Capítulo 10 – Agora é minha vez
Do lado de fora da Matriz, Kai havia desistido de procurá-lo. A fila estava diminuindo a cada segundo, e restava apenas um à sua frente. O silêncio à sua volta demonstrava a indecisão dos que ainda não ousavam encarar o portal.
Ele respirou fundo. Não posso mais continuar adiando. refletiu, sentindo a urgência invisível da situação. Olhou para frente e sussurrou:
“Roy, não sei o que está aprontando, muito menos o que o destino reservou para mim, mas a partir deste ponto, não existirá mais nenhuma dívida entre nós. Espero que tenha percebido pelo menos isso.” Com a mente mais leve, ele caminhou em direção à abertura. Deu os últimos passos até a entrada do portal. Ao tocar o limiar, parou por um breve instante. Vislumbrando alguns momentos do seu passado.
“Vozinha… independente de ter sido um sonho ou não, nunca vou esquecer todos os gestos que a senhora fez por mim. Me guie, de onde estiver. Porque agora… é minha vez.” A abertura se expandiu em resposta, num movimento ágil, o portal avançou e o envolveu por completo. Em poucos segundos, sua forma Etherya desapareceu da visão dos demais.
…
Dentro da Matriz, ele surgiu flutuando.
O tempo parecia ter perdido o sentido, tudo ao redor era apenas um espaço vazio, preenchido por uma névoa densa que girava lentamente pela câmara, carregada de energia e mistério. As esferas translúcidas começaram a se mover. O padrão era o mesmo de sempre.
“Olá, você é aquela criança com uma grande vontade de obter um objetivo!” disse o Seletor. “Estive lhe observando há algum tempo… e demonstrou uma postura admirável ao descobrir sobre a realidade. Diferente da maioria, como deve ter notado. Eles reagem com desconfiança, negação… e, por fim, colapsam diante da verdade. Um padrão lamentavelmente comum, repetido ano após ano.” comentou, deixando escapar um leve traço de desaprovação.
“Sua personalidade também não é nada comum criança. Não possui um padrão definido. Pelo contrário… é maleável até certo ponto, e se adapta com facilidade às situações.” observou, comentando algumas de suas análises.
“Mas devo alertá-lo… essa mesma flexibilidade torna fácil se perder e seguir o caminho da corrupção.”
Kai, que até então permaneceu em silêncio para evitar fazer qualquer comentário desnecessário, exclamou:
“Corrupção!?”
“Não cabe a mim explicar nada além disso. Agora, iniciarei o escaneamento do seu núcleo.” A pausa que se seguiu pareceu carregar mais do que apenas protocolo. Havia uma leve expectativa. “Espero que não perca sua determinação após encontrar o seu primeiro obstáculo.”
“Confesso que fazia muito tempo que não me sentia motivado… e, admito. Estou um pouco ansioso. Mas com grandes expectativas pelo resultado.” Kai comentou, apesar das palavras, não demonstrou nenhuma expressão. Já por dentro, havia um dilema.
Sempre senti que poderia fazer mais do que normalmente faço. Mas nunca consigo… como se algo me bloqueasse, me impedindo de evoluir. Por mais que eu tente, por mais que me esforce, nunca passo de um certo maldito limite. Mas agora… talvez eu descubra o que sempre me faltou. ponderou, enquanto observava os fragmentos se aproximarem.
Como nos processos anteriores, as esferas de energia começaram a orbitar sua forma Etherya. Ele olhou o fenômeno com atenção, mas, internamente, a expectativa crescia a cada segundo, como se algo estivesse prestes a ser confirmado. Não pela Matriz… mas por ele mesmo.
Os fragmentos de herança deram um verdadeiro espetáculo ao circularem Kai em perfeita sincronia, como se executassem uma dança antiga e precisa.
Entretanto, mal haviam começado… e já era possível notar algo estranho.
Uma a uma, suas órbitas perderam o ritmo, como se tivessem sido surpreendidas por uma força invisível. E então, sem qualquer motivo aparente, recuaram lentamente aos seus pontos de origem.
“Estranho…” murmurou a Matriz.
Por um breve momento, senti como se estivessem com receio de se conectar a ele. ponderou, analisando a situação com mais cautela. “Isso nunca havia acontecido antes!” comentou, dirigindo-se ao recém-desperto.
Kai franziu o cenho ao ouvir seus resmungos. O Seletor, sentindo sua aura oscilar, comentou:
“Foi por um instante… mas tive uma vaga impressão de que houve uma interferência.” Explicou a Matriz, embora a ideia do que acabara de dizer lhe parecesse ridícula assim que as palavras saíram.
