Capítulo 44 - Essência Torcida
Na casa de Amy
Eu não sabia ao certo se aquilo que vi diante de mim poderia ser chamado de criatura. Sua forma era mais próxima da negação de qualquer ordem natural do que outra coisa; esticada em algumas áreas e retraída em outras, sua pele deixava à mostra placas musculares desorganizadas, cuja disposição fazia com que sua anatomia parecesse ter sido reinventada ao acaso. Inúmeras cicatrizes cruzavam sua superfície, fundindo restos de tecido necrosado a pedaços de pele parcialmente carbonizados.
Sob a derme, havia nervuras visíveis, como se o coração batendo em algum lugar interno não fizesse parte do mesmo organismo; a estrutura dos braços era composta por tendões tensionados até o limite, que terminavam em lâminas ósseas curvadas; as falanges dos dedos eram espículas resistentes, dotadas de sulcos que aumentavam suas capacidades de penetração.
A estrutura do seu rosto era um pesadelo reduzido a uma série de buracos escuros no lugar do nariz. Tinha apenas um buraco rasgado que se estendia horizontalmente no lugar de uma boca. Não existiam lábios. Dessa boca defeituosa, dentes pontiagudos sobressaíam como pinças, suplicando por carne fresca.
A ameaça estava clara na forma como aquele corpo ocupava o espaço. E, por mais que eu tentasse manter a racionalidade, minha mente lutava contra o impulso natural de recuar.
Respirei fundo. No canto do meu olhar, avistei uma prateleira com livros infantis desalinhados e o tecido amarrotado de uma cortina azul com nuvens costuradas à mão. As paredes enfeitadas de cores vivas lembravam uma memória que já não tinha lugar naquele presente.
Não importa o que fosse, aquilo precisava ser parado.
— É isso, então.
A criatura avançou e, com ela, o mundo se contraiu. Sua presença envenenava o ar com sua energia negativa ao ocupar frestas e superfícies antes inocentes. Seu tamanho não era o único fator preocupante, mas também o peso do que ela impunha. Olhei ao redor e vi o tapete rosa rasgado ao meio, bonecas tombadas sobre livros coloridos e desenhos infantis colados nas paredes com fita amarelada. A imagem de uma estrela roxa sorrindo foi engolida pela sombra que cruzou a parede.
Minha musculatura inteira se tencionava com fibras se alongando num esforço instintivo de sobrevivência. A frequência cardíaca aumentava como uma curva sem controle. Respirar exigia esforço. O ar contava com uma densidade estranha à qual se misturavam o gosto de tinta, poeira antiga e de algo mais difícil de definir, mas que lembrava carne apodrecida.
Por mais que a mente gritasse por uma explicação lógica, nenhuma resposta racional vinha à tona. Encarar o absurdo e resistir à tentação de fugir era o único traço de lucidez que me restava. Eu sabia que ceder não encerraria o sofrimento; apenas o tornaria mais lento.
O Mephisto jogou uma cama lateralmente para abrir caminho. Os parafusos giraram em seus eixos, a madeira rendeu-se ao impacto e o colchão voou, rasgando a borda de uma cômoda. Os estilhaços cortaram o ar em trajetórias desordenadas. Um deles atingiu o abajur, que explodiu ao bater na parede. A luz fraca e estroboscópica piscou por meio segundo antes de se apagar de vez.
Lancei o peso do corpo para o lado, rolando sobre o cotovelo direito e protegendo a lateral do crânio com o antebraço. Senti a pressão do deslocamento de ar passar rente às costelas, acompanhada de um estampido que reverberou pelo piso. Parte do rodapé da parede atrás de mim foi arrancada pelo impacto. O cheiro que se espalhou logo em seguida misturava sangue seco com o pó acumulado entre as ripas.
A criatura recuou um passo. Suas garras raspavam o chão toda vez que se deslocava, e sulcos se formavam no vinil desgastado. A ponta de uma de suas unhas roçou uma boneca caída no chão. O rosto de plástico se partiu ao meio com uma fina estalada, desmanchando os olhos pintados na mesma hora.
Tentava me medir. Queria testar a resposta do ambiente, os limites da estrutura ao redor. Isso tornava tudo pior.
Segurei a ânsia de olhar para a porta. Fugir era uma opção que se tornava menos viável quanto mais o tempo passava. Por mais do que paredes, o quarto se tornara um recinto fechado onde a única forma de sair vivo era vencendo.
Mantive a respiração controlada, guiando o foco para o próximo passo.
“Pensa… Pensa, porra!”, exigi de mim mesmo, varrendo o chão fragmentado à procura de algo que pudesse ser usado como extensão à minha vontade de sobreviver. Entre pedaços de plástico colorido e o brilho de molas expostas, um pedaço irregular de espelho se destacou sob uma folha de caderno escolar rasgada.
Me abaixei. O ombro direito protestou em espasmos de dor, mas não esperei pela permissão do corpo. Toquei o vidro com os dedos em garra, sentindo sua superfície ameaçadora. Era fino o bastante para quebrar de novo se mal manejado, mas tinha a rigidez suficiente para furar àquilo.
Todavia, a dúvida veio. Aquilo bastava? Bastava contra aquilo?
Não importava. O Mephisto continuava ali.
— Vem cá, seu verme.
A criatura deu uma volta rápida ao girar o torso de forma abrupta, descrevendo um arco enquanto sua coluna exibia articulações em excesso. Seus olhos brilhantes denunciavam um prazer doentio além da fome. Suas pernas se esticaram e, num impulso veloz, seu corpo inteiro disparou. O braço desfigurado veio em minha direção em um ângulo oblíquo, vindo da lateral.
Inclinei o tronco para trás e desviei com uma rápida transferência de peso para a perna de apoio. Meu pé deslizou sobre uma boneca de pano rasgada, e mesmo assim consegui manter o equilíbrio. Projetei o braço no mesmo impulso e enterrei o vidro no tecido mole do monstro. O vidro perfurou a pele, que resistiu por milésimos de segundo, até ser vencida pela tensão superficial e romper em um som úmido. O líquido quente, espesso e com odor ácido saía em jato e logo cobriu minha mão como um verniz pegajoso.
O urro que escorreu da criatura vibrou no revestimento das paredes e fez os adesivos infantis balançarem. Soltei o pedaço de vidro ainda incrustado e procurei outro fragmento perto do pé; o segundo era mais estreito e mais limpo. Segurei-o, posicionei o ombro por trás do movimento e avancei.
Ataquei o ponto em que o braço doentio se articulava, inseri o vidro no intervalo entre o tecido e o osso de modo a puxá-lo em linha reta. A lâmina deslizou em um corte contínuo. A textura sob o vidro variava entre tendões fibrosos de um lado e uma espécie de massa em decomposição do outro. A resistência do corte mudava a cada centímetro, aproximando a sensação de que o corpo abrigava estruturas distintas.
Corri em diagonal até a parede ao lado, coberta por um papel de parede de desenhos de coelhos. Usei a força das pernas contra o rebote elástico do gesso para me projetar nas costas da criatura. Caí sobre ela com o braço em movimento descendente, golpeando a abertura exposta ininterruptamente.
O sangue escorria em linhas negras e densas. O calor da substância se infiltrava no tecido da minha roupa a ponto de queimar a pele. As camadas externas da carne da criatura se desfaziam após cada corte. As estruturas orgânicas internas tremiam, reagiam ao toque e se contraíam ritmicamente, lembrando organismos autônomos vivendo dentro de outro.
Minha visão começou a perder o foco. Meu cérebro enviava sinais de exaustão, que eu ignorava.
Um puxão súbito me tirou do eixo. O corpo da criatura girou sobre si e me arrastou junto. Sua mão envolveu meu braço em um laço firme com o qual apertou minhas costelas pouco a pouco, empurrando o ar para fora dos pulmões. Tão rápido que não tive tempo de reagir, fui lançado.
Minhas costas bateram em outro armário. As prateleiras se arrebentaram e roupas pequenas, tais como meias, vestidos e tecidos acetinados com cheiro de amaciante, caíram sobre mim. No impacto, senti a coluna se flexionar no ponto errado. A dor explodiu nas vértebras lombares e se espalhou pela parte de trás das pernas como um curto-circuito.
O mundo escureceu por um segundo. O som do próprio coração tomou tudo.
Ainda não.
“Levante-se.”
Era tudo o que eu conseguia pensar.
“Levante ou morra aqui.”
Mordi o lábio até sentir o gosto do sangue e me forcei a ficar de pé.
O mundo girava, meus joelhos vacilaram, mas me apoiei no que restava do armário, com dificuldade para respirar.
Encarei a criatura mais uma vez, ciente de que não tinha muito tempo. Minhas mãos tremiam, meu peito ardia, mas eu ainda estava vivo. E enquanto eu estivesse vivo, ainda havia uma chance.
