Capítulo 38: Como o mundo é cruel
— Quando foi que tudo começou a dar errado para mim?
Encostado em uma parede com rachaduras, um rapaz refletia sobre isso enquanto observava seu rosto naquele pequeno pedaço de vidro. Seu nariz empinado e as sardas na sua pele eram algo que o irritavam constantemente. Quanto mais olhasse para o pedaço de espelho, mais seus olhos se enchiam de lágrimas. — Eu acho que eu não devia ter nascido…
Ele deixou o espelho contra o chão, observando os cantos do seu quarto. Um cenário lastimável. Embora o arrumasse e o deixasse completamente limpo, as paredes, as madeiras que compunham a cama e os móveis, absolutamente tudo estava desgastado.
— Esse mundo é cruel demais.
Era a frase que repetia sempre que acordasse para mais um dia assombrado por aquela dolorosa realidade.
Levantou-se do chão repleto de rachaduras e começou a caminhar por aquele cômodo até a porta que ficava centralizada na parede. Pegando a maçaneta, abriu a porta daquele quarto e saiu dali, se deparando com um corredor vazio e escuro, com as paredes do mesmo estado do seu quarto.
Não se surpreenderia se um dia as paredes desabassem e caíssem sobre sua cabeça. No entanto, ainda relutava em ficar ali por ser a herança que os seus pais haviam deixado, e porque também não havia mais outro lugar para ficarem.
Seus passos, que ressoavam levemente e afugentavam roedores daquele espaço, o levaram a cozinha.
Outro compartimento da casa no estado mais lastimável possível. Havia virado esconderijo para todo tipo de roedores, principalmente na época de frio, quando havia muita procura por local onde se aquecer. O lugar, além de servir para acasalamento, também era palco de festas com a pouca comida que aquele menino conseguia adquirir em seus trabalhos honestos.
Por vezes, ele era obrigado a compartilhar da mesma comida que aqueles animais. Não podia jogar fora, era o trabalho árduo do seu suor.
Por isso que muitas das vezes, ao invés de armazenar em um lugar, ele preferia andar com a comida em sua sacola.
O rapaz caminhou até onde ficava a reserva de água, que tinha de tirar do poço todo santo dia, já que só tinha quatro garrafas de 2 litros para uso geral.
Por debaixo do lava-louça, pegou na metade do que havia sobrado; exatamente meio litro de água. E bebericou com tanta vontade e sede, que a água se entornava e invadia seu corpo, encharcando suas vestes.
Satisfeito, com a sede suprida, dirigiu-se ao quatro.
Mas este não era o seu quatro. Ao abrir a porta, deparou-se com a imagem de um menino deitado naquela cama casal, enquanto roncava de baixo daquelas cobertas.
Diferente do seu quarto, esse era o que mais aparentava estar em condições para se dormir. Olhou para a lateral da parede em oposição à cama e observou o retrato de um homem e uma mulher abraçados com um sorriso no rosto. Logo mais abaixo, havia outro que ilustrava o casal segurando as mãos dos dois meninos. Um deles era ele. Uma tristeza subiu ao seu rosto. Aquele retrato, apesar de lhe trazer memórias boas, ao mesmo tempo, lhe lembrava do momento mais trágico da sua vida.
Seguiu em direção à cama do irmão e sentou-se em uma cadeira, observando o rosto calmo e delicado do irmão. A janela ao seu lado lhe trazia a linda paisagem de um luar em meio às nuvens que vagavam de um lado para outro naquele céu azul-escuro.
Voltando-se a cama, retirou uma parte da coberta dos pés do irmão e começou a massagear seu pé direito levemente.
O garoto de baixo das cobertas começou a se remexer.
E então, retirou sua coberta abruptamente e contemplou a primeira vista seu irmão lhe fazendo uma massagem relaxante.
— Desculpa se te assustei, Handares.
Nikolas ergueu o rosto. Seus olhos castanhos encontraram os negros do seu irmão. A única coisa que tinham de igual eram os seus cabelos cinzentos.
— O que pensa que está fazendo, Nikolas?
— Oras, cuidando do meu maninho mais velho. O que eu mais faria?
— Eu estou cansado de dizer que não precisa disso! Vá descansar!
— Eu não consigo dormir, Handares — Nikolas emitiu com uma voz bem baixa.
— Aqueles idiotas fizeram algo contigo de novo? Não se preocupe, dessa vez eu vou lá e digo umas boas verdades na cara deles!
