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    Louisville, Kentucky – 24 de Outubro de 2010

    Sombras de pavor e agonia pairam sobre o que se passa no passado, como velhas memórias emergidas das profundezas do tempo. Acumulando memórias de momentos longínquos, cada ideia fora tingida com uma agonia aguda e duradoura, como uma ferida não cicatrizada. 

    Segredos ocultos espreitam na quietude da lembrança, lançando uma dúvida sobre o curso do que acontecera.

    Louisville, até então sujeita a uma convivência sossegada à luz do dia, converteu-se à noite apenas num palco lúgubre, a partir do momento em que os animais de estimação foram submetidos a uma medonha metamorfose. 

    Esta metamorfose, entrelaçada com obscuridades que escondiam segredos vedados, foi desvendada como a pena de uma maldição lançada pelas atitudes pecaminosas dos donos, que, no fundo das suas casas, castigavam maldosamente os seus devotos cães.

    Em vez de iluminar, o lume da meia-noite transformava-se num observador mudo do preço a pagar pelos sangues-frios. As casas encheram-se de pecados nebulosos que foram expostos pela escuridão, e os cães, abusados às escondidas, acabaram por se tornar contentores dessa desgraça.

    Vínculos parentais que sustentavam um coração inocente haviam sido decapitados pelos dentes ferozes e garras pontiagudas de um único cão vira-lata adotado. Todas as feridas abertas nos corpos dos donos representavam um ato cruel de retaliação, uma reação violenta ao sofrimento causado pelas mãos humanas.

    A memória de uma família devastada, devorada pelo feroz vira-lata que provocara a tragédia, jazia entre as vítimas estraçalhadas. Ainda assim, uma presença mais sombria permanecia na casa, onde os soluços silenciosos de uma criança indefesa, a única sobrevivente do massacre, ressoavam nas paredes. O seu rosto, tão inocente um momento antes, encontrava-se assinalado pela crueldade a que assistira, física e psicologicamente.

    A violência dos pais contra o animal transformara-se num espetáculo horrível que ecoava pela casa, uma sinfonia de sadismo. Involuntariamente, a criança tornou-se cúmplice de um pesadelo intolerável, como testemunha dos horrores praticados por aqueles que a protegiam.

    O sofrimento do cachorro era uma expressão dos males que impregnavam a casa. O pelame outrora macio deste ser foi marcado por chicotadas e pontapés. As as suas correntes enferrujadas mantinham-no preso num ciclo interminável de agonia como punição para os estragos que causava. Todo lamento ressoava da própria residência, um testemunho terrível da depravação que reinava entre suas quatro paredes.

    A criança era submetida a uma forma mais sutil de tortura, visto que estava indefesa e sem apoio. A violência interpessoal foi precedida de um descuido dos pais. As palavras destinadas a confortar transformaram-se em facas que rasgaram-lhe o espírito, e os açoites destinados a ser um toque suave tornaram-se instrumentos de castigo.

    Onde antes havia a esperança de segurança, restavam apenas horrores. Uma alucinação terrível, uma miragem que permaneceu na sua mente como um pesadelo interminável, uma sombra negra que paira sobre cada pensamento e memória, profanou o sonho desta alma inocente.

    Escondida no armário de seu quarto, ela ouvia os rugidos da besta vingativa, que ecoavam como uma sinfonia macabra em seus pensamentos, uma dura lembrança do preço a ser pago.

    A Unidade Expedicionária de Caça foi acionada num frenesim insidioso assim que as notícias da atrocidade se espalharam como se fossem uma epidemia. O apelo da carnificina convocou os impávidos Agentes de Combates e Analistas de Inteligência, que se lançaram numa corrida desenfreada contra o tic-tac inexorável do relógio para fazer frente à ameaça indomável que assolava a região.

    Os Mephistos eram criaturas ferozes e vorazes que se multiplicavam a cada instante, banqueteando-se com os nutrientes encontrados nos músculos e órgãos das suas vítimas. Não só cada porção de carne humana desmembrada era um banquete monstruoso, como também servia de combustível para o hediondo ciclo de crescimento para estas abominações. 

    A atmosfera saturou-se com o odor da imundície à medida que os Mephistos, sedentos de mais, avançavam infatigavelmente. 

