Índice de Capítulo

    Eu achava que possuía noção do impacto que uma notícia de falecimento poderia trazer ao seu receptor. Entretanto, estava totalmente enganado. Quando se perde alguém que estava tão enraizado no seu dia a dia, não há como mensurar a própria confusão mental. 

    Miyu parte correndo em direção ao pátio, e desta vez Haruki e Mikoto não tentam impedi-la, eles nem poderiam. Eles sabem que não há como pará-la racionalmente, e mesmo que pudessem ainda não se veriam no direito de tal atitude.

    Manabu corre atrás dela também em direção ao corpo de nosso falecido amigo. Continuo observando pela janela os dois em prantos alcançarem a carcaça de Shou. 

    Poderia ter sido diferente? Se eu tivesse indicado Shou para o recrutamento agora ele estaria aqui conosco. Provavelmente fazendo alguma palhaçada, talvez até nos atrapalhando em certo ponto, mas ainda sim, pelo menos estaria vivo. Estaria vivo e com um sorriso bobo em seu rosto. Como pude deixar isso acabar assim?

    Suspiro e desço lentamente as escadarias. 

    Quanto mais me aproximo desta realidade, mais sufocante tudo fica. Sinto-me adentrando uma terrivelmente densa areia movediça. A tensão resultante esmaga todos os meus ossos e músculos centímetro a centímetro.

     Chegando ao térreo, também sigo em direção ao pátio. Diferente daqueles dois, eu estou seguro de não ser morto por um disparo, pois carrego a maldição de ser um jogador. Se os dois estão correndo risco de vida apenas para ver o rosto de um querido amigo pela última vez, o mínimo que posso fazer é ir até lá em respeito à memória de Shou.

    O que me leva aos questionamentos. E se por um acaso, por um mero acaso, eu tenha feito a dedução errada. 

    “Shimizu Shou foi quem me dedurou ao conselho estudantil.”

    Eu projetei a incerteza de uma culpa sobre ele sem hesitar.

    Aproximo-me do corpo dele e permaneço em pé, pois se eu me abaixar, não sei se terei fôlego para me levantar novamente. Então neste amargo momento apenas posso fazer companhia para Miyu, a qual chora sobre o corpo de seu amigo. 

    Felizmente Manabu é forte o bastante para suportar suas próprias emoções e dar apoio a ela. Este papel necessita ser cumprido por ele, pois não possuo a menor condição de inventar desculpas de como “era pra ser assim” ou “ele está num lugar melhor agora”.

    — O Shimizu-kun possuía muitos defeitos, era birrento e muito teimoso. Porém tinha um bom coração e jamais faria mal a ninguém em sua volta. Por que justamente os bons são os que mais sofrem? — Miyu lamenta-se com os olhos ainda em lágrimas.

    Infelizmente a realidade é esta e ela não é nada justa. Não há nenhuma restrição moral no que se sucede. Ora bons, ora maus morrem, sem distinção. E agora, ele simplesmente deixou de existir, como se tudo o que fez em vida não valesse nada.

    Por que estamos sujeitos a este acaso?

    As coisas são assim mesmo, viemos e vamos para o nada sem receber a menor satisfação por nossos atos ou propósitos.

    Manabu a contorna com um de seus braços e a puxa para perto de si a confortando.

    Sou culpado por tudo isso? Se eu não tivesse desconfiado da índole dele, meu amigo ainda estaria vivo. Por uma mera suspeita, o entreguei para a morte. 

    Estranhamente não há mais nada além da culpa me assolando, não sinto tristeza por parte desta perda e muito menos raiva em relação ao autor do crime. Diferentes deles, meus olhos em nenhum momento solicitaram por lágrimas.

    Eu realmente sou um horror de pessoa, ou talvez já tenha apodrecido.

    20h19

    O transtorno sobre a morte de Shou inutilizou o restante do dia, pois foi algo que apunhalou emocionalmente alguns integrantes do grupo. Vendo a nossa moral em baixo estado, Mikoto decidiu adiar definitivamente o nosso contra-ataque para o dia seguinte.

