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    19h22

    Acabou. 

    Finalmente este pesadelo teve fim.

    Já é possível sair da escola, como muitos dos sobreviventes estão fazendo. Apesar dos pesares, não foi um incidente de proporções tão graves tratando-se do número de mortes. Contabilizando agora Manabu e Mikoto, apenas cerca de quinze por cento dos estudantes foram mortos. 

    Na verdade, o número mais significativo foi de feridos, justamente pela rebelião catalisada por Keiko. 

    O que dizer sobre Keiko? Bem, ela foi a única da alta cúpula do conselho estudantil que conseguiu sobreviver ao jogo, tendo apenas machucado suas mãos. Ela já está sendo atendida, o seu ferimento nas mãos foi bastante feio, no entanto nada que a faria correr risco de vida. 

    Talvez o seu maior ferimento não tenha sido na carne, mas no ego. Pois sua vingança acabou sendo um grande fracasso e revogada por Manabu.

    — Manabu-kun! Por quê?! Por que ele teve que morrer?! Justo desta forma… ainda havia tantas coisas que queria lhe dizer! — chora desesperadamente Miyu sobre o corpo dele.

    — Miyu-chan. Ele morreu para te salvar, acho que ele não gostaria de vê-la neste estado — Shou tenta confortá-la.

    — Não importa! Eu o amava! Ao menos queria ter me confessado antes… — continua aos prantos.

    — O Manabu nunca me disse explicitamente se gostava de alguém, mas sendo sincero, não acho que ele teria feito o que fez se não sentisse o mesmo — a abraça.

    Miyu agarra Shou enquanto cai ainda mais no choro.

    Acho que neste momento, para mim e para ela, só resta a aceitação. É algo que podemos superar em conjunto. Também precisarei me conformar com a morte de Mikoto. 

    Não sou um ser digno de pena? Meu melhor amigo morreu e não consigo demonstrar um pingo de consideração por ele. Em vez de estar junto de Shou e Miyu, fiz questão de acompanhar o corpo de Mikoto. Estou lamentando sobre o cadáver de uma inimiga, a qual foi a responsável pela morte de Manabu.

    Ambulâncias, caminhões de bombeiros e viaturas policiais estão paradas à frente da escola, ao mesmo tempo em que homens fardados entram no pátio carregando feridos em macas. Olho para meu celular e vejo a data. Sete de fevereiro. Estamos no mesmo dia em que teve início, o que significa que ficamos presos na escola em uma dilatação temporal e foi apenas até a noite.

    Sinto uma leve pancada em minha cabeça. Olho para cima e vejo o seu querido e sombrio rosto.

    — Ailiss? — pergunto.

    Ela não responde, apenas fita o cadáver da presidente que carreguei até o pátio. Possivelmente deve estar frustrada por eu ter tomado uma ação tão estúpida.

    — Eu sei que é estranho, sei que ela fez coisas terríveis contra todos nós, porém senti uma necessidade inexplicável de tirar o corpo dela de lá. Acha que eu possa estar perdendo minha sanidade mental em me compadecer com uma inimiga? — continuo.

    — Talvez nós dois estejamos. Em todo caso, se você não fizesse eu faria, pois ainda preciso terminar o meu trabalho — Ela responde.

    — E o que seria isso?

    — Lembra que eu te falei sobre esta habilidade ser herdada? Há um jeito de interromper isso. Bem, acho que seria perda de tempo explicar os detalhes, porque de qualquer forma logo você verá em primeira mão como funciona.

    — Tudo bem. E a respeito do pessoal saindo da escola? Não acarretará em problemas haver tantas testemunhas de um evento sobrenatural? Imagino que será praticamente impossível a mídia deixar de noticiar algo de tamanha proporção. A organização para que você trabalha não fará nada a respeito?

    — Isso não é um problema. Os participantes passivos terão as suas memórias apagadas automaticamente, esta é uma das propriedades inerentes a esta magia negr- — Ailiss para sua explicação e me alerta — Mistkerl, veja isso.

    Ela aponta para o corpo de Mikoto. Algo estranho sai do peito dela. Uma luz? É de uma cor que nunca havia visto antes, aparentemente fora do espectro de luz visível, é como se eu pudesse enxergar uma nova frequência de ondas eletromagnéticas. 

    A geometria deste objeto luminoso parece ser uma esfera, mas ao mesmo tempo um tesseract. Passa-me a sensação de ser algo desconhecido e de déjà vu simultaneamente. É a materialização da contradição, um paradoxo inserido deliberadamente em nosso universo.

    — Mas o que diabos é isso? Como algo assim pode existir?

    — As almas de todos que morreram durante o jogo estão dentro disso, ao final de cada ritual a Morte vem alimentar-se de suas oferendas. Este estranho brilho é o que define um portador. Como Mikoto está morta, depois da Morte se alimentar, ela levará o fragmento para um novo hospedeiro.

    Essa fonte de luz começa a deslocar-se para o meio do pátio adentrando uma região em que as chamas alaranjadas do incêndio mal conseguem iluminar. Ailiss a segue, eu levanto-me e faço o mesmo.

    Afastamo-nos cada vez mais em direção à escuridão do pátio.

    Espere o que é isso? Mais uma vez, posso vislumbrar esta imagem terrível. Está parada em meio à escuridão, nos observando atentamente.

    — Não se aproxime mais, pode ser perigoso ficar muito perto dela — alerta Ailiss.

    A luz desloca-se até as proximidades da entidade que nos fita e começa a ser sugada pela presença da Morte. É como uma estrela perdendo matéria gradualmente para um buraco negro. 

    Está ficando cada vez menor. 

    Menor. Continua esvaziando seu brilho.

    Parou. 

    Tornou-se uma partícula minúscula irradiando aquela frequência de “luz”.

    Ailiss puxa a sua arma com silenciador e dispara no fragmento. Não houve som de disparo e nem de colisão. No mais completo silêncio a partícula desintegra-se como uma minúscula supernova espalhando fragmentos quase microscópicos por todo o recinto.

    Ela conseguiu?

    Depois do disparo, a Morte começa a se tornar cada vez mais translúcida até que desaparece, finalizando então a nossa participação no jogo.

    — Você a destruiu? Significa o fim desta ramificação da maldição? — pergunto

    — Sim, digamos que estas armas foram encantadas para conseguir exorcizar magias negras mais fracas. Logo após a refeição da Morte, ela está fraca o suficiente para que eu possa quebrá-la e assim encerro meu trabalho.

    — E agora? Como acabou o seu trabalho, pretende ir embora do Japão?

    — Provavelmente, há outros casos como este pelo mundo e preciso destruir todos os fragmentos para concluir a minha vingança. 

    Na verdade, não esperava uma resposta diferente. Mesmo assim não há como não ficar abatido, mal consigo crer que me apeguei a ela tão rapidamente.

    — Entendo.

    — Então… gostaria de propor que você voltasse comigo para a Europa e se tornasse meu companheiro — vira-se para mim — E a propósito, como já deve saber, não aceitarei um “não” como resposta.

    Mesmo em meio ao caos que acabamos de vivenciar, o que martelava em minha mente era a possibilidade de não poder mais vê-la. Apesar das complicações que a sua proposta me acarretaria, estas palavras soam-me apenas como um grande alívio.

    — Não posso recusar? Colocado desta maneira, não se trata nem de uma proposta, mas de uma intimação.

    Minhas palavras dizem uma coisa, mas o que sinto é o completo oposto. Sequer cogitaria recusar o seu pedido.

    — Pode ser, use o termo que preferir.

    — Em todo caso, quando você fala em companheiro significa que devo me juntar à sua organização?

    — Exato, com uma recomendação minha, o seu emprego está garantido. Espere, você não está insinuando que poderia ter falado companheiro com outro sentido? — encara-me.

    — Isso nem passou pela minha cabeça.

    A única coisa que passou foi uma premonição de quão estressante seria trabalhar neste ramo. Sou o tipo de pessoa que prefere viver uma vida tranquila e monótona.

    — Pensando bem até que não é uma má ideia — fala voltando o olhar para o além — Está decidido. Mistkerl, a partir de hoje você será o meu companheiro em todos os sentidos.

    Quê? Ela não pode estar falando seriamente sendo tão incisiva.

    — Isso é sério? — arregalo os olhos.

    — E eu sou lá de brincar? — sua voz volta a ficar sombria.

    — Desculpe-me, você não é. Acho que a minha opinião sobre o caso não vai mudar o seu decreto. Mas poderia parar de me chamar de Mistkerl? Aqui até eu relevo, entretanto seria problemático ser chamado assim em público na Alemanha.

    — Compreendo o seu receio. Por mim tudo bem, prefere que eu o chame de Johann ou de Liebling? — aproxima-se de mim e sorri.

    “Liebling?” Quê? Ela jamais trataria alguém com um adjetivo positivo.

    — Brincadeirinha — esconde o sorriso e diz ao mesmo tempo em que me golpeia fortemente na barriga.

    — Por que fez isso? — pergunto caído e agonizando no chão.

    — Você deu a entender que eu era muito séria, então decidi brincar um pouco contigo.

    — Céus, estou falando do soco… Isso é lá brincadeira? Qual a necessidade de continuar com isso?  — levanto-me lentamente ainda atordoado.

    — Sabe, eu cresci sem interagir com conceitos de romance. Todos os livros que li a partir da minha pré-adolescência eram livros técnicos. Então essa é a minha única maneira de dizer “Ich liebe dich” — olha-me nos olhos e sorri de novo.

    Por que eu ainda pergunto? Espero que meu corpo crie resistência e se acostume logo com tantas pancadas de força descomunal. Porque minha mente já se vendeu a ela há muito tempo. Ver o seu rosto desta forma é uma troca mais que justa a toda a tortura que irei receber.

    — Não temos tempo a perder. Vamos — diz e puxa-me pela gravata para a saída da escola.

    Meus dias tranquilos, todavia sem coloração nenhuma se foram para sempre. Primeiramente tive minha vida pintada pelo sangue do desespero dentro desse maldito jogo, e agora terei que experimentar disso frequentemente daqui em diante. Mas a ideia de viver por Ailiss e protegê-la enquanto cumpre seu objetivo traz-me uma incrível sensação de estar vivo.

    Epílogo

    Fim.

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