— Não, eles não fizeram nada. Não precisa se preocupar, é só que… Eu sinto falta do papai e da mamãe. Só isso.
Handares apenas baixou os olhos, observando as cobertas. E depois os levantou, sorrindo ligeiramente para o irmão.
— Não fica assim. Embora o papai e a mãe não voltem mais, a gente tem um ao outro, não é? E também acho que eles ficariam tristes se a gente ficar triste.
— É, eu sei. Mas não é só isso, Handares. Você nunca se perguntou por que tem que ser assim? Por que as coisas só dão errado para nós quando tem muita gente se dando bem?
— Olhar para os outros não vai resolver os nossos problemas, irmão. Então, pare de fazer esse tipo de perguntas.
— Não precisa responder desse jeito também. Não vejo nada de mais em buscar respostas da razão do nosso sofrimento. Por que só nós temos que perder os nossos pais? Por que você teve que nascer com dois pés que não funcionam? Por que, irmão? Me diga.
— Você tá no seu direito de fazer esse tipo de perguntas, Nikolas. Mas jamais ouse se comparar a outros, me entendeu? Pelo menos não é isso que o papai e a mamãe iam querer.
— Eu nem preciso me comparar com os outros, irmão, as pessoas já fazem questão de se comparar comigo. E você sabe muito bem disso!
— Ignore-os. E se partirem para a agressão, não se rebaixe ao nível deles. Jamais faça isso. Lembre-se do legado que papai e mamãe nos deixaram. Precisamos honrá-los.
— Mas…
Nikolas tentou falar, mas a voz firme e convicta do seu irmão o interrompeu.
— Nikolas, o legado.
— Mas…
— O legado, Nikolas. Jamais se esqueça do legado que eles deixaram.
— Certo. Acho que posso aguentar mais um pouco o peso da injustiça desse mundo.
— Não é para aguentar um pouco, é para aguentar até o fim, pois um dia seremos recompensados e a nossa vida certamente mudará.
— Esse um dia tá demorando um pouco.
— A esperança é a mãe da ciência. Não é o que você costumava dizer quando aquelas suas invenções malucas não davam certo?
Handares sorriu.
— Era… Mas agora eu já nem tenho mais tempo para isso. Se pelo menos um dos meus experimentos desse certo e nos tornasse rico, eu nem sei o quão feliz eu ficaria!
— Por que não tira um pouco de férias e trabalha neles? A vida não é só trabalho.
— E comida? Quem vai trazer comida para casa?
— Não se preocupe! Eu pedirei esmola na vizinhança, um dinheiro suficiente que dure por uma semana enquanto você se dedica ao que te faz bem.
— A vizinhança é egoísta e dá muito pouco, o equivalente a nada. Cada um está preocupado com sua barriga.
— Ah, pare de dizer isso e deixe tudo comigo! — Levantou o punho ao alto enquanto sorria esperançosamente. — Eu, Handares, conseguirei trazer mais dinheiro para aqui em casa! Afinal, é o dever dos irmãos mais velhos cuidar dos mais novos!
— Hahahaha! Essa eu quero ver!
— Então aguarde! Hahahaha!
Entre em risos e felicidade, aqueles irmãos passaram toda noite conversando até que caíssem no sono, bem perto dos primeiros raios do sol iluminarem a terra.
A cabeça do Nikolas estava encostada sobre a cama do irmão. Se não fosse pelo chute do seu irmão, ele não teria acordado para mais um dia doloroso e de trabalho árduo.
— Caramba, o sol já nasceu!
Desesperado, Nikolas saiu correndo dali enquanto esfregava seus olhos sonolentos. Seu irmão apenas roncava de um lado para outro. Com o coração contra o peito, Nikolas corria tanto que acabou caindo naquele chão. Um pequeno galo acabou emergindo na sua testa. Mas a dor de longe era o mais importante naquele momento. Ele precisava estar no seu trabalho a tempo e hora.
Ele nem se dava ao trabalho de tomar banho, já que nem água havia e de qualquer forma seu trabalho o deixaria sujo novamente.
Após sair de sua casa, Nikolas agora se encontrava nas ruas do seu bairro, correndo contra o tempo. Um bairro onde a única casa em estado lastimável e degradante era a sua, o que certamente lhe causava irritação.
No meio do caminho, Nikolas acabou encontrando as mesmas pessoas de sempre, que o fizeram parar com braços esticados para frente.
