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    21h15

    Deixo o bloco principal, e sinto a gelada brisa noturna dissipar o meu calor corporal. Constato que logo começará a nevar. Em seguida dirijo-me até o esconderijo de Ailiss.

    Ainda muito confuso em relação ao nosso conflito com Mikoto, entro no antigo bloco e desço as escadarias para o porão, o qual cada vez aparenta estar mais caótico.

    Não consigo compreender como ela consegue suportar esta bagunça. Eu era a pessoa mais desorganizada que eu conhecia até pouco tempo atrás, mas nem mesmo eu consigo ficar confortável num ambiente desses. 

    E por incrível que pareça, ela conseguiu bagunçar ainda mais um local que serve apenas para despejar entulhos. Várias estantes estão caídas, o que dificulta ainda mais a locomoção, quem sabe ela tenha feito isto propositadamente.

    Caminho em meio aos entulhos até chegar à zona livre em que normalmente ficamos e então eu me deparo com uma cena familiar, algo que preferia não vivenciar duas vezes. O cano de uma arma em minha cabeça.

    — Ailiss, calma! Sou eu! — exclamo.

    — Você me assustou, Mistkerl, o que está fazendo por aqui neste horário? Pensei que fosse um lacaio da presidente metida — Ela pergunta.

    Eu que a assustei? É você que está apontando uma arma na minha cabeça. Reveja um pouco a situação, as coisas estão bem invertidas neste diálogo.

    — Vim até aqui porque se eu ficasse em algum dormitório provavelmente não acordaria nunca mais. Minha situação está delicada, além de eu estar vinculado a você, ainda há a presença de Mikoto por lá.

    Por falar nisso, agora que me toquei da situação de Shou, Manabu e Miyu. Não os vi mais desde que pedi ajuda a Keiko. Como Mikoto sabe que eles estão cooperando conosco, não podem ficar no bloco principal. Vou assumir que Keiko tenha dado um jeito de colocá-los num local seguro.

    Volto meu olhar a Ailiss e vejo que ainda está me encarando de mau humor.

    — Isso eu entendo, mas não respondeu minha pergunta — Ela retruca.

    Não respondi? Não entendo o que mais ela quer saber.

    — Por que você veio para cá especificamente? — complementa a pergunta vendo minha cara de desentendido. 

    — Hã? Obviamente por não ter outro lugar para me abrigar. Já lhe disse que não posso ficar nos dormitórios, então precisaria ou dormir no ginásio, ou no pátio. Porém, devido à baixa temperatura desta noite, torna-se inviável. Logo a única opção restante é o esconderijo.

    — Eu já entendi a sua justificativa, mas não me lembro de ter dado permissão para dormir por aqui — responde com sua habitual voz profundamente séria.

    Ela está realmente implicando com isso? Na verdade parece-me uma ação até mais estratégica, porque deste modo podemos revezar a guarda. A única explicação que me vem à mente para esta implicância sem sentido é…

    — Este porão é grande, eu durmo no canto diametralmente oposto ao seu. Qual o problema? Jamais pensei que você teria vergonha de dividir este espaço comigo.

    — Vergonha? Cale a boca — cerra os olhos — É só uma questão de privacidade, prefiro ter o meu espaço exclusivo enquanto durmo — suspira — Mas pensando bem, acho que não tenho escolha, como você também está sendo caçado pode ficar.

    Até que ela mudou de opinião mais fácil do que o habitual.

    — Obrigado por sua tamanha benevolência. Nem sei como agradecê-la.

    — Tá, agora só vá para o seu canto e não me perturbe mais. Caso contrário irá dormir embaixo da neve.

    Não precisa se preocupar, ficarei no mais completo silêncio. Sou a pessoa que mais preza pelo horário de dormir.

    — Aliás, aproveitando que estou aqui. Antes de eu ir dormir, poderia me explicar como antecipou que a Mikoto era a cabeça por trás de Takashi?

