Índice de Capítulo

    O mundo desmoronou à minha frente, congelado numa cena que transcendia o tempo, onde tudo era grotesco e imutável. 

    O meu corpo recusava-se a mover-se; ficara cravado no chão como se o peso daquela tragédia tivesse solidificado a terra à minha volta. 

    A minha visão turvou-se por um momento. O meu coração batia com tanta força que estava prestes a partir-se em pedaços, como um vidro sendo despedaçado. 

    Sentia um frio indescritível nos ossos, um medo que não era apenas de algo externo, mas de uma verdade que começava a desenrolar-se dentro de mim. A sensação de impotência, de ser tragado pelo vazio, ameaçava a minha total consumição.

    Edward estava ao meu lado. Os seus olhos eram como abismos desolados, um reflexo de tudo o que ele não conseguia exprimir. Eu não conseguia sentir nada além do peso esmagador da apatia, uma espécie de mecanismo de defesa automático face à loucura que se desenrolava diante de nós.

    O chão estava sujo, tingido de algo que eu sabia ser sangue. Um cheiro nauseabundo impregnava o ar, mas eu não me mexia. Não fazia nada. Era como se a minha mente quisesse fugir da realidade, tornar a situação menos real, menos urgente. Mas não era possível fugir. 

    — Isso não deveria ter acontecido — ouvi Edward dizer.

    Eu não respondi. O que poderia ser dito? Qual palavra caberia naquele momento? A única certeza que eu tinha era de que algo estava errado. Não apenas ali, mas em tudo ao nosso redor. Naquele espaço, naquela escola, naquele mundo.

    Dei um passo à frente, mas Edward me puxou pelo braço.

    — Que porra é essa, cara?! — Me virei, irritado. — Qual é o teu problema?

    — Fica na tua e não se mete, ou você só vai se dar mal! São vários contra um, só vai ser espancado!

    — Espancado? É sério isso? Cê quer que eu fique parado aqui, esperando eles terminarem?

    — Krynt, você não entende…

    — Não entendo o quê? Que eu não posso fazer nada enquanto eles machucam a Marie, caralho? Que eu tenho que ficar parado, como um covarde?!

    — Escuta… 

    — Não! — gritei, libertando meu braço à força. — Foda-se você e sua covardia!

    Edward soltou o meu braço de forma abrupta, como se o simples contato queimasse a sua pele. Os seus olhos encontraram os meus, mas não transmitiam firmeza. A hesitação era quase nítida, como se ele estivesse prestes a dizer algo importante, mas não tivesse coragem suficiente para o fazer.

    As suas sobrancelhas contraíram ligeiramente. Abriu a boca como se fosse responder, mas nada saiu. Apenas um olhar frustrado, quase suplicante, que me deixou ainda mais irritado. Era como se ele quisesse conseguir o que queria sem palavras, como se esperasse que eu desistisse por conta própria.

    O que estavam ali a fazer não era apenas violência física, mas um ritual de desumanização. Ele realmente queria que eu assistisse de braços cruzados?

    Talvez, mesmo um pouco, eu precisasse me acalmar. Talvez, apenas talvez, eu… não precisasse entrar em pânico.

    “Eu avisei pra ela! Eu disse pra Marie ficar longe dessa garota!”

    Tive que investigar cuidadosamente minhas fraquezas e depois esmagá-las. Poderia funcionar dessa maneira.

    “Não… É quase impossível.”

    A verdade era clara para mim. Não importava o quão grave fosse a situação ou o quão perdida a luta estivesse antes mesmo de começar. Havia algo maior, algo mais primitivo, ardendo dentro de mim. 

    Mesmo que tudo acabasse da pior forma, que os meus ossos se partissem, que o meu corpo falhasse, eu precisava protegê-la. Não era uma opção. Era uma obrigação que pulsava nas minhas veias como um instinto que não podia ser ignorado.

    O ódio era reconfortante. Era como se a raiva me segurasse pela garganta e dissesse: “Me use.” 

    Eu queria. Não só queria, como precisava. Só o sangue poderia apagar o que eu estava sentindo. A ideia de acabar com cada uma daquelas gargalhadas servia de foco, de clareza brutal. Não era por heroísmo. A razão era a punição.

    Queria que um deles, só um, fosse suficientemente idiota para se aproximar de mim, para abrir a boca e repetir aquelas palavras. Bastaria uma provocação, um empurrão, qualquer coisa. Desejava com todas as forças que me dessem uma desculpa para transformar a minha raiva em ação.

    Vamos lá… não perca tempo, mate-os a todos. Não é isso que você quer? É isso mesmo que você deseja.

    Um pensamento, uma voz semelhante à anterior me passou pela cabeça por um momento. Só que eu precisava deixá-la fora disso e impedir algo pior.

    Deixe-me sair. Eles não merecem esta misericórdia.

    Aquele sangue escorrendo pertencia à Marie. Os abusos físicos que ela sofria me faziam sentir ódio, como se as minhas emoções estivessem instáveis. 

    Eu fiquei tão despreocupado que ignorei que algo assim pudesse acontecer.

    — … tinha avisado…

    Agora tudo faz sentido. As pessoas mudam, de certo modo, mas raramente para melhor. 

    Era uma transformação corrosiva e gradual que os consumia por dentro até restar apenas uma casca do que um dia foram. Eu via isso nos rostos à minha volta, nos risos ácidos e nos olhares vazios daqueles que se deliciavam com a humilhação. Não era novidade, mas ainda assim não conseguia deixar de me enojar.

    O ciclo era exaustivo, como uma máquina que nunca para de funcionar, mesmo quebrada. Embora me irritasse profundamente, percebi que essa fase fazia parte do processo. As coisas aconteciam assim. 

    A crueldade era cultivada e alimentada em pequenas doses, até se tornar a única forma de existir. Para eles, já não se tratava de fazer mal a alguém — tratava-se de reafirmar a própria podridão, projetá-la sobre qualquer um que parecesse frágil.

    A vítima caída no chão havia cometido o maior erro que podia cometer num lugar como aquele: acreditar que podia ser diferente. Os seus sonhos estavam despedaçados. Ela confiara demais, abrira espaço para algo que não deveria. A sua ingenuidade foi o seu condenatório, e o resultado estava ali, marcado em cada corte, em cada gota de sangue que manchava o chão.

    Observando tudo isto, algo começou a mover-se dentro de mim. Uma parte há muito enterrada, mantida sob camadas de empatia e conformismo, finalmente dava sinais de vida. Era sutil, mas cresceu em intensidade rapidamente. Estava cansado de ser contido, de viver preso, de assistir sem fazer nada.

    Uma mistura de emoções negativas deu vida a uma força indefinível e voraz, um poder malévolo alimentado pela escuridão da alma. Esses sentimentos negativos podiam se transformar em bestialidades internas que eclipsavam a própria humanidade, transfigurando o indivíduo em algo assustador, quase irreconhecível.

    Essa foi exatamente a minha experiência. Minha própria essência estava sendo contaminada por uma obscuridade interior, transformando-me em algo que eu teria temido em meu estado anterior de sanidade.

    À medida que minha essência se desvanecia e uma deformação surgia, ficava evidente que até mesmo um coração puro poderia abrigar um lado sinistro que nunca havia sido liberado de seu ambiente inerente.

    — Tudo isso nos trouxe até aqui e eu preciso dar um fim nisso. Deixe que eu assuma este dever.

    A pupila do meu olho esquerdo estava no centro de um padrão poligonal invulgar que se assemelhava a uma estrela formada por cinco linhas retas que irradiavam do centro.

    A sua cor inicial, um castanho-escuro, era agora bordejada por um toque de vermelho-vinho, a condizer com a cor do meu braço direito.

    A estranha combinação de cores e formas captava um aspecto totalmente estranho.

    O mundo se reduziu a uma visão em túnel de raiva fervente. Meu alvo era uma massa fervilhante de fracos. 

    Cada fibra do meu ser vibrava com uma sede de sangue – um motor alimentado pelo fedor da injustiça e pela promessa de vingança. Desviar de alunos, professores e qualquer pessoa em meu caminho tornou-se um borrão. O único pensamento que importava, um mantra que pulsava a cada respiração irregular – eles pagariam. Todos eles pagariam. 

    O mais próximo estava distante deles. Apertei seus lábios trêmulos com a mão, silenciando qualquer gemido antes que ele pudesse se formar. A outra encontrou seu ombro.

    O silêncio foi um aliado de confiança no meio deste ato medonho, e a vítima permaneceu contida, incapaz de transmitir a sua agonia. Suas lutas eram patéticas, uma mosca presa no âmbar.

    Desloquei seu ombro, separando os ossos e as articulações escapulares de tal forma que qualquer movimento seria agonizante. 

    Eu lancei seu braço na direção deles, um estandarte sangrento proclamando minha chegada. Os atacantes ao redor de Marie congelaram, seus olhos se fixaram no quadro diante deles. Era uma obra-prima brutal, um testemunho das consequências de sua transgressão. 

    Eles eram lobos, cercando suas presas. Agora, eram coelhos pegos pelos faróis de um monstro. 

    Enquanto isso, Marie, deitada no chão, coberta de hematomas, arranhões e feridas, conseguiu manter um olho aberto. Ela teve a coragem de considerar o pior dos mortos.

    — Isso não parece mais tão errado, parece?

    Contanto que ninguém me pare…

    — A história está só se repetindo.

    … eu também não vou parar. 

    Assim o fiz com o aluno que fiz minha primeira vítima: puxei meu pulso à esquerda, eventualmente fazendo a cabeça do garoto girar. Desta forma, seu corpo inanimado cedeu ao piso.

    — Corram! — gritou outro aluno.

    Esta atitude violenta permaneceria inabalável caso alguém não fizesse nada. 

    Muitos intencionavam seguir em direção à saída, no entanto, falharam.

    Eles falharam no momento em que surgi diante deles.

     — Ainda não… — Os encarava com um sorriso abominável. — Ninguém vai fugir até eu me satisfazer.

    A escuridão se agarrou a mim como uma mortalha, apagando as fracas chamas da coragem onde quer que eu fosse. Alguns, tolos adornados com uma bravura descabida, ousaram se opor a mim. 

    Punhos insignificantes choveram, chutes bateram ineficazmente, agulhas brilharam pateticamente. Todos encontraram o mesmo esquecimento arrepiante. Isso não era uma luta.

    Massacre. A palavra se esgueirou por minha mente, uma cobra venenosa. Minha mão direita, um instrumento de brutalidade requintada, encontrou seu ponto – uma incisão precisa na cavidade torácica de uma alma infeliz.

    Quando retirei meu braço, trouxe o coração, uma joia carmesim, pulsando em minha mão. Eu o levantei e espremi. O sangue escorreu até minha boca em uma trilha de rubor.

    E então, o horror. O gosto, uma mistura grotesca de sabor metálico e vísceras, detonou em minha boca. Vomitei, e a expulsão foi um espelho grotesco da carnificina que causei. 

    Recuei, com um lampejo de algo parecido com surpresa em meus olhos. Mas o ato foi passageiro. A fome, uma besta devoradora, voltou a se agitar.

    Meu olhar, um fragmento enferrujado de desprezo, fixou-se em uma figura rebelde no canto. Uma garota, toda trêmula e desafiadora, segurava um telefone apontado para mim, filmando a carnificina que eu orquestrei.

    — O que é isso?

    Houve uma falha em sua respiração.

    — U-uma coisa dessa… — Ela engasgou em suas próprias palavras, a frase foi engolida e cuspida de volta com um verniz de bravata forçada.

    Um sorriso lento, gosto de sangue em minha língua. 

    — Isso é algo bonito, você não acha? Uma pequena lição sobre a fragilidade da vida.

    O celular balançou em seu punho. Ainda assim, ela perseverou.

    — Todo mundo vai ver isso… Você é um monstro. Seu lugar é no inferno.

    A repugnância, genuína e consumidora, contorceu minhas feições. Mas, por baixo dela, uma faísca acendeu. O riso, uma erupção gutural, escapou.

    — Hahahaha! Inferno, você diz? É um lugar familiar. Nessa terra, nós o criamos.

    O medo nos olhos dela era uma obra em si, um reflexo tão puro da fragilidade humana que eu quis prendê-lo, absorvê-lo, transformar em algo eterno. Cada lágrima, cada tremor no corpo, era música.

    O celular que ela segurava tremeu, e a imagem no visor tornou-se uma cacofonia de borrões sem sentido. Era como se até a tecnologia se recusasse a gravar o que acontecia. Talvez, no fundo, até as máquinas saibam quando são testemunhas de algo monstruoso demais para ser registrado.

    Dei um passo em sua direção. O tempo perdeu significado. Ela se virou minimamamente para esquerda, hesitante, talvez acreditando por um momento que poderia correr. O desespero deixou suas pernas rígidas, mas a gravidade de minha presença a manteve ancorada no lugar.

    — O que foi? Precisa que eu me aproxime mais? 

    Eu estava à frente dela antes que o pensamento de escapar pudesse se concretizar. Meus dedos envolveram o seu pescoço magro. Sua pele era quente, pulsante, e cedia sob o aperto como algo frágil, quase feito para ser destruído. A traqueia resistiu, mas não por muito tempo. Era como esmagar algo que sabia que deveria ser precioso, mas que, naquele momento, era apenas um objeto sem valor.

    Ela tentou lutar. As unhas arranharam minha pele, deixando trilhas tênues e insignificantes. Seus braços, tão cheios de promessas de fuga, enfraqueceram, balançando como se cada movimento drenasse o pouco que lhe restava de vida. Um som escapou da garganta dela, não era um grito, mas um apelo quebrado que o vazio consumiu.