— Olha, se não é o garoto sujo…
Quem falava era um homem ligeiramente gordo com uma tatuagem de dragão que cercava seu olho direito.
— Eai, Niko? Tudo bem?
Já esse era magrinho e possuía um cabelo carmesim que se assemelhava ao de um galo. Ao seu lado, estava um outro com o rosto igual ao de uma batata e cabelos rebeldes, como se houvesse levado um choque elétrico.
— Olha, é o Nik! Hahahaha! O nariz empinado dele sempre me faz rir! Mas e eai, Nik? Tudo bom?
— Eu não tenho dinheiro comigo, então por favor me deixem passar que eu estou atrasado para o trabalho.
— Opa, como assim, garoto sujo? — O gordinho franziu as sobrancelhas, rangendo os dentes ligeiramente. E algumas veias apareceram na sua testa. — Ninguém te ensinou a tratar bem os mais velhos, não é?
O gordinho avançou com as mãos no bolso e chutou o rosto do Nikolas com o seu pé grande. Nikolas caiu no chão, e seu rosto acabou ficando enterrado na areia.
— Mas o que eu fiz? — emitiu enquanto levantava o rosto, acariciando seu nariz empinado que não parava de jorrar sangue.
— Ainda pergunta, Niko?
— Ai! Aí! Esse Niko pensa que a gente só pensa em extorquir ele! O que é verdade! Hahahaha!
— Mas eu não entendo. Vocês nunca agiram assim comigo antes. Quando eu voltava do trabalho sempre dava algo para vocês e ficava tudo certo.
— Pois, as coisas mudam! — emitiu Gar.
— A verdade é que o Gar foi despedido do emprego dele! Hahahaha! Então ele quer descontar em ti, Nik!
— Mas eu não tenho nada a ver com isso.
Aquelas palavras inocentes fizeram o gordo ficar com raiva.
— Segurem-no.
— As suas ordens, mestre!
Nikolas foi segurado por aqueles dois enquanto Gar o tornava seu saco de pancadas. Soco após socos em sua barriga o faziam cuspir saliva. Cotoveladas e ajoelhadas no seu rosto e cabeça faziam seu nariz verter ainda mais sangue. E o galo na sua testa não parava de aumentar.
Depois de o espacarem a luz das pessoas que passavam por ali sem se importar, eles o abandonaram jogado no chão. Com o rosto todo desfigurado.
— Por que esse mundo é tão injusto comigo? O que fiz para merecer isso?
Nikolas levantou os olhos ao céu. Estavam em coloração roxa e tremelicavam, vislumbrando as nuvens com bastante dificuldade.
Ele fechou os olhos e enterrou a cara na areia, chorando amargamente. Ficou ali por alguns minutos até se lembrar de que apesar dos pesares tinha um irmão para sustentar.
Engoliu suas lágrimas e com os pés apostos, correu em direção ao trabalho.
O suor percorria todo seu corpo, seus olhos mal conseguiam vislumbrar o caminho, de tão feridos que estavam, e seu corpo reclamava de dor. Mas ainda assim, continuava correndo.
Após tanto correr, já conseguia avistar uma luz no fim do túnel. Finalmente havia chegado ao seu trabalho, um espaço destinado à fabricação de tijolos. Era com isso que Nikolas trabalhava todo santo do dia. Mesmo com o seu corpo magrinho, fazia um grande sacrifício para se equiparar aos trabalhadores bem fortes e com bastante massa muscular que por lá trabalhavam.
Com as mãos agarradas aos joelhos, Nikolas suspirou e começou a correr até onde estavam os companheiros. Mas no meio do caminho, uma voz grossa o parou. Era a do seu chefe.
Um homem de olhos grandes e careca. Vestia uma calça negra e uma camisa interior que deixa os músculos a espreita, principalmente os dos ombros.
— Nikolas, venha aqui
— É… Chefe?
Nikolas se virou lentamente, com os braços e os pés tremelicantes.
— Céus! Caramba! O que aconteceu com o seu rosto?
Nikolas caminhou até o chefe.
— B-Bem… Acontece que encontrei uns valentões que me bateram até eu ficar assim, chefe. Então, por favor, peço perdão pelo atraso!
— Hum, entendo.
— O Sr. me perdoa?
— Sinto muito, Nikolas, mas você está demitido.
Um vento sibilante soprou entre o chefe e o Nikolas, levantando uma pequena rajada de poeira.
— O que?
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