    — O vice-presidente bundão era realmente uma figura bem suspeita, e como comprovamos foi ele quem assassinou diretamente os estudantes durante os últimos dias. Mas havia algo que não batia, ele não me passava a impressão de saber usar magia negra. Então comecei a suspeitar que ele fosse apenas um assassino comum, o qual estava somente tirando vantagem deste ambiente, ou quem sabe estava trabalhando para o real jogador.

    Seria um tipo de habilidade sensorial?

    — Você é capaz de identificar os usuários de magia negra?

    — Mais ou menos. Não chega a ser nenhuma habilidade mágica, é apenas uma intuição adquirida após tantos anos caçando outros usuários. E somando ao fato da relação dele com a presidente metida e a discussão que tivemos anteriormente, eu estava desconfiada meio a meio que poderia ser qualquer um deles. Na verdade, já suspeitava dela há um bom tempo, e justamente por isso não quis dialogar com ela. 

    Nesta hora lembro-me mais uma vez do ocorrido à tarde e coro. Felizmente ela não está olhando para mim enquanto explica.

    Se ela estava dividida entre eles, então impediu que eu disparasse em Takashi por ter cinquenta por cento de chance de eu morrer? Parece ser uma realidade confortante demais para ser verdade, deve existir uma explicação mais plausível.

    — Naquela hora você interferiu no meu ataque porque, apesar da sua intuição apontar o contrário, foi porque não queria correr o risco do Takashi ser jogador?

    — Já não falei para esquecer que aquilo aconteceu? — lança um olhar mortal.

    Eu nem toquei no tema propriamente dito. Até mesmo tangenciar o assunto a deixa zangada. Aparentemente ela não tem mesmo o menor apreço pela minha pessoa.

    — Não precisamos entrar nos detalhes de como você me deteve. Apenas na motivação em si. É importante para eu entender isso do ponto de vista técnico.

    Na verdade, não é importante, apenas estou sendo imprudente em insistir neste assunto. Acho que não vai demorar muito para ela me estrangular.

    — Ok, ok. Espero que ao menos você pare de me perturbar depois de explicá-lo isto. A verdade é que apenas o parei, isso não foi uma decisão racional. Agi sem pensar, minhas pernas apenas se moveram e quando percebi estava impedindo que você gritasse. Agora, chega de perguntas.

    E como impediu… será que este é o motivo dela estar querendo evitar a minha presença? É uma situação bastante embaraçosa, no lugar dela provavelmente também iria querer evitar o assunto.

    — Aliás, foi de uma maneira bem peculiar e dolorosa. É estranho pensar que a minha primeira vez tenha sido tão violenta.

    — Vá à merda. Esperava o quê? Que eu fosse gentil? Deixe de ser fresco — altera-se e me encara com raiva — Não que soubesse como fazer isso também.

    Alguns segundos seria o bastante para abafar meu grito. Todavia, esta última frase dela está me intrigando.

    — Seria possível que tenha sido o seu… desculpe-me, combinamos que essa seria minha última pergunta sobre o caso. Esqueça, por favor — desisto de completar a sentença.

    Quase que a minha curiosidade me mata de novo. É outro tipo de pergunta que me renderia um nocaute. Onde eu estava com a cabeça para pensar que ela responderia?

    — Foi o meu primeiro também. Satisfeito? — fita-me com sua expressão sombria — Agora, esqueça essa bosta de assunto — desvia o olhar e afasta-se de mim.

    Tudo bem, eu já entendi o recado. 

    É muito difícil crer no que todas estas evidências estão apontando, minha baixa autoestima e meu pessimismo só podem assumir que seja um falso positivo. Mas o mesmo se repetiu em seguida, quando ela desistiu de desarmar Mikoto por conta de minha segurança.

    Com nossa conversa encerrada, cada um de nós deita-se em um canto da parte do piso na qual não há resíduos de entulhos ou cacos de vidro. Assim nos preparamos para dormir, pois precisamos estar descansados para a batalha do dia seguinte. 

    Todavia, uma nevasca veio bem a calhar para esfriar ainda mais o ambiente e com isso ela foi obrigada a fazer uma proposta indesejada.

