Índice de Capítulo

    Movido por um impulso ousado, dei início a um jogo de “pega-pega” que se transformou numa alegria enorme entre mim e o Mephisto. 

    Brincar, rir e correr tornou-se muito mais do que um simples passatempo. Coube-me a mim o papel de mediar um equilíbrio entre persegui-lo e deixá-lo ir, agir como uma “pega” e querer tocá-lo. 

    Diversão, uma ação inerentemente associada à juventude, passava a ser um ritual emocional de companheirismo e ligação, entre formas surpreendentes de escapar ao toque. O carácter distintivo do nosso jogo estava refletido nas risadas contagiantes e no prazer tangível que acompanhava cada passo.

    O entusiasmo era transportado por quem era tocado, fazendo com que nos deixassem ser levados pelo prazer. O sentido de hostilidade desapareceu quando nos demos conta de que éramos cúmplices na alegre celebração do divertimento, pelo que cada toque constituía uma fonte de energia renovada. 

    Não necessitamos de diretrizes complexas ou táticas desafiadoras. Tudo o que foi necessário foi uma dose saudável de riso contagiante, um espaço aberto e um desejo improvisado de participar. 

    Esta foi a minha ideia concretizada em um jogo que acolheu nossas crianças interiores com um senso perene de diversão e camaradagem. Era uma representação marcante do espírito indomável da juventude e um lembrete genuíno de que existia uma simplicidade cativante por trás da complexidade da vida.

    Como uma melodia interminável, ouvi o riso inocente de uma criança, ansiosa por se afastar do “pega” e apreciar a qualidade espantosa e transitória do momento, repetiu-se.

    Quando finalmente o alcancei, perseguindo-o pela cozinha, coube ao Mephisto o papel de “pega”.

    Ele corria com seus pés trêmulos, alternando entre a sua forma deformada e as memórias longínquas de uma juventude despreocupada A sua boca estilhaçada emitia um riso que era uma piada irônica que virava do avesso as memórias felizes da infância.

    O jogo se tornou um exercício de sobrevivência enquanto eu corria pelo corredor em direção à escada do segundo andar, desviando de tentáculos retorcidos e mãos deformadas que tentavam me agarrar. 

    O som dos meus passos apressados contra o chão ecoava como a batida de um coração acelerado, como se cada passo parecesse um esforço desesperado para alcançar algo irremediavelmente perdido.

    Ao olhar para trás, vi um tentáculo do Mephisto vindo em minha direção. Por instinto, joguei-me para o lado, pressionando minhas costas contra a parede como se estivesse me segurando, o que fez com que o tentáculo passasse a poucos centímetros do meu rosto.

    — Essa foi por pou… 

    Antes que eu pudesse concluir, o Mephisto lançou outro ataque. Não tive tempo para pensar. Agachei-me, caindo no chão no momento em que o tentáculo passou por cima de mim, raspando no teto e lançando uma chuva de lascas de gesso.

    O barulho da madeira se estilhaçando era impressionante. Quando olhei para cima, o rastro de destruição deixado pela criatura era evidente. A parede diante de mim desmoronou, expondo o quarto dos pais de Amy.

    As cortinas se agitavam ligeiramente. A cama permanecia intocada, com o edredom bem dobrado, como se estivesse antecipando o retorno de alguém que nunca mais voltaria. No entanto, eu não podia me permitir pensar nisso no momento.

    — Você ainda não me pegou!

    Os tentáculos do Mephisto chicotearam pelo ar, estalando violentamente e destruindo tudo em seu caminho. O piso de madeira gemeu sob a força de seus ataques e percebi que, sem uma ação rápida, esse lugar outrora familiar logo se tornaria meu túmulo.

    Rolei para o lado, aproveitando o movimento para escapar da criatura e, ao mesmo tempo, alcancei a velha escrivaninha próxima. Arranquei uma das gavetas e a posicionei à minha frente, exatamente quando algo afiado a atravessou, parando a poucos centímetros do meu nariz.

    — Divertido… né?

    Não houve tempo para uma resposta, nem um momento de alívio. Outro tentáculo desceu com rapidez e letalidade. Dei um salto para a esquerda, e o som de madeira se estilhaçando foi rapidamente seguido por uma explosão de destroços.

    Como um impulso instintivo, meu corpo entrou em ação, meus músculos queimando com esforço enquanto eu avançava em direção à abertura que a criatura havia feito.

    Corri, meus pés quase escorregando no piso irregular, já coberto de escombros e fragmentos. O corredor diante de mim se estendia interminavelmente. Atrás de mim, o Mephisto rugiu, fazendo com que o lugar inteiro tremesse como se estivesse prestes a desabar.

    A busca por segurança se transformou em uma corrida frenética por espaços estreitos e manobras habilidosas. Eu estava preso em um pesadelo do qual não conseguia escapar, onde as linhas entre o ambiente terrível em que me encontrava e os jogos da minha infância começaram a se fundir.

