Índice de Capítulo

    Tudo mudou.

    Não como uma transição, mas como um colapso da realidade — um rompimento violento do tecido que separava a ilusão da verdade. O ar pesava como chumbo, impregnado de uma energia que não pertencia a nenhum dos dois mundos.

    E então, a fumaça surgiu.

    Negra como breu, densa como os vapores, ela escorria das correntes que prendiam Mikael, contorcendo-se como serpentes envenenadas.

    As correntes das Cicatrizes, tecidas com a essência corrosiva de mil almas condenadas, deveriam ser absolutas. O Filtro de Percepção imposto pelo Mephisto era uma prisão perfeita—um véu que forçava o prisioneiro a confrontar seus demônios no ritmo do carrasco, não no seu.

    Ainda assim, Mikael respirava aquela escuridão.

    “Isso é impossível! O Filtro deveria confiná-lo enquanto a técnica estivesse ativa. Como ele…?”

    Klaus esforçou-se para aumentar seu poder na tentativa de conter a onda de energia negativa que se desenrolava, consciente do perigo iminente que Mikael representava. Contudo, suas tentativas se mostraram vãs.

    A energia negativa dele atingiu tal intensidade que as correntes começaram a esquentar, prestes a derreter e se romper sob a pressão energética. Seu poder era tão formidável que rivalizava com o próprio Mephisto.

    Qualquer vestígio de humanidade tinha se esvaído, dando lugar à presença de um predador à espreita, ávido pela caça.

    Os Olhos de Sangue liberaram energia negativa em níveis nunca vistos antes, sobrecarregando a capacidade da ilusão. Esse poder formidável obliterou a técnica, fazendo com que ela desaparecesse como fumaça ao vento.

    A vulnerabilidade do Filtro de Percepção foi exposta quando Klaus teve que se concentrar continuamente para empregar a técnica de Cicatrizes. Qualquer lapso de concentração levou ao colapso instantâneo da técnica.

    Com as ilusões vencidas, a realidade impiedosamente voltou ao reino físico, dissipando o rosto falso que havia sido lançado sobre Mikael. A verdade reveladora atingiu o momento em que ele enfrentou Mephisto, como se um véu que escondia a realidade fosse removido abruptamente.

    Ele empurrou o braço direito em sua direção. Klaus girou para a esquerda, fazendo com que a mão de Mikael errasse e passasse pelo altar à sua frente.

    O altar, a peça central da igreja, foi intrincadamente esculpido em madeira maciça de carvalho, adornado com elaborados símbolos de santidade. No entanto, o impacto forte fez com que a madeira robusta se estilhaçasse.

    A miniatura de Jesus Cristo balançou perigosamente e acabou se soltando de sua base. Mikael, com uma agilidade notável, interceptou o símbolo sagrado, capturando-o em pleno ar com sua mão livre, impedindo que quebrasse no chão.

    Ele recolocou a miniatura em sua posição original, assegurando sua estabilidade.

    “Isso ficará ativo por trinta segundos, então preciso neutralizá-lo antes que o tempo se esgote.”, Mikael refletiu, mas logo se corrigiu: “Na verdade, é mais do que tempo suficiente.”

    Klaus recuou apressadamente, agarrando o braço de Benjamin e correndo pelo corredor até a saída.

    O coração da criança palpitava descontroladamente, como se tentasse escapar de seu peito em uma luta desesperada pela sobrevivência.

    Sua pequena estatura tremia, e seus olhos arregalados refletiam o terror absoluto que o dominava naquele momento.

    Cada passo em direção à saída era como pisar em um campo minado repleto de desespero e incerteza. A respiração do menino estava pesada, quase sufocada pelo medo que o encobria como uma sombra sinistra.

    “Eu não quero morrer, não quero morrer…”

    O pavor da morte iminente se insinuou em sua mente jovem, causando arrepios elétricos em sua espinha. Lágrimas se acumularam nos cantos de seus olhos, prontas para transbordar a qualquer segundo.

    Um estalo agudo perfurou o silêncio, e Benjamin percebeu o braço que o segurava se soltar do ombro de Klaus em um movimento frenético, seguido por uma explosão de calor que respingou em seu rosto.

    Era sangue, uma chuva grotesca que pulsava no ritmo de seu coração batendo forte.

    — Que…?

    O membro decepado de Klaus, deixado de lado, convulsionou em espasmos horríveis. O cheiro de sangue permeava o ar, sobrecarregando seus sentidos e aumentando seu terror.