    Aos poucos, cada membro foi dispensado e a sala do conselho gradualmente tornou-se vazia. Esta seria a minha a oportunidade de discutir com Mikoto sobre a loucura que estava propondo. Todavia, perdi o interesse nisso. Não estou nas melhores condições mentais para conversar com ela, sinto-me vazio.

    Meu estômago ainda está embrulhado. Estou muito irritado com minha própria reação, imagino que eu deveria no mínimo ficar triste, mas nem para lamentar a morte de um amigo eu sirvo.

    Uma constante sensação de que isto é algo normal, usual, banal persiste em minha mente. Isso já aconteceu antes?

    A única coisa que me toma da cabeça aos pés é o nojo. Esta sensação não advém da visão horrenda que é um cadáver num mar de sangue, mas de mim mesmo. É um reflexo do meu interior. Vislumbrar aquela cena me fez sentir como se houvesse a camada da sujeira mais podre que  poderia existir revestindo toda a superfície do meu corpo.

    Por quê? Por que estou sentindo isso? O que foi que eu fiz? Isso tudo só me faz querer sentar e esperar os ponteiros do relógio sentenciarem a minha morte. 

    Eu quero sumir daqui.

    Droga, minha cabeça está doendo demais. 

    Tontura. 

    Estou me sentindo muito mal, assim como no primeiro dia do jogo. A sensação que isto me passa está indo muito além da culpa, mas como se eu realmente tivesse assassinado alguém. Quase posso ver o sangue em minhas mãos. 

    A morte de Shou parece ter sido um gatilho para jogar diante de meus olhos centenas de corpos caídos e dilacerados. O que significa tudo isso? Por que estou sofrendo por algo que jamais cometi?

    Eu seria capaz de um ato horrendo destes? Sobre que circunstâncias eu abandonaria a minha racionalidade e corromperia minha alma?

    — Johann, tu estás a passar bem? Pareces um pouco desorientado.

    A voz serena da garota que lidera a resistência contra este jogo toca meus tímpanos. Ouvi-la realmente me tira um peso das costas. A presença assemelha-se com uma pura água capaz de limpar-me deste mar de imundície o qual me assola. Contudo, não quero ocupá-la em reconfortar-me, ela possui responsabilidades mais dignas como prioridade. Isto é algo que preciso resolver por conta própria.

    — Ah sim, foi apenas uma tontura, não precisa se preocupar comigo. Bem, acho que vou indo, me encontro com vocês pela manhã — respondo e desconverso.

    Após responder Mikoto, vejo então que Haruki e os outros também já haviam ido embora. Estava tão abatido que nem ao menos percebi que estávamos a sós na sala. 

    Se acabei chamando a atenção dela, não quero nem imaginar o quão patético eu estava.

    — Tudo bem, tu também estás dispensado, todavia ao menos poderias ouvir algo antes de ir? Há um assunto que eu estava escondendo de ti, e acho que não seria justo não te contar — diz um pouco cabisbaixa.

    Escondendo de mim?

    Assinto com a cabeça e volto meu olhar a ela.

    — Fui eu que conjurei este jogo — Mikoto lança rispidamente estas palavras.

    — Você o quê?! — arregalo os meus olhos.

    Foi ela quem criou este ambiente sobrenatural?! Como?! Está confessando ser a culpada por tudo isso?!

    A sua fala me quebrou por completo, estou com dificuldades de processar a informação. Com isto apenas permaneço a fitando fixamente, ainda espantado e incapaz de dizer nada.

    Percebendo minha petrificação, ela volta a falar

    — Não sei bem nem por onde começar, pois é uma história bastante longa. Todavia, por obséquio, peço-te que me ouças até o fim antes de concluir qualquer coisa. Não quero gerar mal-entendidos.

    É difícil não ficar com um pé atrás após soltar uma afirmação tão forte e reveladora. Nenhuma justificativa para esse ato me vem à mente. No entanto, o que mais poderia fazer além de ouvi-la? Não é de meu interesse criar um conflito entre nós, e como a própria está expondo esta questão, o mínimo que posso fazer é cedê-la o tempo para se explicar. 