    A entrada das escadas surgiu diante de mim.

    — Você vai mesmo?

    Como um eco distante, um espírito sussurrou – o som de um passado alegre e inocente. 

    Por um momento, a realidade se dissipou, dando lugar a uma lembrança que emergiu das profundezas da minha mente, como uma onda suave em meio à tempestade. 

    Certos fragmentos da minha infância permanecem gravados em minha memória, pequenas âncoras delicadas que, mesmo agora, nos tempos mais sombrios, me puxam de volta para a superfície. Era uma época em que a inocência era tangível, algo que podia ser sentido e segurado, não apenas uma noção elusiva e distante.

    — Você vai mesmo ou tá com medo? — Edward provocou.

    — Não tô com medo! — respondi, tentando parecer corajoso, mesmo que meu estômago estivesse embrulhado. Era apenas um escorregador, mas para mim, naquela idade, parecia a descida mais longa e amedrontante do mundo.

    Ele estava parado ao lado do escorregador de plástico, aquele velho e lascado, que ficava no canto do parque. Era uma relíquia, já desgastada pelo tempo e por todas as crianças que haviam descido por ele ao longo dos anos.

    Eu hesitei. A parte superior estava descascada, e a base tinha um arranhão profundo onde alguém provavelmente havia arrastado uma pedra. Não era o mais seguro dos brinquedos.

    — Vamos logo, antes que mude de ideia! — insistiu.

    Olhei para Edward lá embaixo, que já esperava, e depois me lancei na descida. A sensação foi de pura liberdade, o vento no rosto, o riso escapando dos meus lábios antes mesmo de perceber. 

    A lembrança se dissipou tão rapidamente quanto veio, sendo engolida pelo presente como um sonho que desaparece ao amanhecer. O corrimão terminou e eu caí com um baque no primeiro andar. A memória se evaporou como uma bolha estourada ao toque, deixando-me mais uma vez diante da realidade brutal.

    O monstro estava logo atrás, mas, por um momento, a inocência perdida de minha infância me deu forças para continuar, uma força que eu não sabia que precisava até aquele momento. Enxugando o suor de minha testa, levantei-me rapidamente e segui em direção à cozinha.

    O presente rodeava-nos como uma camada dura, um muro intransponível que nos separava deste reino maravilhoso. Tal como a minha juventude, o momento destruído pela marcha imparável do tempo, e a felicidade que outrora nos enchera foi despedaçada pela dureza do tique-taque do relógio grudado na parede.

    “Espero que tenha sido o suficiente.”

    Ao entrar na cozinha, o ar apertou ao meu redor, como se também percebesse a ameaça que se aproximava. Com um rugido gutural, o Mephisto se lançou em minha direção.

    Pulei para a esquerda, meus pés escorregando levemente no piso enquanto o monstro se arrastava pelo chão, derrubando cadeiras e espalhando cacos de vidro.

    Minhas costas se encontraram com a ilha central e senti o frio do mármore contra minha pele através da camisa encharcada de suor.

    O tempo desacelerou enquanto meus olhos examinavam a sala em busca de algo que pudesse me dar uma vantagem. As portas dos armários estavam entreabertas, revelando prateleiras cheias de utensílios que, de repente, me pareceram inadequados para a tarefa de enfrentar aquela coisa. 

    Um dos tentáculos disparou em minha direção novamente, e eu me abaixei por reflexo, sentindo o golpe passar perigosamente perto. A adrenalina zumbia em meus ouvidos enquanto me arrastava pelo chão, desviando do caminho dos ataques violentos. 

    Rapidamente agarrei a borda da prateleira e me puxei para cima, meu olhar fixo na fileira de facas presas ao suporte magnético na parede oposta.

    O Mephisto avançou, seus olhos injetados de sangue refletindo a luz como brasas ardentes. Estendi a mão e puxei a maior faca do suporte.

    Era pesada, com um cabo escurecido pelo tempo. Uma lembrança distante se infiltrou na minha mente, cortando o caos ao redor como a lâmina que segurava. Edward.

    — Você sempre teve essa mania? 

    Lembrei-me da nossa infância, quando Edward e eu passávamos horas no quintal. Eu sempre era o herói, e ele, o amigo leal, às vezes o vilão relutante, mas sempre ao meu lado. 

    A faca de brinquedo que eu carregava — feita de plástico cinza — era minha espada sagrada. 

    O brilho prateado de uma lâmina apanhada na correria pela cozinha tremeluzia ameaçadoramente nas minhas mãos, repercutindo juntamente com as últimas palavras que pairavam no ar.

    “Edward… Você não acreditaria no que estou fazendo agora.”

    Se ao menos ele pudesse ver o que essa faca se tornou em minhas mãos. Não mais um brinquedo, mas uma arma, forjada pela necessidade, não pela curiosidade. E, talvez, se Edward estivesse aqui, ele riria, um pouco nervoso, como costumava fazer, e diria: 

    — Sabe que pode machucar alguém com isso.