    Cace o semelhante…

    Por momentos, a perseguição impiedosa à última vítima dentro daquela casa foi interrompida pela voz que se fez ouvir às orelhas do Mephisto. 

    A porta, uma vez entreaberta, rangeu ao abrir-se, traduzindo a réstia de esperança, cuja madeira ainda ostentava as feridas como um monumento às tentativas infrutíferas de se defender da fera que invadia o aposento.

    Um brilho prateado preencheu a sala à medida que o luar se insinuava, projetando uma dança de sombras distorcidas. O Mephisto, momentaneamente aturdido pela entrada súbita, estava de pé à distância, cujo rosto se escondia na escuridão, com os olhos reluzentes ao breu e pronto a despedaçar a sua próxima vítima.

    Atrevendo-se a enfrentá-lo, uma mulher de cabelos pretos estava na soleira da porta, elegantemente vestida com um terno e um sobretudo que esvoaçava como um manto de luto. No peito da camisa, uma insígnia destacava o seu papel como Analista de Inteligência, responsável pela coleta de dados sobre os Mephistos.

    A insígnia brilhava como um farol de esperança no meio das sombras grotescas, simbolizando a resistência contra a maré de escuridão que ameaçava engolir tudo.

    Os cadáveres estendiam-se no chão, os seus corpos devorados ferozmente como caça num banquete horrível, até à sua chegada. O seu coração estava abrasado pela destruição que viu, pronto a entrar em erupção como um vulcão de raiva reprimida. 

    O choque do massacre alimentou essa raiva, que depois se transformou num desejo insaciável de vingança. 

    Os seus passos cortavam o vazio entre a vida e a morte. 

    Cace o semelhante…

    Sua voz soava como um veredito enfurecido, prevendo um desfecho terrível. Em seguida, uma sombra apoderou-se do corpo do Mephisto, motivado por uma vontade insaciável e vingativa que emergiu na escuridão que se aproximava.

    Distendidos pelo tremendo poder da sombra, os órgãos internos do animal pareciam pulsar com uma energia negativa. A criatura, gemendo sob a pressão que parecia estar a esmagá-la por dentro, contorcia-se em angústia, incapaz de resistir à terrível influência da presença negra.

    A criatura virou-se sobre si própria, os seus membros contorciam-se em agonia, tornando-se, enfim, um recipiente do seu próprio julgamento. Depois, numa exibição macabra, explodiu por dentro, cuspindo pedaços de carne escarlate e intestinos numa explosão que coloriu as paredes e o chão da sala de vermelho.

    O ambiente fedia a assassínio e, após a explosão, o silêncio caiu sobre o local como uma espessa camada de desespero. Neste mesmo silêncio inquietante, uma figura pequena e insegura emergiu do seu esconderijo, relutante perante o vazio em que se encontrava.

    Rodeado pelas sombras que se escondiam atrás de uma parede a um canto, era um vulto frágil. A menina observava-a com um misto de interesse e horror, os seus olhos transpareciam angústia e terror. Absorta na cena grotesca que se desenrolava, os seus olhos castanhos dançavam com emoções erráticas. 

    Apesar do seu medo e da sua incerteza, fora ela que tomara a decisão de abandonar a zona de relativa segurança que descobrira, a sua respiração era ansiosa e os seus olhos perscrutavam a cena com um misto de medo e preocupação. 

    O seu rosto estava sombreado de forma irregular pela fraca luz da lua que cintilava e fluía através da janela. Ela absorveu cuidadosamente todos os pormenores do que restava da luta entre o Mephisto e a mulher.

    A agente concentrou toda a sua atenção nela, consciente da frágil presença que tinha à sua frente.

    Quando os olhos das duas se cruzaram, desenvolveu-se um entendimento intenso entre ambas, transmitindo sentimentos que estavam para além da expressão. Com uma simpatia silenciosa, a agente gentilmente estendeu-lhe a mão, percebendo a vulnerabilidade sob a pele manchada de sangue.

    No meio da miséria que as rodeava, foi um ato de compaixão e união.

    — Está tudo bem. — Com uma voz calma, no seu intuito de confortá-la, perguntou: — Qual é o seu nome?

