que ele se contorcia.
Mikael se esgueirava pela saraivada de morte venenosa, um dançarino desafiando a orquestra da destruição e o Mephisto, em seu frenesi, não conseguia acompanhar a agilidade e a destreza de seu adversário.
O clímax se abateu sobre eles quando, face a fera, Mikael cerrou o punho com força, permitindo que o momento se desenrolasse como um prelúdio nervoso.
Carregado de energia negativa, a vontade do caçador fez com que o brilho escuro pulsasse, irrompendo em uma aurora transitória ao redor de seu pulso.
Foi com extrema exatidão que atingiu o peito do Mephisto. A energia o afetou em um ataque de grande poder, liberando-o num estrondo controlado similar a um míssil para, então, deixar um notável rombo.
O som que emergiu foi uma mistura de zumbido elétrico da energia liberada e uma explosão suave no momento em que o golpe pareceu fazê-lo ceder provisoriamente.
O impacto físico e o efeito corrosivo da energia negativa eram evidentes pelo buraco em seu peito. Cada partícula de energia atuou na aniquilação de seus órgãos internos, abalando toda a sua essência.
— Lá vem…
A área inteira tremeu ao som do rugido selvagem da fera cuja melodia discordante ressoou por toda parte. Aquele rastro de som não era apenas um grito, mas a expressão da angústia e da fúria da criatura.
Com o brado, sua postura mudou instantaneamente, o que indicava uma adaptação.
Seus membros entraram em uma dinâmica enlouquecida de contorções, reagindo ao ataque de Mikael como se toda a sua natureza estivesse sendo afetada.
— Outra opção…
Os tentáculos investiram mais uma vez, fatiando o ar como chicotes de obsidiana. Serpenteavam como predadores, prontos para estraçalhá-lo em meio segundo.
Mas a batalha estava longe de seu clímax.
— Permuta Celestial.
O mundo ao seu redor mudou subitamente de densidade. O ar ficou mais pesado, pois moléculas mais densas e hostis substituíram as originais. A energia negativa fluía e reescrevia o espaço em tempo real. Até um raio exato de cinco metros, o espaço permanecia maleável. O chão se enrugou e, onde Mikael estava um microssegundo antes, restou apenas um pedaço irregular de uma cadeira de madeira quebrada retirada do próprio entorno e posicionada ali por pura intenção. Um deslocamento absoluto de coordenadas no espaço tridimensional.
O resultado foi brutal e imediato.
Os tentáculos fincaram-se violentamente naquilo que agora ocupava o espaço. Sem tempo de recalcular o ataque, o Mephisto projetou os próprios membros contra si mesmo. A inversão de vetor comprometera tanto sua mira quanto sua integridade. As lâminas nas pontas cortaram sua carne negra e entraram até a base em seu tórax e abdômen. O grito que soltou foi seco, travado, engasgado.
Ele cambaleou, e os tentáculos se contorceram em desespero ao tentar se desvencilhar do próprio erro. Mikael já havia reaparecido alguns metros à frente.
— Gosta de surpresas, né?
Seus olhos se estreitaram.
“Mesmo que eu atacasse com toda a minha força, o corpo dele se adaptaria, tornando-se imune. Mas e quanto ao dano que ele mesmo sofre, o que ocorre?”
Foi a primeira vez que ele viu o Mephisto sofrer um prejuízo.
O sangue fluía das áreas atingidas pelos espinhos, oferecendo um vislumbre de esperança.
Em retaliação, um sorriso zombeteiro surgiu nos seus lábios.
— Exatamente como previ.
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