    Cada segundo esticado como uma eternidade. O ar, essa dádiva banal que todos tomam como garantida, fugiu dela. Seus pulmões inflaram inutilmente, traídos pela impossibilidade. O rosto perdeu a cor, os olhos tornaram-se janelas opacas para um abismo inevitável.

    Ela soltou um suspiro fraco. A luta cessou. Soltei meu aperto e o corpo dela desabou no chão, sem vida, um peso morto sem propósito. A cabeça tombou para o lado, os olhos ainda abertos, mas sem qualquer brilho. Toquei meu pescoço, onde as marcas das unhas dela ainda ardiam levemente.

    Um sorriso cruel se estendeu em meu rosto. Ela era apenas mais uma obra-prima em minha galeria de condenados. 

    Não havia remorso, nem hesitação. Apenas a constatação fria de um fato.

    Meu estômago revirou ao ver os vermes se contorcendo. 

    A maravilhosa sensação de poder vinha do fato de desafiar a vida e vencer. Não havia espaço para misericórdia nesse jogo, apenas para a matança justa dos fracos. Eles não sabiam que estavam olhando para o seu superior.

    O sangue manchava o chão de um carmesim brilhante, um monumento à minha técnica. Esse espetáculo escarlate exigia concentração total, pois continuava a se mover em um ritmo mais rápido. Meus reflexos cantavam uma melodia letal, e a devastação atingiu um crescendo impressionante.

    Eram os caídos que eu desprezava – restos jogados ao longo do campo de batalha. Tanta carne desperdiçada. Um simples movimento do meu pulso e um jato de vermelho chovia.

    Ao final, o êxtase fluía em minhas veias, um coquetel embriagador de violência e vitória. Cada tensão dos meus músculos entoava um hino de triunfo, mas o silêncio sobrenatural que se abateu sobre a carnificina era perturbador.

    Então, um movimento. Uma barata solitária corria, o medo transformando suas feições em uma caricatura grotesca.  

    — Hahaha! Parece que esqueci de você.

    Sarah era a única sobrevivente. Ela paralisou, tremendo.

    — Oh, m-merda! — Ela se afastava. — Me desculpa, me desculpa! 

    — Não se preocupe, é um erro fácil de cometer. — Dei um passo predatório para mais perto. — Considere isso como uma rodada de bônus.

    — Não! Por favor! — gritou ela entre lágrimas. — Eu farei qualquer coisa! Tudo o que você quiser!

    Seus olhos se arregalaram, procurando por fuga, por salvação. Suas súplicas eram como uma mosca zumbindo contra um furacão. Divertido, de uma forma mórbida. 

    — Essa é a piada, não é? Hilariante, na verdade, porque aqui está você, implorando por misericórdia, quando momentos atrás estava tão ansiosa para bancar a poderosa.

    Os olhos de Sarah foram abertos até a morte. Ela estava em seu leito de morte neste dia, com a expressão aterrorizada em seu rosto, o que deixou seus músculos inativos e incapazes de obedecer às ordens da mesma.

    — P-por favor… espere! V-vamos conversar! 

    Nada importa mais, o meu desejo era apenas matar.

    — Você entende, eu quero sua vida, não suas desculpas.

    Minha fome ansiava pela finalidade da morte, não pelas justificativas frágeis de uma rata encurralada.

    — Krynt…? — Edward chamou-me

    Me virando para ele, notei uma expressão confusa, enquanto Marie, no fundo, sentia um grande horror à atrocidade que ele havia cometido.

    — Ah, ele? — respondi, sorrindo. — Ele ainda é o seu amigo? Idiotice da sua parte.

    Enquanto isso, ouvi uma voz que me atraiu.

    — Seu puto… Desgraçado! — gritou Sarah, outra vez. — Como você ainda pode ser um ser humano?

    O meu olhar, que transmitia ódio, voltou para a garota desamparada

    — Cala a boca. Eu não…

    Tum-tum

    Meu coração me traiu. Uma batida irregular, uma falha no sistema, jogou toda a orquestra no caos. De jeito nenhum eu iria cair agora, não depois de tudo o que eu havia feito.

    A pressão aumentou, apertando meu peito. O pânico se apoderou das bordas da minha visão, mas eu o reprimi. Isso não deveria ter acontecido. Não comigo.

    “Não…”

    O mundo ficou escuro. Não a escuridão de uma sombra passageira, mas um preto espesso e sufocante que me engoliu inteiro. Uma maldição? Talvez. Mais como um motim. 

    Este pesadelo manifestou-se numa clara violação dos princípios da fisiologia, num ato de desobediência por parte do órgão que deveria ser o controlador total do ritmo do coração, levando-me a ceder, desacordado, sobre o piso.

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