    Benjamin, atordoado, não conseguiu desviar o olhar do braço desmembrado, enquanto o sangue jorrava ritmicamente, acumulando-se em manchas carmesim no chão.

    — Merda, merda, merda, merda! — Klaus praguejava, a dor ecoando em cada sílaba enquanto seu rosto contorcia-se em uma careta de agonia. — Maldito!

    Quando Klaus se virou para encarar Mikael, ele estava na mesma posição que normalmente assumia quando utilizava o Bang, uma técnica que aterrorizava todos que cruzavam seu caminho. 

    Benjamin notou que os contornos daquela área que ele se focou, o ombro, começaram a oscilar, como se a presença malévola da técnica estivesse esticando a própria realidade.

    Com os olhos ardendo de raiva, Klaus cuspiu palavras de ódio sobre Mikael, preparando-se para liberar seu poder devastador sobre o oponente.

    — Você é apenas uma sombra insignificante do seu irmão, um verme e assassino se contorcendo na sujeira!

    Canalizando toda a sua energia, ele convocou outra prisão mental para Mikael. Seus dedos tremiam quando os padrões se materializaram, tecendo uma rede de armadilhas.

    O corredor estava carregado com uma presença sinistra e pesada enquanto Klaus liberava sua energia malévola. Ondulações distorcidas cercaram o alvo, ameaçando prendê-lo em um labirinto de tormento psíquico. No entanto, os Olhos de Sangue, servindo como uma barreira protetora, começaram a reagir de maneiras imprevistas.

    Em vez de ceder à manipulação, as polaridades energéticas começaram a se fundir em um padrão cíclico. A mente de Mikael se transformou em um campo de batalha neurológico, com forças conflitantes disputando o controle. A energia negativa, representando a influência de Klaus, entrou em conflito com a energia positiva da resiliência mental de Mikael. 

    No auge desse conflito, quando as polaridades se aproximavam da capitulação à influência externa, um acontecimento incomum se desenrolou. Os Olhos de Sangue, agindo como um protetor neural dinâmico, forjaram o equilíbrio entre as forças. O subconsciente de Mikael criou uma zona de estabilidade, frustrando a tentativa de dominação.

    — Como iss…

    Em um instante, o aperto de ferro de Mikael agarrou seu rosto, imprimindo uma brutalidade de contato que enviou ondas de choque pelo seu corpo em meio ao impacto contra o piso.

    O baque ecoou em seus ossos, com um som nauseante de costelas fraturadas e órgãos traumatizados. O ar saiu de seu peito pela boca, substituído por uma pressão ardente quando a bota de Mikael o prendeu ao chão. Tornou-se uma paródia grotesca de um pretzel humano, com as costas arqueadas e os membros abertos em ângulos não naturais.  

    Cada respiração irregular raspava sua garganta já escorregadia de sangue, demonstrando o ar cada vez menor preso em seus pulmões. Ele era uma mosca presa ao chão. Suas lutas eram patéticas e, em última análise, fúteis. 

    De fato, o Mephisto não estava apenas derrotado. Estava totalmente quebrado.

    — Você tem quinze segundos. Fale sobre ele.

    Mephisto soltou uma risada rouca que mais parecia um espasmo de dor, mas seus olhos, escurecidos pelo sangue acumulado, brilharam com algo que não deveria estar ali: escárnio.

    — Ele, é? Que maneira vaga de se referir ao seu querido irmão. — As palavras vieram lentamente, encharcadas de desprezo. Ele cuspiu sangue para o lado, como se precisasse limpar a boca antes de prosseguir. — Vocês dois… tão iguais. A mesma fúria cega, o mesmo orgulho patético. Será que isso é coisa de família?

    A bota de Mikael pressionou com mais força, dobrando ossos já quebrados, arrancando um som abafado do fundo da garganta de Klaus. Mas, mesmo com o corpo torcido como um boneco de pano prestes a se desfazer, ele manteve o sorriso, mais amplo agora.

    — Dez segundos. — Ele se abaixou um pouco, trazendo seus olhos para o mesmo nível que os dele. — A última chance de provar que não é só um desperdício de espaço.

    — Você quer mesmo saber sobre ele? — respondeu com um arquejo que mal disfarçava sua diversão. — Talvez eu devesse começar descrevendo você. Afinal, não é tão difícil confundi-los. O mesmo olhar vazio, o mesmo desespero por controle. — Ele tossiu sangue, mas a voz não perdeu a força. — É quase cômico, sabe? Você tentando se convencer de que é diferente.