    — Esta é uma afirmação muito grave. Mas estou curioso sobre seus motivos — restabeleço-me e a respondo.

    — Vou começar contando sobre a essência do jogo — diz enquanto se senta em sua cadeira — Basicamente, esta dimensão é fruto de um dos rituais mais poderosos de magia negra de que se possui conhecimento na história. Como tu mesmo pudeste ver nos arredores da escola, é um contrato com a personificação da própria Morte.

    Então ela fez uma espécie de pacto com aquela coisa que está rondando o perímetro do colégio? É algo que naturalmente soaria bem macabro de se ouvir.

    — Magia negra, hein? Confesso que seria uma explicação muito difícil de engolir se eu não estivesse vivenciando isso.

    — De fato, este tipo de conhecimento sempre foi ocultado das grandes massas. Bem como foi praticado e desenvolvido em segredo, tanto que se pode contar nos dedos quem é capaz de conjurá-la ao redor do mundo. Justamente por isso aparenta ser um fundamento tão distante para ti.

    — Sendo uma magia tão excepcional, como você foi capaz de executá-la? Você é uma bruxa ou algo assim? — pergunto.

    — É algo mais ou menos hereditário, nada muito complicado de entender. Essencialmente, quando algum conjurador vem a óbito durante o seu próprio ritual, a maldição é automaticamente passada para a pessoa mais próxima. Esta pessoa normalmente trata-se de algum dos seus familiares.

    — Normalmente? Logo, não é somente de pais para filho?

    — Não necessariamente, a essência da Morte é quem decide o próximo portador da maldição, quem seria digno de tal honra. Por exemplo, eu herdei da minha mãe que havia herdado do seu irmão mais velho. Como meu tio não possuía filhos quando morreu, então foi passado para sua irmã mais nova, pois para a Morte ela seria a seguinte na ordem de sucessão. Caso o portador não tenha parentes próximos, provavelmente irá para algum parente consanguíneo desconhecido.

    Parece ser realmente uma maldição, a qual se assemelha com uma busca por um novo hospedeiro.

    — Espere um pouco, pelo que você acaba de me descrever… Se você herdou a capacidade de conjurar esta magia, então seu tio e sua mãe morreram durante um ritual que os próprios conjuraram?

    — Sim. Não sei muito a respeito do meu tio, pois ele morreu antes de eu nascer. Tocar no nome dele sempre foi um tabu para a nossa família porque ao que tudo indica ele era uma pessoa nada exemplar e provavelmente morreu conjurando o jogo por mera diversão.

    Em outras palavras, um psicopata.

    — Tu já deves ter ouvido falar superficialmente, mas a minha família é uma das mais tradicionais desta região, pois somos responsáveis pelo templo da cidade. Podes ter certeza que não é atoa que este ritual de magia negra está nas mãos de uma família de sacerdotes e sacerdotisas, trata-se de uma preservação de poder muito bem pensada — prossegue com a explicação.

    Não estou muito ligado a esta parte cultural por ter vindo do exterior, porém tenho certa noção do que ela está falando. Em certas épocas do ano, a população reúne-se em festivais relacionados a esse templo.

    — E sobre minha mãe — pausa brevemente — Bem, como acabei de dizer, com a morte do meu tio, quem assumiu o posto de sacerdotisa da família e portadora do jogo foi ela. Felizmente, diferente de seu irmão, ela era uma pessoa muito mais responsável e não conjurou o jogo para tirar vidas, mas para salvar uma vida — olha por alguns segundos para baixo e conclui — a minha vida.

    Um pacto com a morte foi capaz de salvar uma vida? É uma ironia e tanto.

    — Como exatamente ela faleceu? — pergunto.

    — Foi há quinze anos, eu era muito nova e não me recordo de nada. Pelo que meus familiares me relataram, um homem armado invadiu o templo no qual moramos, e então ela conjurou o jogo para que ele só pudesse matar uma pessoa. No caso, ela. Ambos morreram nos papéis de jogadores e com isso fui a única sobrevivente do ramo principal da família — responde com certa melancolia em sua voz.