    Mas, dessa vez, ele não estaria totalmente errado.

    — Foi divertido brincar contigo.

    Tive uma sensação estranha. Parecia haver uma energia negativa pulsando através do metal, uma ligação sinistra entre a coisa pontiaguda e a escuridão à minha volta. A faca tinha assumido uma qualidade monstruosa ao pegá-la, transformando-se numa ferramenta transitória destinada a destruí-la.

    Quando houve o momento oportuno, eu acertei um golpe certeiro em sua testa sem hesitar.

    A pressão da faca fez com que a pele deformada cedesse, expondo camadas de carne retorcida e tecido subcutâneo.

    O movimento foi acompanhado por um som horrível e molhado, como se a faca tivesse perfurado a carne dura. A lâmina cravou-se mais fundo na testa defeituosa da criatura, a resistência da pele retorcida parecendo lutar contra o próprio ato.

    A visão era hedionda, uma mistura de líquidos anormais e sangue escorrendo através da pele distorcida, e pouco tempo, o rosto deformado da criatura contorceu-se, uma resposta inconsciente à penetração da sua pele.

    — Me desculpe, Amy.

    Um grito primitivo ecoou, um som que continha uma raiva impotente e uma vulnerabilidade arrepiante raramente testemunhada. A fonte dessa discórdia não foi uma batalha perdida, nem uma alma que escapou de seu alcance, mas uma única e fugaz memória projetada no caos turbulento que servia como sustento da sua existência.

    A memória, um farol de luz ofuscante em meio à escuridão eterna, retratava uma jovem, com o rosto iluminado por um abandono alegre enquanto perseguia uma borboleta por um campo de flores silvestres. O riso, puro e não adulterado, derramou-se de seus lábios como uma cascata, sua melodia um anátema para o próprio ser de Mephisto.

    O efeito foi instantâneo e devastador. Foi como se um frasco de água benta tivesse sido quebrado em sua carne deformada. 

    O ar crepitava com uma energia negativa enquanto Mephisto recuava, sua forma monstruosa se contorcendo em tormento. As chamas que dançavam perpetuamente em seus olhos diminuíram, tremeluzindo como brasas apagadas.

    Este vislumbre singular de felicidade, tão estranho à sua existência, abriu um buraco na própria estrutura do poder de Mephisto. Era um lembrete marcante da luz que naturalmente rejeitava, da energia positiva que havia sido trocada pela energia negativa. 

    A dor foi além do físico. Foi uma ferida existencial, uma lembrança marcante da vida que ele havia deixado de lado. Era o eco de uma risada esquecida, uma angústia agridoce por um mundo de calor e conexão que ele considerava uma fraqueza tola.

    A escuridão absoluta era realmente tudo o que existia? Haveria algo mais na existência do que o ciclo interminável de tentação e desespero? O Mephisto encontrou sua realidade abalada por uma única memória, uma única explosão de felicidade não adulterada. E no rescaldo, uma verdade terrível começou a surgir na superfície – talvez, apenas talvez, até o coração mais endurecido pudesse ser tocado pela luz.

    Seus membros amoleceram e caíram no chão em uma pilha diante de mim, inertes como uma marionete como se sua vida tivesse sido subitamente cortada. O rosto monstruoso permaneceu fixo em um olhar hediondo, como se a morte tivesse acabado com seu sofrimento sem fim.

    Na ferida recém-aberta, o líquido escuro que escorria era um lembrete da estranha dinâmica entre vida e morte que havia ocorrido momentos antes.

    — Me desculpa… — disse, virando-me em direção à porta. — Eu vou pegar aquele arromba…

    Um estrondo repentino ressoou do lado de fora, ecoando como um barulho passageiro. 

    O som rapidamente se dissipou, deixando para trás uma sensação de mistério e intriga, como se a comoção momentânea fosse apenas um vislumbre de uma batalha que se desenrolava para além da percepção imediata.

    — … bado? Espera…

    Senti um choque de memória, dando-me conta de que Benjamin estava lá, no meio do caos.

    — Ah, porra!

    O meu corpo reagiu instintivamente e sem demora à preocupação crescente. Com as mãos tremendo, corri em direção à sala e depois para a porta. Tentei com todas as minhas forças abri-la, destrancando-a desesperadamente.

    Ao sair da casa, deparei-me com um traço de destruição assinalado no asfalto, que se estendia por cerca de cinco metros. No entanto, para minha crescente angústia, Benjamin já não estava presente no local.

    — Só pode ser brincadeira. — Um nó se formou em meu estômago. — Aquele cara com certeza levou ele. O jeito é ir atrás.

    Sem hesitar, comecei a seguir o rastro de destruição, enquanto minha mente operava freneticamente para elaborar um plano. A sensação de impotência começou a se misturar com a disposição de encontrá-lo.

    “Mikael… Se alguém pode me ajudar, esse alguém é você.”

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota