Capítulo 38 - O Mais Forte
O Mephisto deu um passo em frente, cambaleante, enroscando os tentáculos no seu próprio torso como serpentes enlouquecidas que perderam o sentido de orientação. O sangue jorrava em jatos grossos e escuros como alcatrão velho ou tinta estragada. As lâminas cravadas na sua carne latejavam em agonia muda por entre os movimentos convulsivos do corpo da criatura, que se contorcia desesperadamente como um animal encurralado tentando escapar da sua própria armadilha.
Mikael observava com os músculos ainda tensionados, esperando que aquilo fosse o fim.
Mas não era.
Ouviu-se um som desagradável de madeira velha a torcer-se até partir. Fez um esforço desumano para arrancar os tentáculos fincados. Um a um, os apêndices eram arrancados pela base, partindo-se como galhos secos. A pele negra rasgou-se em tiras, expondo uma carne fibrosa e irregular entremeada por estruturas nervosas trêmulas.
Ele não se regenerava, e mesmo assim continuava.
A cada pedaço arrancado correspondia um grunhido abafado e gutural de uma garganta obstruída por fragmentos de osso. No seu olhar, não havia racionalidade, apenas uma força primitiva e teimosa, um instinto que o arrastava até ao último segundo. As suas mãos tremiam ao fecharem-se em torno do último tentáculo encravado entre as costelas. Segurou-o com tanto ímpeto a ponto de os músculos do peito se rasgarem num estalo úmido, espalhando fluidos negros no chão como se estivesse com as entranhas vomitadas pela ferida.
Quando o último tentáculo caiu no chão, o Mephisto estava arquejante. A sua forma ora era irregular e desequilibrada na carapaça muscular esventrada por buracos escancarados, de onde jorravam filetes negros numa cadência desregrada. No entanto, ainda estava de pé.
Mikael franziu o cenho.
— Você realmente não sabe a hora de cair, né?
A criatura deixou escapar um rugido grave, semelhante a um trovão engasgado. Enfiou as garras no solo qual brocas orgânicas, rompendo a compactação do terreno bruscamente. Fendas abriram-se em zigue-zague, delineando trajetórias erráticas de colapso da estabilidade sob os pés. A terra, saturada pelo cultivo, rendeu-se sem resistir.
Mikael deu um salto para trás. Os seus calcanhares esmagaram uvas em decomposição, salpicando o chão com uma mancha espessa e púrpura. O cheiro de fermento ácido e ferrugem foi-se infiltrando pelas suas narinas para dentro da corrente sanguínea. O ar tornara-se um agente agressivo.
— Sem chance… — rosnou, já com os ombros curvados em prontidão.
A criatura enfiou os membros na crosta ainda mais fundo e, numa ação que demandaria dezenas de quilos de força muscular, puxou. O solo resistiu por uma fração de segundo, até ceder ruidosamente com o crepitar de raízes antigas ao partirem-se.
Do subsolo subiu um enorme bloco de terra compactado coberto por uma densa malha de raízes de videiras onde ainda se via a seiva pulsar. Embora o peso fosse absurdo, o monstro conseguia erguê-lo acima da cabeça.
Mikael não pensou muito ao perceber aquela massa sendo jogada na sua direção. A palma da mão direita abriu-se lentamente e o espaço à sua volta respondeu numa súbita tensão.
「 Fusão Vibracional 」
A zona de conflito energético surgiu entre ele e o projétil no momento em que a massa colossal foi lançada. Um campo gerado por forças de polaridade opostas fez com que a energia positiva e a energia negativa colidissem em microexplosões invisíveis, gerando frequências incompatíveis com ressoares em camadas vibracionais distintas. Com efeito, a sua estrutura material perturbou-se.
O bloco de terra desacelerou abruptamente quando atravessou o véu denso. Inicialmente, foi atraído e puxado pelo centro gravitacional criado pela energia positiva. Todavia, Mikael injetou uma dose abrupta de energia negativa que produziu uma força de ruptura e repulsão. O resultado foi impensável um equilíbrio absoluto.
A pedra flutuava. Um monólito suspenso no tempo. Nenhuma aceleração, nenhum recuo. A energia oposta se mantinha como duas vozes discordantes segurando um grito na garganta.
Mikael avançou.
Desapareceu numa explosão repentina e reapareceu diante de Mephisto como um martelo de carne e fúria no punho cerrado. Encontrou o braço exposto da criatura e o golpeou. O soco aproveitava a inércia do golpe anterior para a canalizar como combustível reverso, gerando uma vibração concêntrica propagada pelo corpo da aberração.
Sem dar tempo para reagir, Mikael levantou a outra mão. Um movimento milimétrico foi suficiente para um ajuste ínfimo no campo da Fusão Vibracional, provocando a perda do delicado equilíbrio gravitacional do bloco.
O colosso de terra caiu como uma sentença.
E antes que o mundo se quebrasse ao redor, Mikael executou a transição com maestria:
「 Permuta Celestial 」
Num instante, trocou de lugar com um dos destroços próximos que se encontrava no chão: um banco de madeira rachado, ainda coberto por cacos de vidro e resquícios de vinho fermentado. O espaço reagiu a esta mudança ao abanar de forma súbita para dar tempo à realidade de a aceitar.
O projétil esmagou o Mephisto por completo. O som da colisão foi ensurdecedor. As videiras dilaceradas estalaram como ossos. O impacto fez-se sentir por todo o pátio, sacudindo o teto e levantando a poeira das tábuas. O ar encheu-se de uma nuvem castanha e cinzenta, um sopro sufocante de pó, terra, seiva e fim.
Mikael surgiu a metros de distância, curvado, arfando com os braços nos joelhos. Seu peito subia e descia como se tentasse vencer o próprio limite.
— Urf… — Suspirou, cuspindo a poeira que lhe secava a garganta.
E o silêncio após o estrondo era o tipo de silêncio que assustava mais do que qualquer grito.
Mikael, ofegante e exausto, recuou alguns passos.
— Chefe, você acha que eu sou forte?
A quietude imposta era suficientemente agonizante, um intervalo pontuado apenas pelo som irregular de sua própria respiração, enquanto antigas lembranças da conversa com o líder eram revividas.
— Que pergunta é essa? Sempre vi você como alguém confiante e seguro. Claro que é, Mikael. Você é um dos mais fortes que já tivemos por aqui.
As veias pulsavam em seus braços. O suor escorria de sua testa, mesclando-se com a poeira que cobria seu corpo.
— Então… é isso.
A técnica de Mikael tinha uma vantagem dupla. Embora o aproveitamento de energias negativas e positivas lhe proporcionasse um poder incrível, a tensão mental era excruciante, pois a energia negativa por si só exigia concentração, mas incorporar sua contraparte, a energia positiva, era uma caminhada na corda bamba mental.
O esforço era como fazer malabarismo com duas forças opostas em sua mente, deixando-o completamente exausto no final. A consequência era sempre a mesma: fadiga que ameaçava deixá-lo incapacitado.
— Considerando o estrago anterior, parece improvável que ele consiga se recuperar sem antes lidar com uma lesão adicional tão séria, então posso estar testemunhando o fim da linha.
Ele permaneceu imóvel, aguardando qualquer sinal do Mephisto. A pressão que antes dominava a cena parece que o fez ceder quando desabou juntamente com os destroços do restaurante.
Desde então, a criatura não demonstrou qualquer sinal de vida. Isso significava uma vitória e um confronto relativamente curto, porém estressante, para ele.
Mikael exibiu um sorriso convencido, dando as costas ao perdedor e caminhando em direção à saída.
— Bem, não dá para os mais fracos competirem, não é mesmo? — Soltou uma risada. — Honestamente, você foi uma boa distração!
Mikael estava profundamente enraizado na dicotomia de seu próprio poder, carregando tanto o peso da arrogância quanto o calor do interesse próprio em seu coração. Para ele, era uma equação simples: o controle determinava todas as facetas de sua vida, e poder era o mesmo que controle. Seus olhos transmitiam sua forte crença de que o poder era a natureza fundamental da vida, e não apenas uma ferramenta útil.
Aceitando o egoísmo de sua força, ele achava que o poder dava o direito de controlar o próprio destino e o destino dos outros.
A pergunta dirigida ao líder: “Eu sou o mais forte?”, não era uma tentativa sincera de obter aprovação, mas mais como uma forma de confirmar sutilmente o que ele já sabia. Qualquer resposta afirmativa não apenas acariciava seu ego, mas também confirmava sua crença de que a força era mais do que apenas proeza física. Era uma tentativa de exercer controle sobre o caos que cercava sua vida. No entanto, este sucesso dependia de um cuidadoso planeamento e, sem ele, a derrota estaria praticamente garantida.
— Hm?
O Mephisto não ia cair sem terminar o que lhe foi pedido.
A terra que ameaçava engoli-lo tornou-se um túmulo inclemente, mas a criatura se contorceu com uma força monstruosa. Lentamente, agonizante e incrivelmente, aquele pedaço de terra ergueu, revelando um monstro surrado, forjado a partir de um pesadelo.
Sua forma escamada era uma tela de ferimentos graves, cortes profundos que vazavam um ichor escuro que refletia sua forma sombria. Cada músculo exposto se esforçava. Com um último impulso, que pôs de lado aquela massa, o Mephisto se libertou, um monstruoso testemunho de sua vontade.
Permaneceu ali, um monumento vivo à sua recusa em ceder, uma demonstração aterrorizante de resistência bruta.
— Não tem jeito mesmo.
Portanto, seu ponto de vista trazia consigo o peso de uma solidão auto imposta, embora lhe oferecesse uma breve sensação de poder.
Como Mikael se fechava em seu próprio castelo, onde as sutilezas da fragilidade humana eram ocultadas por uma armadura de autoconfiança, ele acreditava que a força era o determinante final. Cada triunfo era como mais uma pedra nessa fortaleza, fortalecendo as paredes que o separavam de uma compreensão mais profunda e de um relacionamento genuíno com outras criaturas.
Frequentemente, ele percebia que o controle que desejava tão desesperadamente lhe escapava, escorregando por entre seus dedos como areia.
Sem dúvida, a altivez que ele projetava era uma fachada para as fraquezas de sua autoconfiança e para os momentos em que ele tentava submergir em sua própria força.
Mikael estava ciente do impacto emocional que sua busca por sempre superar a si e aos outros havia causado. Seu senso de controle sobre outras pessoas e sobre seu próprio destino se transformou em uma gaiola que o mantinha sozinho em um pedestal.
Geralmente, o poder que ele aceitava como sua bússola o deixava vulnerável a uma maldição insondável.
— É… — Suspirou. — Queria terminar isso rápido, tem gente me esperando lá fora.
Seria esse um problema para si?
A resistência do Mephisto era um desafio intransponível para Mikael, não um problema. A tensão no ar aguçou seus sentidos para o conflito iminente e fortaleceu sua determinação.
— Bem, durante um bom tempo, eu jurei que ser forte bastava. Controle, poder, força… parecia ser tudo que importava.
Uma luminescência avermelhada emergiu dos olhos de Mikael, lançando um tom carmesim que pairava no ar como a promessa de uma tempestade iminente.
— Só que a fraqueza é um luxo que não posso me dar. Ser forte não é apenas uma escolha, é uma necessidade. A conformidade é um convite à derrota e você, assim como eu, se recusa a ser derrotado.
A dualidade do poder foi exposta como um fardo, um fio fino que ligava a sensação de controle total a um lugar ermo e miserável.
— Veja, a força não é apenas um meio para atingir um fim. Ela é o fim em si mesma. O controle que exerço sobre minha própria vida é a própria essência da minha existência.
Ao dizer essas palavras ousadas ao Mephisto, Mikael estava a ponto de se exaltar, quase no limite da insanidade. Seus olhos brilhavam intensamente, refletindo a intensidade do poder que ele sentia ser seu por direito.
— Que droga…
A palma da sua mão estava tapando seus olhos. Sua respiração ficou pesada, como se a intensidade do momento estivesse se infiltrando em cada fibra de seu ser. Apesar de sua aparente confiança, Mikael sentiu uma corrente de inquietação percorrendo seu corpo. A linha tênue entre o controle e a loucura estava sendo testada e ele mal conseguia conter a torrente de emoções que o estava empurrando para além dos limites da razão.
— Será que realmente importa? — sussurrou para si mesmo, sua voz carregada de incerteza.
Ele podia sentir a sonoridade discordante da energia negativa reverberando em sua consciência, um zumbido constante que pulsava em suas veias.
Afastou a mão que cobria seus olhos, expondo um olhar agudo que irradiava uma tonalidade estranha. Tinha uma cor semelhante ao vermelho-sangue, mas também tinha uma energia esquisita, como se o próprio fluido vital estivesse ganhando vida.
— Esse é um presente que a minha mãe me deu.
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