Impossível… quem poderia interferir no meu julgamento? Não existe ninguém que possa invadir este lugar, “Hoikuen”. Esta sempre foi a lei deste universo. pensou, agora com um traço de dúvida, enquanto buscava uma explicação.
“E agora? Não vou poder continuar?” perguntou Kai. A situação repentina começou a gerar aquele gosto amargo… o mesmo de tantas outras decepções.
A Matriz não respondeu.
Mas também não havia desistido.
Tentou mais uma vez, e, desta vez, liberou toda a sua aura. A estrutura de energia ao redor vibrou levemente, agora ele pessoalmente estava controlando o processo. E ao olhar para o núcleo de Kai ficou confuso.
Como? Nenhum dado oculto, traço residual ou herança. Pensou, consternado com o resultado. Não pode ser! Mas ele ouviu a voz de Etheryum antes de acordar. Isso não está certo. Tenho que verificar pela última vez. Então, como se concentrasse cada fragmento de sua consciência em uma única e definitiva tentativa, o Seletor explodiu com sua aura, direcionando toda a energia para o núcleo do desperto.
“Ouf”
Kai, alheio aos pensamentos da Matriz, soltou um gemido repentino ao sentir uma forte fisgada, causada pela verificação forçada do Seletor.
Uma fissura se formou. Pequena, quase imperceptível, mas suficiente para atravessar a estranha energia que envolvia o núcleo de Kai. O que encontrou lá dentro… deixou a Matriz incrédula.
“Nada” sussurrou, encarando apenas o vazio absoluto.
Mesmo assim… é intrigante. ponderou o Seletor. Ele ouviu a voz de Etheryum antes de despertar. E, ainda assim, seu núcleo permanece prematuro… Sem outra escolha, deu a melhor resposta que pôde ao jovem desperto.
“Finalizei a verificação do seu núcleo. Você não estava totalmente pronto. Suas características… não despertaram como deveriam.” Após um breve instante em que se encararam em silêncio, a Matriz resumiu: “Em outras palavras… por algum motivo, você acordou antes da hora.”
Kai permaneceu calado. Sua aura não vacilou, continuava estável e serena. E quando finalmente falou, sua voz saiu tranquila, como se o resultado não tivesse qualquer efeito sobre ele.
“E agora… o que vai acontecer comigo? Eu serei descartado?” perguntou, sem hesitar. Sua voz firme não vacilou nem por um instante. Era apenas uma dúvida sincera sobre o que seria de seu futuro.
Era difícil dizer se aquilo realmente não o afetava… ou se apenas dominava bem a arte de esconder os sentimentos.
“Não. Sem informações ou características… você receberá a linhagem humano, sem nenhum caminho de herança para seguir.” respondeu a Matriz, sem emoção alguma.
Mesmo mantendo o tom estável, havia algo diferente em sua voz. Um traço quase imperceptível de desapontamento escorregava por entre as palavras, sutil demais para ser reconhecido facilmente, mas presente. Depois de tudo o que Kai havia demonstrado… a Matriz Seletora, contra toda lógica, havia criado uma pequena expectativa. Era puramente funcional, motivado pela possibilidade de um candidato promissor que pudesse auxiliar na proteção do universo. Nada mais. Nada menos.
Kai não respondeu. Tentou não demonstrar nenhuma reação. Não houve grito. Nem negação. Apenas silêncio. Manteve a postura. Ombros firmes, olhar neutro. Mas, por dentro, um pequeno grão de decepção havia se formado.
Então é isso? pensou o jovem desperto, enquanto uma sensação desconfortável crescia devagar em seu peito. Acordei de uma ilusão… e continuo sendo o mesmo de sempre. Todos estão recebendo algo… e eu continuo preso a este maldito limite. Isso só pode ser alguma maldição!
A Matriz não precisou de palavras para perceber o que passava em sua mente.
“Você está enganado, criança.” disse o Seletor, captando a aura que fluía dele. “Cerca de setenta e cinco por cento dos recém-acordados inicia sua jornada sem receber uma herança. Mas isso não é um fracasso. Nem o fim.” Houve uma breve pausa, como se a Matriz estivesse avaliando a melhor forma de continuar.
“O universo é vasto. Muitos vivem como cidadãos comuns, encontrando propósito em vidas pacíficas ou em funções especializadas como construtores, guias, cozinheiros…” explicou, como se essa enumeração, embora correta, não fizesse parte do que ele realmente esperava do desperto à sua frente.
“Mas… se é romper os seus limites que deseja… há outro caminho.”
APOIE O PROJETO ETHERYUM
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.