    — E o seu pai? Ele também foi vítima desse ataque?

    — Ele não estava no dia do incidente, para ser mais precisa raramente ficava em casa, nunca tivemos muito contato. Entretanto, infelizmente veio a falecer alguns anos mais tarde.

    Vejo pela movimentação de suas mãos e pelo olhar taciturno que ela não se sente muito à vontade para falar sobre isso. Mas por que ao mesmo tempo faz questão de me contar tudo?

    — Sinto muito por fazê-la tocar em outra ferida.

    Nega com a cabeça e volta a falar.

    — Não precisas desculpar-te. Veja como se eu estivesse desabafando sobre minha vida com você. Na posição na qual estou, nunca tive muitas oportunidades de expor tais aflições de meu passado, então não é de todo ruim.

    Ainda assim me dói ver alguém a qual eu sempre considerei tão forte numa posição de tanta fragilidade. Bem, diamantes apesar de sua dureza e valor, não possuem tanta resiliência.

    — Aquele homem. Ele possuía alguma razão para atacá-los? Estaria atrás da maldição que a sua família carrega?

    — Não sei dizer. Entretanto, não duvido que estivesse buscando vingança contra meu tio. Ele foi uma pessoa horrível e muitas pessoas deviam guardar rancor dele mesmo depois da morte do próprio. Como ele já não pertencia ao mundo dos vivos, a sua família era o alvo perfeito para descontar as desavenças.

    — Ok, eu entendi em âmbitos gerais o que é e como este jogo funciona. Porém, você ainda não explicou o porquê de ter conjurado esta realidade.

    — Este é outro problema, eu não me lembro ao certo. O jogo no qual estamos inseridos está apresentando propriedades das quais sequer ouvi falar, descreveria como uma verdadeira anomalia. Dentre essas anomalias, está o pouco resquício de lembranças dos acontecimentos que antecederam ao jogo em um curto período de tempo.

    Anomalia… hein? É a exata mesma palavra que me veio à cabeça para descrever estes acontecimentos estranhos que venho notando.

    Por que todos estavam com uma tendência a retornar para a normalidade? Por que essa constante sensação de que isso tudo é tão normal e já vi isso acontecer antes? 

    Se o que ela está dizendo é verdade, provavelmente tudo está correlacionado.

    — Agora que você citou, eu estava me sentindo muito estranho pela manhã do primeiro dia. Minhas memórias de curto prazo estavam uma verdadeira bagunça, para falar a verdade mal me lembro do começo da manhã daquele dia.

    — Como tu és um jogador, deve ter sofrido dos mesmos efeitos que eu. Mas respondendo a tua pergunta, eu acredito piamente que conjurei o jogo porque foi necessário para me proteger. Tenho vagas lembranças, em formato de flashes, de cenas onde eu corria risco de vida. Acredito que alguém estava disparando contra mim — suspira — sempre que tento me lembrar desse evento, meu cérebro congela.

    Então teria sido legítima defesa. Saber disso deixa-me mais aliviado, mas ao mesmo tempo esta anomalia me preocupa.

    — Tudo bem, não precisa se esforçar tanto. Eu acredito em você, não penso que teria feito o que fez com más intenções.

    — A única coisa que posso afirmar é que o agressor possuía uma arma, logo deduzi que a garota estrangeira, por portar armas dentro do jogo, foi quem disparou em mim naquela manhã. Assim como a autora da magia negra que está bagunçado a mecânica original do ritual.

    No fim, tudo converge para Ailiss, não há como negar a culpa dela. Tentei me enganar o tempo todo, por algum motivo sinto um certo carinho por ela. Como a própria Mikoto mencionou, deve ser a anomalia gerada por Ailiss que me fez não vê-la como inimiga. De alguma forma ela pode ter manipulado minhas memórias numa tentativa de inserir-se como uma presença em meu passado. Quem sabe uma amiga de infância que nunca tive.

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