— Filho da puta… — murmurei, cuspindo sangue no chão.
O desespero era um velho conhecido, mas a adrenalina fazia com que ele parecesse distante, como um fantasma sussurrando ao longe. A aberração à minha frente representava algo maior que a morte: o fim de tudo em que eu acreditava.
Eu não permitiria isso. Mesmo que minha existência se tornasse um sacrifício, eu faria com que essa criatura caísse antes de mim.
Aproximei-me com o punho cerrado, me sentindo carregar o peso do mundo. Meu soco atingiu sua cabeça com a força de uma onda batendo em rochedos. Por um momento, o monstro oscilou, e sua estrutura sobrenatural de carne reagiu.
Minhas juntas ardiam, e um resíduo viscoso e negro manchava minha mão, causando uma sensação de queimadura gélida que subia pelo braço. Ignorei. Não havia tempo para hesitar.
— Aguenta essa, desgraçado! — exclamei, a voz rouca como cascalho triturado.
O segundo golpe veio de baixo, direto no queixo. Senti o impacto reverberar pelos ossos, e a cabeça da criatura foi jogada para trás, exposta por um breve momento à grotesca vulnerabilidade de sua garganta.
Seus olhos, caso pudessem ser chamados assim, resplandeceram com uma mistura de dor e raiva.
Nada me fez parar.
Outro golpe, desferido no peito, afundou na carne deformada. Um líquido escuro e denso jorrou de sua boca, manchando o chão e as paredes. Ele cambaleou, um peso desajeitado que colidiu com a parede atrás de si, deslizando até o chão.
— Isso é bom, não é? — falei, com um sorriso que nem eu reconheci. A satisfação de vê-lo enfraquecido, vulnerável, era amarga, mas necessária.
Meus olhos captaram algo brilhando entre os destroços da penteadeira quebrada. Um pedaço de vidro, afiado como uma lâmina improvisada, esperava por mim.
Inclinei-me e o peguei, sentindo a frieza do material contra a palma da mão. Caminhei em direção à criatura com passos pesados.
— Vamos acabar com isso.
O monstro tentou se mover, mas era tarde demais. Penetrei profundamente o caco em seu peito, e a carne resistente cedeu com um som molhado e inquietante.
A ponta do vidro rasgava de forma lenta e cruel, um corte diagonal que atravessava sua caixa torácica. O grunhido que ecoou de sua garganta era um lamento inumano, um som carregado de todo o sofrimento do mundo.
O sangue, negro como a noite, jorrou do ferimento, e espalhou-se pelo chão em uma poça viscosa que reluziu sob a luz fraca.
As mãos deformadas da criatura batiam no ar em espasmos e seus dedos protuberantes se projetavam como garras afiadas. Era um reflexo de puro desespero, mas havia força ali, uma força faminta e inesgotável. Suas tentativas de me atingir eram erráticas, embora cada investida expressasse uma vontade de não desistir.
Agarrei uma de suas mãos. A pele, fria e áspera como casca de árvore, cedeu sob os meus dedos. Torci o pulso grotesco para trás até sentir os tendões se esticarem até o limite, enquanto a criatura soltava um som gutural.
— Você não vai sair daqui, porra!
Com a mão livre, cravei o caco de vidro na lateral do seu pescoço. O fluido escuro que escorria de suas veias tinha um cheiro fétido, uma mistura de carne queimada consoante metal oxidado. No entanto, em vez de abrir mão, o ser arqueou o corpo para trás, puxando o vidro da minha mão rapidamente.
Ao se contorcer, a criatura usou a força do quadril para desferir um chute que atingiu meu joelho. Minha perna fraquejou e eu me equilibrei para não cair. Antes que pudesse reagir, girou o torso e enfiou as garras no meu ombro, pelo qual o peso de sua força me puxou para baixo.
Meus músculos gritavam em agonia, mas insisti. Girei o quadril rapidamente e a empurrei contra a parede com força. Sua cabeça bateu em um som abafado, algo que só pareceu irritá-la ainda mais.
Ela respondeu à investida de forma agressiva, com um movimento de ataque feito com suas garras, as quais rasgaram o ar em um arco perto o suficiente do meu rosto.
Rolei lateralmente e agarrei um pedaço de madeira quebrada no chão. Ela ainda não havia se endireitado totalmente quando avancei com o pedaço que improvisei como uma lança e o enfiei fortemente à altura do seu tronco. A madeira afundou ruidosamente. A fera se debateu e soltou um grito rasgado. Ainda assim não parou.
Sua mão esquerda encontrou meu antebraço e o apertou intensamente. Os ossos do meu braço estalaram, e um grito escapou dos meus lábios. Soltei o pedaço de madeira para tentar me libertar, ainda que a força dela fosse incontestável. Em seguida, jogou-me contra a parede.
O impacto me roubou o ar dos pulmões. O mundo ao meu redor girou, entretanto, continuei com os olhos abertos. O Mephisto permaneceu agachado junto à parede. Seu corpo tremia, com os ombros arqueados, apoiados como se carregasse um peso impossível.
Por mais insuportável que fosse a dor, meu instinto me dizia que não podia parar ali. A criatura ainda estava viva e ainda era uma ameaça. Eu não podia deixar que aquilo terminasse daquele jeito.
Minhas pernas fraquejaram enquanto eu tentava me levantar. Encostei-me na parede áspera, onde minha palma escorregou na superfície ao reunir forças para levantar meu corpo.
Uma dor lancinante irradiava do lado esquerdo de meu peito. O ar entrou desafiadoramente, cortando meus pulmões a cada inspiração. Cambaleei adiante, com minhas botas rastejando no chão manchado, em uma tentativa de estabilizar um corpo que estava à beira do colapso.
Entretanto, uma estranha sensação apoderou-se de mim.
A minha convicção começou a vacilar, como se houvesse alguma dúvida sobre a certeza do meu próximo passo. A calma do momento contrastava com o conflito interno que eu estava experimentando.
Havia uma dissonância entre a respiração frenética, o batimento cardíaco acelerado e o silêncio antes da tempestade.
Um momento de hesitação inesperado surgiu, lançando uma nuvem sobre a crueldade que tinha moldado o meu comportamento até à altura.
— O que é isso…?
Mesmo na sua forma deformada e hedionda, dessa vez ele emitia um som estranho, um ruído dissonante que lembrava o choro de uma criança.
Contra seu traço grotesco, era um contraste desconcertante.
Franzi o sobrolho, tentando compreender a aberração diante de mim.
— Essa coisa… tá chorando?
Os meus pensamentos tentavam dar sentido daquilo que vinha de forma anormal enquanto este continuava a emitir o barulho desagradável de uma criança em prantos à minha frente.
— Tá… — Afastei-me lentamente. — Sério, isso tá indo pra um nível totalmente novo de bizarrice.
A coisa estava deitada no chão, com sua forma hedionda agora curvada, como se a agonia de suas desfigurações fosse suficiente para fazê-la se prostrar perpetuamente e gritar.
O grito estridente reverberou pelo espaço, evocando uma sensação esquisita de desesperança.
Seus apêndices deformados tremiam, um espetáculo horrível que desafiava a lógica.
Sua aparência estranha combinada com o som agudo de suas lamentações resultou em uma atmosfera desconfortável e inquietante.
Algo estranho e realmente fascinante estava a emergir do seu núcleo nefasto.
Era como se, no vazio sombrio da sua vida, vivesse dentro dele uma criança amotinada a que se tinha aprisionado.
Esta criança não era qualquer uma, com um riso inocente e olhos curiosos; era antes um espírito infantil familiar que tinha sido cruelmente alterado por uma mutação dolosa.
Em vez de destruir a criança que um dia foi, a mutação parece tê-la aprisionado num ciclo interminável de inocência e maldade.
Amy?
Senti um arrepio correr pela minha espinha.
O seu espírito inocente que foi apanhado durante o processo de metamorfose estava contido na estrutura deformada de Mefisto.
A minha voz ressoou com incredulidade com um:
— Nem fodendo… nem fodendo… — Olhei para as minhas mãos. — Eu… eu…
A dura realidade atingiu-me como um murro rápido e cruel.
As mãos que inicialmente acreditei estarem manchadas com o sangue de Mephisto estavam, na verdade, a agarrar o fluido espesso e vermelho que emanava dos ferimentos de Amy aprisionada no interior da criatura.
Fui tomado por uma onda de horror ao aperceber-me de quão brutal eu realmente era.
— A-ah, caralho, caralho… de novo não…
O choque abalou-me até ao âmago, fazendo com que uma onda de desespero se abatesse sobre os recônditos porosos da minha mente.
Esta criança era uma vítima infeliz do meu impulso insensato, cuja essência infantil sujava agora as minhas mãos. Com uma intensidade esmagadora, senti o peso da minha conduta perversa, uma agressão à pureza que era essa coisa.