    A respiração de Mikael acelerou. O Mephisto notou e continuou, o sorriso agora distorcido pelo sangue que escorria pelo queixo.

    — Vocês dois… a mesma moeda. Um lado mais sujo, talvez, mas nada que faça muita diferença. Ou será que dói admitir que, no fundo, ele é só um reflexo de você?

    — Cinco segundos.

    Surgiu um brilho num tom vermelho-escuro na ponta dos seus dedos.

    — Vai, então. Mostre o quanto vocês são iguais. Você acha que pode me quebrar? Já vi esse show antes, Olhos de Sangue. E não importa o que aconteça, eu sempre vou vol…

    O primeiro disparo irrompeu, rasgando o espaço entre os dois e acertando o peito de Klaus. O impacto não foi apenas uma perfuração, mas uma ruptura. A carne se abriu como uma fruta esmagada, e o sangue jorrou em uma onda quente que tingiu o chão e as paredes. Antes que o corpo pudesse tombar, outro tiro o atravessou.

    A energia comprimida rasgava o ar com um som agudo e feroz. Todas as explosões redesenhavam o corpo de Klaus, ao despedaçarem músculos, quebrarem ossos e pulverizarem o que restava de resistência. 

    Seu outro braço se desfez em fragmentos de carne e osso, que foram lançados para longe como destroços. O tórax colapsou em um buraco aberto, onde os órgãos internos, já indistinguíveis, se misturavam ao sangue que escorria.

    Mikael continuou. Os disparos não cessavam, um após o outro, em uma sequência devastadora. A cabeça de Klaus inclinou-se para trás no momento em que um dos golpes finais a atingiu. Seu crânio não resistiu, estilhaçando-se como porcelana. Fragmentos de ossos e tecido cerebral foram lançados pelo local, transformando-o em uma cena grotesca e irreconhecível.

    O corpo, ou o que restava dele, tremulava sob o impacto incessante, até que nada mais permanecesse intacto. Tornara-se apenas uma massa informe, irreconhecível, de carne, ossos e sangue misturados. O chão, antes limpo, tornou-se um lago viscoso, refletindo o brilho vermelho que ainda emanava das mãos de Mikael.

    Quando o último disparo cessou, o silêncio voltou, pesado e opressivo. Mikael respirava em ritmo acelerado, com os dedos ainda crispados, enquanto sua energia se dissipava lentamente. Ele olhou para os restos diante de si, mas não havia alívio em seus olhos. Apenas a visão de um vazio absoluto, tão profundo quanto a destruição que causara.

    Mikael sentiu uma náusea amarga invadir seu estômago ao perceber a semelhança entre o massacre que acabara de realizar e as memórias enterradas que ressurgiam como lâminas cortando o silêncio. 

    A repetição dos tiros, com cada um reverberando como um trovão contido, trouxe à mente a fria experiência de apertar o gatilho, o que fazia com que cada explosão fosse um lembrete de tudo o que ele já havia perdido no ciclo de destruição.

    Por um instante, os dedos de Mikael tremeram e ele hesitou. A energia em suas mãos diminuiu, o brilho avermelhado se esvaindo lentamente, como se a própria fúria que o havia guiado estivesse recuando. 

    O silêncio que se seguiu foi absoluto, opressivo, como o ar rarefeito em uma montanha alta. A realidade e as lembranças se misturaram, obscurecendo os limites entre o que ele acabara de fazer e o que já havia sofrido.

    Ele levantou o olhar e encontrou Benjamin. A criança estava encolhida entre os bancos da igreja, o corpo tremendo como uma folha ao vento. Os olhos da criança estavam arregalados, inchados de lágrimas contidas, fixos nos de Mikael com uma expressão de puro pavor. 

    O brilho vermelho nos olhos dele refletia naquelas pupilas infantis, uma imagem que ele sabia que nunca seria apagada da memória do garoto.

    Benjamin não pronunciou uma única palavra. Seu peito subia e descia rapidamente, cada respiração curta e ofegante, enquanto seus lábios trêmulos denunciavam a incredulidade e o horror diante da cena que testemunhara.

    Era mais do que o sangue ou os restos grotescos de Klaus. Era a execução, a brutalidade fria e impiedosa, que havia arrancado qualquer noção de segurança que o menino pudesse ter.

    Mikael limpou as mãos em sua roupa, sem conseguir afastar a mancha invisível que sentia e aproximou-se de Benjamin com passos lentos. O garoto encolheu-se ainda mais, os olhos piscando rápido, mas o agente parou antes de chegar perto demais.

    — Já acabou. 

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