    — Mistkerl, não há mais cobertores por aqui, pode usar a outra extremidade deste. Se você acordar doente, será ainda mais imprestável do que já é.

    Realmente, a temperatura despencou com esta nevasca.

    Ela então joga no chão um longo cobertor. Realmente, só daria para ser usado por uma pessoa apenas se ela se enrolasse nele. Imagino que isso seja útil em uma missão na Sibéria ou na Antártida.

    — Sem problemas, é apenas uma questão de termodinâmica — digo enquanto me cubro.

    Ficamos deitados cada um para um lado por mais algum tempo em silêncio, no qual estou me esforçando para pegar no sono. Porém, estou me sentindo levemente incomodado com a presença dela, assim não consigo concentrar-me direito.

    — Não consegue dormir? — Ela pergunta.

    Ela querendo puxar assunto? Assim do nada? Será que ficou resfriada? Ou pior, foi abduzida e trocada por um clone? Caramba, em situações tensas como esta, começo a raciocinar de modo similar àqueles três patetas.

    — É difícil não ficar nervoso sabendo que amanhã é a nossa última chance. Sinceramente não sei mais o que esperar…

    — Você tem a mim como aliada, não há o porquê ficar assustado. Chutarei a bunda de todos eles amanhã.

    — Era o que eu esperava que acontecesse hoje à tarde. Por que você não desarmou a Mikoto naquela hora? Estávamos com o jogo praticamente ganho.

    — Eu não sei. Também não estava agindo de modo racional naquela hora, honestamente não quero falar sobre isso.

    Imaginei que ela não iria querer abrir o jogo e me explicar o que está acontecendo, mas pensei que me retrucaria de modo mais rude.

    — Tudo bem.

    — Vendo o quão bem equipada está, eu estava me perguntando… No seu trabalho, você já precisou operar em ambientes assim?

    — Às vezes precisei passar por frio ou calor extremos. Mas tive um instrutor muito chato e preocupado com minha saúde, consequentemente estava sempre bem equipada. Acho que ele iria gostar de você, sempre tentava cientificar tudo, até mesmo a própria magia.

    — Pelo pouco que você descreveu, parecia ser um cara bem sensato.

    — Por outro lado, ele era tão irritante quanto você. Mas tinha lá suas qualidades. Infelizmente morreu.

    Ela é bem direta ao tocar em acontecimentos desta natureza. Talvez seja por estar acostumada com isso, a morte ronda o seu dia a dia e assim este assunto não é um tabu que exige eufemismos.

    Não sei como prosseguir a conversa. Então mais uma vez nos calamos. Em seguida, fecho os olhos e espero pelo meu tão aguardado apagar.

    Droga, eu sempre durmo cedo. Hoje, porque ela está ao meu lado não consigo. A presença dela está me deixando muito nervoso e pensativo. Por mais que sua personalidade seja dissonante, ela é uma garota, e linda de morrer por sinal.

    — Ei, Mistkerl. Está acordado? — surpreendo-me com ela sussurrando

    — Sim, estou. O que foi?

    O que será desta vez? É a segunda vez que ela inicia uma conversa.

    — Poderia responder-me uma pergunta com sinceridade?

    — Claro, pode falar — viro-me para o seu lado.

    — Diga-me, foi tão ruim assim? — fita-me nos olhos.

    Quê? Ela realmente está puxando este assunto de novo? Foi ela quem decretou como tópico encerrado.

    — Ailiss, por que você está trazendo de novo esta discussão? Achei que não queria mais falar sobre isto.

    — Já se esqueceu do nosso acordo? As regras que eu estipulo aplicam-se apenas a você. Não faria sentido eu limitar minhas próprias ações.

    Como devo respondê-la? Se eu apontar algum ponto negativo, provavelmente ela se zangará. Caso eu omita isso, é bem possível que ela também perceba que estou mentindo e fique mais irritada ainda.

    Tendo em vista que a própria perguntou, acho que devo ser franco com ela.

    — A verdade é que eu não tenho como comparar, sendo aquela a minha única amostra. Entretanto, julgando como uma experiência isolada, pareceu-me apenas que você foi muito rude.

    — Compreendo, então realmente foi ruim — responde inexpressiva.

    Não deduza as coisas desta maneira. 

    Porém ela não parece ter ficado triste ou irritada de qualquer jeito.

    — Não foi isso o que eu disse.

    — Então me responda o seguinte: Excluindo as consequências referentes ao jogo, se você pudesse ter escolhido entre eu ter feito aquilo ou não, o que preferia?

    Apesar de suas expressões não demonstrarem nada, isto parece estar realmente incomodando ela. A ponto de estar tão engajada a esta conversa.

    — Do jeito que eu sou antissocial, provavelmente nunca passaria por esta experiência de outra forma. Em todo caso, fico contente que tenha sido com uma pessoa que admiro como você.

    Céus, por que estou me abrindo assim? Quero me esconder de vergonha. Não devo estar batendo muito bem da cabeça. Eu quero sumir… 

    Ela ergue-se, em seguida aproxima-se de mim sentando sobre meu tórax e segura meus pulsos contra o chão imobilizando-me por completo.

    — Ei me solte, o que você está fazendo?! Ficou maluca?! — tento reagir, mas não consigo.

    — Sabe, eu quero tentar de novo — diz, aproximando-se por cima de meu rosto.

    — Espe- — tento falar para ela parar.

    Então, com seus longos e claros fios de cabelo escoando pela minha face, mais uma vez Ailiss cola violentamente seus lábios aos meus.

    De novo? Você está fazendo isso comigo de novo? Por quê? 

    Bem, não importa…  

    Episódios como este não devem ser questionados.

    Observo os seus afiados olhos vermelhos fechando-se gradualmente, e para usufruir o máximo desta experiência a imito. Desta forma, me rendo mais uma vez, decido apenas desfrutar do momento que pensei nunca se repetiria. A princípio não está muito diferente de hoje à tarde, a agressividade permanece a mesma.

    Aos poucos o contato de nossas línguas se torna cada vez mais prazeroso, é notável que nós dois, ainda inexperientes, deveríamos estar pegando a prática lentamente. Todavia, na verdade parece que estou apenas reaprendendo algo que estava oculto em minha mente. Algo que parece que fazemos há milênios.

    Qual a real conexão entre nós? É uma resposta que talvez eu nunca saberei.

    A intensidade agressiva de como ela me beija jamais cessa, acho que seja uma característica dela que felizmente não deve sumir, pois estou adorando este aspecto.

    Estou totalmente preso em seu cheiro. A harmonia é tamanha que parece que nascemos exclusivamente para este momento. Acredito que o déjà vu que sentimos ao nos conhecer não foi fruto deste jogo, na verdade era o universo avisando-me de que encontrei o propósito de ter vivido por tantos anos sem rumo.

    Ela solta uma das minhas mãos e, ao contrário dela, aproveito para acariciar delicadamente o seu rosto e seus lindos cabelos. Com meu coração explodindo de emoção e minhas costas se arqueando de prazer, puxo-a mais forte contra mim para beijá-la ainda mais intensamente.

    A partir deste momento tenho certeza absoluta do quão especial ela é para mim.

    Ailiss solta a minha outra mão e então cessamos o beijo bruscamente. 

    Estou tão ofegante que mal consigo falar, apenas fito o seu rosto entre os fios de cabelo que descem até mim. Ailiss também com a respiração alterada despenca para o lado e fica encostada com sua cabeça em meu ombro direito.

    — Não me peça para esquecer isso. Pois definitivamente não vou — comento.

    — É… Você tem razão. Acho que desta vez não dá mesmo para esquecer.

    Em seguida, cansados e sem saber o que comentar, abraçamo-nos para nos abrigar do frio. Apenas com o calor corporal dela já é o suficiente para que eu fique totalmente aquecido.

    Por fim, fechamos os olhos e dormimos com os corpos e rostos colados um ao outro.

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