Capítulo 51: Pousada Dona Martha
Depois de um longo voo no ar, Gaia perdeu as forças e desceu em alta velocidade contra terra firme. Mesmo encobertos em suas mãos, podíamos sentir o vento sibilante percorrer nossa pele, apalpando nossas vestes e afagando nossas madeixas.
Um estrondo se ouviu quando o Golem colocou seus enormes pés em terra firme e quando ele abriu suas mãos, milhares de olhos arregalados nos observaram. Não tardou até que os gritos começassem a ressoar pelos nossos ouvidos e, para piorar, o golem havia destruído uma estátua no processo, o que levantou ainda mais vozes de indignação.
Pedi para que o golem nos encobrisse e deixasse aquele espaço o mais rápido possível, antes que aventureiros e soldados aparecessem.
Após tanto correr, Gaia parou em um lugar onde não podíamos ouvir nenhum barulho humano. Ele abriu suas mãos e pudemos contemplar um espaço bem calmo, sem sinal de nenhuma pessoa por perto, o que era bom.
Haviam casas ao redor de uma praça com uma fonte seca no meio.
Gaia nos deixou no chão e encolheu em forma de miniatura. Theresa, a autointitulada proprietária, pegou Gaia e colocou no bolso do jaleco.
— Bem, o que faremos agora?
— Vejam, ali…
Quando Zernen apontou para ali, no fundo, pude ver uma paisagem repleta de casas coloridas se apertando, moldando o limiar do horizonte.
— Está explicado porque está tão silêncio aqui — disse Meredith. E eu não entendi o que isso tinha a ver com aquelas montanhas de casas desorganizadas.
— Só o único que não percebeu?
Olhei para o Zernen e para Theresa e eles balançaram a cabeça positivamente.
Então eu sou burro.
— Acontece que estamos perto da favela e a maioria das casas que ficam perto da favela ficaram desabitadas, por conta da criminalidade. Gente que mora na favela tem muita descriminação com gente que mora nas cidades, entendeu?
— Então era isso?! Oh, entendi!
Olhei para o Zernen com a testa franzida.
— Como assim? Pensei que tivesse entendido.
— Hahahaha!
Ele começou a rir enquanto coçava a cabeça.
— Bem, pessoal…
Nossos olhos foram atraídos para Theresa, que abria sua mala, retirando duas poções mágicas com coloração violeta.
— Essas são poções de anti-detecção de mana, ou seja, ela suprimi sua mana ao ponto de não ser detectada. Saiu muito cara, então bom uso.
Ela entregou para Zernen e para Meredith.
— Espera aí, saiu muito caro com dinheiro de quem?
Zernen recebeu a poção com uma expressão emburrada.
— E para mim?
Estiquei o braço.
— Nós não precisamos, idiota. Esqueceu que somos deficientes de mana?
— Ah, é mesmo.
— Só uma poção dessas custou 20 moedas de ouro.
— Quê? Tá me dizendo que gastou 40 moedas de ouro nisso aqui?
Zernen reclamou, mas Theresa o ignorou, olhando para Meredith.
— Não façam xixi sobre hipótese alguma caso tomem a poção, porque ela perderá todo efeito. O organismo a reconhece como uma droga, então a fará de tudo para a evacuar.
— Não fazer xixi?
— O que foi, Jarves?
Meredith olhou para mim com uma cara de quem iria lançar uma piada contra minha pessoa.
“Não me diga que é um mijão?” Imaginei ela dizendo isso, mas …
— Se você nem vai ter que beber a poção.
— Ah, é mesmo, não é? Que bom para mim!
Meredith sorriu. Que ideia a minha pensar que Meredith, uma mulher de classe seria capaz de fazer esse tipo de piada, sendo uma mulher séria como ela era.
— Jarves, você sabe quanto é que vale uma farmácia?
— Ué, por que você quer saber isso?
— Que atitude louvável a sua…
Olhamos para Theresa que sorria com olhos brilhantes.
— Vai mesmo comprar uma farmácia para mim?
— Não, eu só queria saber o preço para vender a sua no dobro e assim recuperar as minhas moedas de ouro.
Theresa começou a rir como uma louca.
— E como vai fazer isso? Se a documentação está em meu nome?
— Eu falsifico tudo!
— Com aquela caligrafeia que parece que uma cobra passou voando por ali?!
— Ei! Eu não tenho uma letra tão ruim assim? Não zombe! Além do mais… — Zernen olhou para o lado envergonhado. — Deixa estar.
— Você não foi a escola, não é?
— Como adivinhou?
— Esse é o papel de uma vide…
— Sr. Alexododo nos contou — Meredith cortou, estragando a brincadeirinha de Theresa.
— Ei, pessoas. Chega de papo furado, temos que decidir o que faremos agora antes que cheguem aventureiros ou soldados e a situação complique.
— Ali…
Theresa apontou para uma casa de dois andares em específico. Por cima da porta, havia uma placa com as escritas: “Pousada da dona Martha, aberta 24/24”
— Mas não disseram que isso aqui já não era mais habituado?
— Como você é burro, Jarves! Ali diz aberta 24/24!
— Tá, espertinho. Vamos tirar isso a limpo.
— Valendo 500 moedas de ouro.
— Valendo a farmácia da Theresa, quital? Eu, sim, sou bom em falsificar assinaturas!
— Fechou!
— Ei!
Theresa gritou enquanto eu e o Zernen corríamos em direção à pousada dona Martha.
— Aí! Aí! Aqueles dois…
— São dor de cabeça, não é mesmo? Veja só como eles deixaram o baú para a gente carregar.
— Na verdade, ter eles deixa o ambiente mais divertido. — Meredith pegou em um lado do baú do tesouro. E Theresa colocou sua mala por cima do baú, dando início à caminhada enquanto segurava o outro lado da alça.
— É mesmo, não é?
Ambas sorriram.
Enquanto isso, eu e o Zernen abrimos aquela porta, pegando na fechadura. Para nossa surpresa, não estava ninguém por aquela pousada, se não uma mulher naquele balcão.
Seus longos cabelos castanhos pousavam sobre seus ombros, enquanto olhos violeta e lábios rosas emolduravam aquele lindo rosto. Ela usava um vestido amarelo cingido de lindos girassois, com uma fita vermelha bem no meio do decote no formato v, aliado a um colar que entrelaçava seu pescoço.
Com um sorriso colgate, ela esticou seus dois braços, emitindo.
— Sejam bem-vindos à pousada Dona Martha!
Nos aproximamos do balcão enquanto ouvíamos o som da porta se abrindo.
— Eu disse, não disse, Jarves?
— Tem razão, Zernen. Só não entendo o que uma bela moça faz aqui!
— Senhores, dos que estão falando?
Ela sorriu novamente, enquanto ouvíamos os passos de aproximação de Meredith e Theresa.
— É que essa cidade parece ser desabitada — expliquei.
— Oh, sim, entendi. Mas nós estamos sempre abertos!
— Como assim? Não te assaltaram?
— Sejam bem-vindas à pousada Dona Martha!
A moça olhou para aquelas duas a nossa trás, com um sorriso carismático.
— Vem cá, você não é jovem demais para se chamar de “Dona Martha” ?
Zernen tinha razão. A olhei de baixo para cima, analisando minuciosamente seu corpo jovial, que não deixava passar nenhum rastro de velhice e cheguei à conclusão de que ela tinha uma idade comparável a dezassete anos.
— Ah, não. Eu não sou dona Martha. Dona Martha é o nome da minha falecida avó que fundou essa pousada.
— Ah, sinto muito.
Zernen e eu lamentamos em uníssono.
— Agradeço bastante a vossa empatia para comigo.
— Você não acha perigoso continuar abrindo uma pousada sendo que já não há gente por perto? Além disso, seria um evidente desperdício de recursos.
Meredith disse e Theresa balançou a cabeça.
— Vocês têm razão, de fato é perigoso. Mas está é a vontade da minha avó que, mesmo em tempos difíceis, eu continue avançando com o negócio na esperança de um dia um sol raiar, enchendo essa pousada de pessoas novamente. Esse é o seu desejo.
— Nossa…
Até lágrimas saíram dos meus olhos.
— Caramba, é difícil achar gente assim hoje em dia — disse Zernen, comovido, enquanto levantava o polegar. — Você tem o meu respeito.
— Então você é igual a mim? Acho que podemos ser boas amigas.
Meredith sorriu.
A única que mostrava um semblante frio era a rainha do gelo e da tempestade, Theresa Zerth.
— Quanto é que é a moradia aqui? Pretendemos ficar aqui apenas por essa noite.
— O que?
Eu e o Zernen fizemos a mesma pergunta.
— O que foi? Queriam ficar aqui por quanto tempo?
Apesar de insatisfeitos, ela tinha razão.
— 30 moedas de bronze. Com refeição e tudo incluído, inclusive alguns mimos.
Opa, adorei a parte dos mimos. Mas deixando isso de lado…
— 30 moedas de bronze? Não acha pouco?
… Zernen e eu perguntamos.
— Tudo bem. Fechado — Theresa afirmou, se aproximando do balcão enquanto retirava uma moeda de prata do bolso.
— Não! — Zernen contestou. — Esse dinheiro é muito pouco.
— Isso! Isso! Precisamos dar a ela umas 1000 moedas de ouros!
— Ei, isso tudo também não, né?
“Tudo bem, Zernen. Admito que exagerei.”
— O troco, por favor! — Theresa colocou a moeda de prata sobre a mesa do balcão com um olhar frio.
“Que bicho mordeu essa mulher hoje?”
— Não se preocupem — disse a gerente, levantando a moeda de bronze. — A verdade é que tenho feito esse tipo de cobrança para que os clientes não fujam e se sintam à vontade com um preço tão básico quanto esse.
— Mas você vai à falência, não vai? Escuta, nós somos gente dinheiro! Você, por acaso, sabe quem é ela? — Apontei para Meredith que estava atrás.
— Sim, e sabem quem eu sou?
— Sinto muito, quem são vocês mesmos?
Ela deu um sorriso gentil enquanto levava um troco debaixo da gaveta.
— São meros viajantes apenas — emitiu Theresa e Meredith balançou a cabeça freneticamente.
— Certo, aqui o troco — ela colocou 70 moedas de bronze sobre a mesa.
Quando Thereza tentou pegar, a gente deu um tapa na mão dela.
— O que se passa com vocês?
— Theresa, vai mesmo fazer isso?
— E ainda próxima, com as minhas moedas?
— Theresa, eu acho que podemos deixá-la com o dinheiro. Não fará diferença para nós, apenas estaremos a ajudando.
— Tá. — Theresa se afastou do balcão, retornando para o pé da Meredith.
— Desculpe a nossa amiga, viu? Ela está naqueles dias, sabe?
Uma seringa passou raspando pelos meus cabelos.
— De novo?! Essa foi por pouco! — suspirei freneticamente, vendo a seringa presa a uma das gavetas dentro do balcão. — Theresa!
— Hahahaha! Se deu mal, Jarves! Minha mãe me ensinou que não é bom provocar uma mulher estressada!
— Bem, com licença… — Nossos olhos foram atraídos para aquela mulher, que terminava se juntar as moedas. — Como o pagamento já foi efetuado, farei a gentileza de levá-los aos quartos.
— Muito obrigado — agradecemos, menos Theresa.
Primeiro ela ficou assim com o Zestas e agora com essa gentil moça…
Theresa realmente tinha problemas sérios.
A gerente saiu do balcão e nos guiou por aquele cômodo da pousada até o compartimento onde ficavam os nossos quartos. Subimos até chegar ao primeiro andar, onde havia um corredor extenso com quatro portas, duas delas estavam na parede frontal e duas na vertical.
A gerente explicou que as duas que se encontravam na parede frontal eram as que levavam aos nossos respectivos quartos e as outras duas levavam aos nossos respectivos banheiros.
Banheiros e quartos para homens e mulheres; realmente estava tudo bem separado.
Entramos na primeira porta que dava acesso ao quarto dos rapazes e, quando ela falou que era um quarto de rapazes, realmente não estava brincando. O quarto era pintado de azul, tinha gavetas e todos os itens de que um rapaz dessa era medieval precisaria.
Haviam, concretamente, duas camas, lindas e fofas, para mim e o Zernen. Quando queríamos pular para elas, a gerente disse que era para passarmos para outro quarto e, como tínhamos curiosidades de ver como eram os quartos das meninas, a seguimos.
Quando a segunda porta foi aberta, contemplamos um lindo quarto cor de rosa, com cama e lençóis cor de rosa, bonecos, estojo de maquiagem e tudo que deixava uma mulher fascinada. O brilho era nítido nos olhos da Meredith enquanto contemplava aquilo tudo com fascínio, menos Theresa é claro, ela era anormal para não demonstrar nenhum tipo de emoção diante daquilo tudo.
— Bem, sintam-se em casa.
Meredith teve que puxar Theresa para dentro daquele quarto, porque se não ela não entrava de jeito nenhum.
A gerente fechou a porta e nos levou até o nosso maravilhoso quarto, onde pudemos repousar em nossas lindas e confortáveis camas.
Com um sorriso, ela acenou e deu adeus enquanto ia preparar alguma coisa para a gente comer.
— Ah, isso, sim, é vida!
Eu admirava o teto enquanto colocava as mãos atrás da nuca. Minha cabeça estava encostada numa almofada bem macia.
— Bem que poderíamos ficar aqui por um mês, não é, Jarves?
Zernen, do outro lado da cama, sorria enquanto me observava. Deixei o teto e nossos olhos se encontraram.
— É, pena que a gente tá fugindo…
E sem contar que não poderíamos perder de tempo, já que a cada dia que passava, estávamos mais próximos daquele dia.
— Vejo que desistiu da ideia de voltar para Gallen.
Ele estalou os dedos e levantou-se.
— Ainda bem que você lembrou, Jarves! Eu preciso voltar para Gallen apoiar o meu avô!
— Droga! Por que eu fui lembrar? Todavia, não faça isso, Zernen! Estávamos bem aqui. Pela honra e dignidade do seu avô, não ouse voltar lá.
— Estou brincando. É óbvio que o meu avô jamais perderia para aquele cara! Se eu voltar para lá, só irei atrapalhar.
— Viu como é bom usar a cabeça?
— Olha quem fala! Hahahaha!
— Admita, eu sou um gênio!
— Graças a essa sua habilidade de ver o futuro. Saquei como você consegue pensar em planos tão bons, é porque você conhece o futuro, não é, Jarves?
“Desde quando Zernen aprendeu a pensar tão a fundo assim?”
— É… acho que sim, talvez…
Quando estava me perdendo nas respostas, a porta se abriu abruptamente, revelando duas mulheres.
— Pessoal!!!
Theresa gritou enquanto Meredith estava a sua atrás, gesticulando suas mãos.
— Theresa, vamos voltar ao quarto, por favor. Deixa isso de lado, não há nada com o que precisemos nos preocupar.
— Precisamos sair dessa pousada imediatamente! O meu sexto sentido me diz que devemos sair daqui, porque algo está muito errado aqui! Não repararam na estranheza desse lugar?
— Reparou em algo de estranho, Zernen?
Ele balançou a cabeça negativamente e eu olhei para Theresa e Meredith.
— Escuta, vai descansar, Theresa. Você precisa deixar de arranjar uma resposta racional para tudo, esvazie sua mente e aproveite a nossa estadia aqui.
— Jarves tem razão. O meu avô disse que a paz é a única coisa boa de que podemos desfrutar nesse mundo!
— O meu pai também!
Meredith acrescentou.
— Mas, pessoal, eu não fui com a cara daquela recepcionista e eu, que sou médica, sei muito bem do que falo!
— Theresa… — Apontei para a pessoa que estava atrás dela.
— Sério, pessoal! Conheci vários pacientes que escondiam maldade em um sorriso gentil.
— Theresa… — Meredith cutucou o ombro dela.
— O que foi?
Theresa virou para trás.
— Ah…
— Com licença… — A gerente deu um sorriso gentil, mesmo após ter ouvido aquelas atrocidades vindas da paranoica da Theresa. — Precisam de alguma coisa?
— Nada. — Além de responder friamente, Theresa passou pela gerente, empurrando-a praticamente com o ombro sem dó nem piedade e saiu da nossa vista.
Meredith encurvou a cabeça freneticamente, a gerente que se recompôs com um sorriso gentil.
— Desculpa! Desculpa! Desculpa! A minha amiga está passando por tempos difíceis, então não tem noção do que diz!
— Não se preocupem, eu estou acostumada com isso. Quando essa pousada vivia cheia, eu recebia toda espécie de clientes, que acabei me habituando a certos comportamentos fora do normal.
— Eu estava pensando aqui… — Zernen colocou a mão no queixo. — Se Theresa é médica, será que ela é mesmo capaz de se curar?
Todos começamos a rir.
— Que ideia, Zernen!
— Bem, eu vou atrás dela — disse Meredith, saindo da nossa presença enquanto se desculpava mais uma vez pela Theresa. A gerente também se retirou junto, fechando a porta do nosso quarto.
— Oh, droga, agora que lembrei, a gente esqueceu de perguntar sobre a comida.
— Não se preocupe, Zernen, mulheres têm o costume de chamar os homens para comerem.
— É, verdade! Hahahaha, me lembro quando minha mãe me acordava para jantar, ela me jogava com balde de água fria!
— Água fria? Então menos mal para mim, porque minha só chutava o meu traseiro.
— A minha mãe é um terror!
— A minha também! Até o meu pai tem medo dela! — Dei um sussurro no vento. — Cá, entre nós, foi a minha mãe que conquistou o meu pai… Vê se pode.
— Hahahaha! Acredita que também com os meus pais foi o mesmo?
Caramba, nem sabia que tinha tanto em comum com o Zernen.
Acho que nunca tínhamos tirado um tempo como esse para conversarmos mais sobre nós.
A gente ficou ali conversando sobre o nosso passado, claro, sem tocar em alguns pontos que ele não precisava saber, até que o sono caísse sobre os nossos olhos e nos derrubasse naquela cama confortável e fofa.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.