— Uma criança… Eu machuquei a porra de uma criança. — A garganta apertou-se e as palavras saíram-lhe em soluços. — Eu não sou assim, não é possível. Não era para ser assim…
O que tinha começado por ser uma simples atitude, transformou-se numa constante aversão a mim próprio.
Era eu que estava a condenar à morte os inocentes que tinha jurado defender.
Minhas mãos, trêmulas, pendiam à minha frente como se estivessem tentando afastar a cruel realidade.
— Eu… eu nem sabia que era ela… Isso é loucura, não pode ser real, pode?
A incredulidade em meu rosto ecoava nas palavras desesperadas que saíam de minha boca.
— Esse não sou eu, porra… — Minhas palavras assumiram um tom agudo e cheio de medo. — Eu só queria acabar com ele, mas não percebi… Isso não está certo.
O sabor do sangue infiltrou-se na minha boca, convertendo-se no sabor amargo da traição e servindo como um lembrete contínuo da linha que separava o heroísmo do monstro.
A intensidade da situação ofuscou a naturalidade e a casualidade de minhas observações.
Uma fragilidade significativa tomou o lugar da minha coragem e segurança, como se, de repente, eu estivesse enfrentando algo muito maior do que qualquer obstáculo que eu havia previsto.
— Tenho que consertar isso de alguma forma… mas como?
Confrontar a noção de que, por baixo do exterior hediondo, residia aquela menina, agora confinada e deformada, foi uma constatação chocante.
Tsc.
A minha expressão era de grande desespero misturada com incredulidade.
Confrontar a contradição entre a criança que estava dentro deste monstro e a monstruosidade cá fora representava um enorme desafio moral.
Detive-me por um instante, sem saber como reagir a esta constatação.
A distinção entre o monstro e a vítima foi-se esbatendo.
A circunstância assumiu um toque agridoce por causa da energia inocente que estava agora presa no meio da deformidade.
Amy parecia estar presa num corpo que já não era o seu, o seu espírito preso entre duas outras realidades – uma representação distorcida da sua pureza perdida.
— Foi ele… não foi?
Sem dúvida, Klaus Fritz era o único responsável por este estado anormal.
Devido às suas experiências desumanas e ao seu poder sobre as forças que deformam a própria existência, ele era o único que podia ser responsabilizado pela horrível mudança de Amy.
A ideia de que uma criatura horrível e perversa pudesse brincar com a vida de uma criança e transformá-la em algo tão diferente do que ela era na sua essência em si mesma era horrível.
— Esse cara…
Aquele monstro vil, Klaus Fritz, tinha ido longe demais na sua moralidade. O que ele tinha feito à Amy era uma violação da própria natureza, não apenas uma simples mutação.
Senti uma tempestade avassaladora de ódio, mágoa e raiva dentro de mim. No entanto, tinha consciência de que, no meio desta turbulência emocional, precisava de encontrar um lugar de serenidade para poder avançar e enfrentar a situação.
Fechei os olhos por breves instantes, numa tentativa de encontrar a calma interior. Concentrei-me na minha respiração, sentindo o ar entrando e saindo como se fosse uma força de aterramento.
Por um momento, tentei ignorar as imagens macabras, numa tentativa de controlar a onda de sentimentos que estava prestes a consumir-me.
“Controle-se.”, disse para mim mesmo, esforçando-me por acalmar o meu coração nervoso.
Fiz com que a minha mente se afastasse emocionalmente das recordações perturbadoras que iam surgindo, construindo um muro de defesa.
Quando abri os olhos, a imagem repulsiva ainda lá estava, mas agora olhava para ela com uma determinação rígida.
O meu progressivo domínio da raiva permitiu que esta se tornasse um combustível controlado. Canalizava os meus maus sentimentos para meu peito.
— Amy.
A coisa pareceu ouvir chamar e olhou para mim.
— Vamos brincar.
Deixei escapar a voz, uma tentativa débil de reacender a essência perdida que esta besta ainda tinha.
Embora a criança dentro dele estivesse distorcida pela mutação, ainda era um esforço humano a ser comunicado, mesmo que não houvesse nenhuma garantia de que Amy compreenderia ou responderia.
Uma estranha sensação de tristeza e pena permeava em mim, ecoando o luto silencioso de alguém cuja vida tinha sido cruelmente alterada pelas mãos da experimentação e da mutação.
A coisa, aparentemente dividida entre duas realidades, dirigiu-me um olhar que, por uma fração de segundo, me trouxe memórias da inocência da infância.
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