    — … Mandy. — respondeu um tanto hesitante

    — Muito bem, Mandy. Pode me chamar de Raven. 

    Foi este o seu presente. 

    2 de Novembro

    Havia um poço sem fundo, um abismo inconsciente, no centro de toda essa destruição, pronto para engolir qualquer último fragmento de esperança. Uma escuridão que parecia ir mais longe do que a visão humana, que era profunda, ameaçadora e voraz.

    No entanto, a semente da resiliência persistia apesar deste abismo que parecia consumir o último vestígio de esperança. Algo invisível e indestrutível que aguardava a oportunidade ideal para emergir das cinzas e florescer na desolação circundante.

    1 mês após o infeliz acontecimento que as juntou, quando Raven sugeriu que Mandy fosse transferida para a agência, ela assumiu o papel de mentora da jovem. A partir deste incidente insólito, a trajetória das suas vidas tomou rumos imprevistos.

    Raven tornou-se uma pessoa que nunca teria imaginado. Em vez de a enclausurar, as correntes do passado permitiram uma incrível mudança. A natureza indiferente e insensível que antes caracterizava o seu carácter deu lugar a uma natureza simpática e compreensiva que vinha à tona.

    O rejuvenescimento que acontecia quando alguém chegava e partia para a vida era fundamental para isso. Mesmo que nem toda e qualquer pessoa estivesse preparada para o aceitar, era uma regra natural da realidade. 

    Lutar contra esta transição inevitável era inútil e frequentemente desagradável. 

    Habituada a padrões elevados e a um compromisso resoluto com os seus valores, Mandy nunca se afastou das suas convicções. Recusou-se a ceder ao desespero que envolvia as pessoas que tinham desistido quando foi pressionada a ficar ao lado de outros que estavam abatidos.

    No entanto, apesar da sua grande tenacidade, esta resistência revelou-se ineficaz contra a maré imparável da diferença. Tentou manter-se firme, mas as circunstâncias puxaram-na para baixo como um rio feroz. Apesar de a sua perseverança ser admirável, não foi suficiente para travar a sequência de consequências que se opunham à sua determinação.

    Durante um dos seus treinos regulares, Mandy sucumbiu à falta de esperança e rompeu a promessa que tinha feito a si própria: nunca desistir. As âncoras de determinação que a tinham sustentado durante tanto tempo começaram a enfraquecer sob o peso de ser quem era: uma fraca.

    Raven ficou profundamente magoada e verdadeiramente triste com a falta de vontade de Mandy ao ver esta traição de confiança. Vê-la entregar-se ao desespero encheu a sua mentora de uma sensação de pavor.

    Comprometeu-se a apoiar a Mandy neste momento complicado, uma vez que percebia que se tratava de um ponto de viragem crítico no seu percurso. 

    — Hey, Mandy?

    Raven aproximou-se com cautela da menina encolhida no chão, seus cabelos castanhos-escuros escondendo o rosto entre os joelhos dobrados. 

    Os braços de Mandy envolviam seu corpo frágil como um escudo protetor contra o mundo. 

    A tristeza que pairava sobre ela, um peso invisível que a mantinha curvada sob seu próprio fardo emocional.

    — Tia Raven, eu… não quero mais. — murmurou com voz trêmula, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. 

    Aquilo era doloroso de se ouvir, como um lamento silencioso de alguém que havia perdido toda a esperança.

    — Ah… Por quê? Você parecia tão disposta.

    Mandy fungou e enxugou uma lágrima solitária que escorria por sua bochecha.

    — Não adianta, meu corpo dói muito… E se eu tentar bater em alguma coisa, minha mão vai doer. Eu… me sinto muito fraca.

    Cada respiração era um suspiro pesado de tristeza e desespero. Ela abraçava os joelhos contra o peito, como se isso pudesse proporcionar algum conforto em meio à sua dor.

    — Eu tento resistir, mas não consigo. Eu nunca consegui. Não sou igual a você e nem a Emilly. Meus pais foram mortos por aquela coisa e eu não fiz nada. Não tenho nem forças pra isso. — Ela fez uma pausa temporária antes de continuar: — Tia Raven… eu sou apenas um peso morto, não sou?

    Ela soluçou baixinho e suas palavras saíram trêmulas.

    — Eu não queria ser assim, me odeio tanto por isso…

    Os seus pensamentos estavam inundados de imagens agonizantes dos seus pais, cujas vidas tinham sido impiedosamente roubadas por aquela coisa aterradora que agora lhe vinha frequentemente aos pesadelos. 

    Como o vento a apagar uma vela e a iniciar um incêndio florestal, o peso da sua enorme perda quebrou o seu pequeno espírito resoluto e agravou um grande fracasso. 

    Ela estava à beira de um abismo emocional e sentia-se perdida, incapaz de reunir coragem para continuar. 

    Estava passando por um tormento que era pior do que qualquer dor que alguma vez tivesse passado fisicamente.

    — Mandy, olhe para mim.

    Ela atendeu e levantou seu rosto elegantemente deprimida. 

    Ao notar uma lágrima correndo sobre sua pele, com seu polegar, Raven a enxugou.

    — Tudo o que você diz está enraizado na autossabotagem. — continuou. — Eu queria que você pudesse enxergar a si mesma através dos meus olhos, para perceber os traços notáveis de força que você carrega.

    Mandy absorvia cada palavra como se fosse uma poção mágica que a libertaria da morbidez que a perseguia, com os olhos úmidos de gratidão. 

    — Por isso, saiba que, quanto mais você se permite ser quem é, mais o mundo vai se encantar por ti mesma. Eles, com certeza, vão admirar e se inspirar em você por conta disso.

    Aquelas palavras eram o tipo de conforto que fazia seu coração sorrir e a mente encontrar paz, uma experiência que tocava profundamente a alma e criava uma memória duradoura de harmonia e serenidade. 

    — Além disso, eu quero que você entenda que você não é um peso morto, de forma alguma. Você é incrivelmente forte, e força não necessariamente significa poder.

    Nas palavras sinceras da mulher ao seu lado, Raven abria caminho para que Mandy pudesse descobrir uma virtude inesperada.

    — Apenas o fato de você estar aqui, enfrentando esses desafios, demonstra sua própria força. Mas enquanto essa aflição persistir, ela te roubará tudo, então se prive de temer.

    Era como se, naquele momento, o universo inteiro conspirasse para oferecer o presente da tranquilidade, um presente que seria guardado com carinho no coração por muitos anos vindouros.

    — Se desprenda dos males que te aprisionam. Muito mais que violência e crueldade, aquilo que é verdadeiro para você será tão real. Seja sua própria força.

    As lágrimas escorriam pelo rosto de Mandy, mas agora eram lágrimas de alívio e esperança. 

    Ela começou a acreditar nas palavras de Raven, sentindo que, apesar de todas as dificuldades que havia enfrentado, havia um caminho luminoso à sua frente.

    Mandy atirou-se repentinamente aos braços de Raven e abraçou-o calorosamente, como se estivesse agarrada à esperança. 

    Descobriram neste ato um elo que prometia trazer-lhes sucesso e afastar a longa escuridão da miséria que os cobria. 

    Os seus espíritos estavam ligados de uma forma especial pelos conselhos perspicazes de Raven e pela amizade honesta que partilhavam. 

    No entanto, precisavam de algum tempo para contemplar antes de poderem avançar para um futuro melhor. 

    Mandy tinha de enfrentar a sua dor, aproximar-se de si própria e tirar lições dela. Ela estava decidida a reconhecer as suas emoções sem tentar resolvê-las de imediato.

    — Obrigada, tia Raven. Muito obrigada… — sussurrou a menina, sua voz carregada de gratidão sincera.

    Durante muito tempo, Raven havia negado suas emoções, considerando-as inúteis e superficiais. Ela costumava rejeitar qualquer sinal de sensibilidade, convencida de que estava se protegendo. No entanto, começava a perceber que essa negação talvez a tivesse enganado ao longo de sua vida. 

    Ela estava pronta para aceitar a noção de que sua própria alma poderia ditar as regras de sua jornada, e Raven estava lá para apoiá-la nessa jornada de autodescoberta e aceitação.

    Nunca antes ela havia estado tão empenhada em descobrir a verdade.

    — Você é uma garotinha forte e gentil.

    Em meio à escuridão que ameaçava envolvê-la, surgiu um lampejo de clareza.

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