A passagem do tempo era diferente dentro da Matriz. Todos eram avaliados em paralelo e, assim que o primeiro foi enviado ao seu destino, os demais partiram em sequência, como um efeito dominó. Já aqueles que não ousaram entrar na fila perderam a chance de obter uma herançae foram enviados com a linhagem padrão de Hoikuen: humano.

    Para cada desperto, o processo de teletransporte consumiu de um a dois minutos, oscilando de acordo com a distância até o destino. Kai, ainda inconsciente, já havia excedido o intervalo em quatro minutos, arrastado pelo fluxo do espaço-tempo. A saída, porém, estava logo à frente. Seu corpo atravessou a barreira distorcida e foi arremessado para fora do portal, contra o solo, rolando alguns centímetros antes de parar. O impacto o despertou. Desorientado, precisou de apenas dois segundos para entender o que havia acontecido.

    “Aiii…” resmungou, a voz rouca e alterada. Seus músculos convulsionavam, como se mil agulhas estivessem fincadas em cada fibra do seu corpo. “Que recepção mais calorosa.” resmungou, enquanto o peito subia e descia, tentando recuperar o ar. “Ou alguém não vai com a minha cara, ou gastei toda a minha sorte em alguma vida passada!” reclamou, ao sentir seu humor azedar. Era uma sequência de desastre após o outro.

    Ele permaneceu alguns minutos deitado, tentando se recuperar e reorganizar os pensamentos. Por fim, apoiou-se nos cotovelos e ergueu-se lentamente, massageando algumas regiões doloridas.

    O ar era seco, quase áspero, e o gosto metálico do próprio sangue permeava sua boca. Olhou ao redor e percebeu que estava sobre um solo rachado e opaco, que se estendia até onde a vista alcançava. Nenhum sinal de vida; apenas o assobio constante de um vento árido.

    Finalmente, estou do lado de fora pensou, observando o ambiente. “Este aqui seria tal lugar onde começa a minha jornada?” disse, voltando o olhar para a frente. “Sinceramente, esperava algo completamente diferente.”

    A paisagem estava em completa decadência. Árvores secas inclinavam-se sobre o solo; folhas mortas cobriam o chão; e o vento arrastava poeira em pequenas espirais. A vida parecia ter abandonado toda a região.

    “Falando nisso, cadê os guardas que deveriam estar de vigia no portal, prontos para me auxiliar?” perguntou, virando-se para trás. “Será que o Seletor quis me pregar uma peça?” Mas, antes que pudesse analisar melhor a questão, uma mudança e o obrigou a desviar o foco da questão.

    Algo diferente agitava-se dentro de seu corpo: um chamado irresistível, uma força que o induzia a seguir numa direção específica. Sentiu que resistir seria como lutar contra a maré. Era um impulso mais forte do que imaginava. Sem compreender a origem daquele chamado, seus pés começaram a se mover. A trilha era totalmente desconhecida, e ele seguiu guiado apenas por uma intuição.

    Mal havia iniciado o seu trajeto, e o suor escorria pelo rosto em grossas gotas, enquanto avançava pela vegetação árida e inóspita. A cada passo, as baforadas de ar quente e a sensação de sufocamento aumentavam. O silêncio era ensurdecedor, quebrado apenas pelo crepitar de galhos secos sob seus pés. Nada crescia naquela terra amaldiçoada; apenas o sol reinava absoluto.

    “Mas que calor…” reclamou, colocando a língua para fora. O sol castigava sua pele, e a sede era uma constante companheira. Cada músculo de seu corpo pedia descanso, sua determinação era a única coisa que o mantinha em movimento.

    No horizonte, em meio aquela vastidão árida, uma mancha escura se materializou, chamando sua atenção, a princípio pensou ser apenas uma irregularidade no terreno, uma miragem distorcida pelo calor. Mas mesmo assim seguyiu em sua direção.

    “Cof, cof, cof…” A poeira ressecava sua garganta que ardia como fogo.

    “Fui enviado para uma armadilha infernal.” Kai exclamou. As palavras da Matriz ecoavam em sua mente, como uma zombaria cruel. A raiva começou a borbulhar dentro dele.

    “Não desista na primeira dificuldade. Vai ter um treinamento… aham, estou vendo o treinamento! Ele só esqueceu de cometar se eu seria bem-passado ou malpassado, neste inferno.” exclamou, uma ondulação de calor, quase invisível, pairava acima de sua cabeça, incerto se vinha das suas emoções ou do próprio ambiente.

    À medida que se aproximava da miragem, as irregularidades do terreno tornavam-se mais nítidas, revelando uma fenda que parecia ter sido rasgada por forças invisíveis, uma extensa ferida aberta no solo, larga o bastante para impedi-lo de ver o outro lado.

    “O que será que aconteceu para o solo ter sido mutilado desse jeito?” Um sentimento sinistro quis vir à tona, mas ele preferiu acreditar que fora algo natural. 

    Não me resta muita escolha além de atravessar este desfiladeiro pensou, olhando de um lado a outro sem ver o fim.

    Desceu a inclinação íngreme com cuidado para não cair. Levou cerca de trinta minutos para alcançar o fundo e mais uma hora para escalar até o topo do outro lado. No fim, sentiu que todo o esforço valera a pena ao vislumbrar o que havia além: uma floresta verdejante que o fez acelerar o passo. A cada segundo, a expectativa crescia, e um impulso de ânimo percorria seu corpo. “Eu não quero perder mais um minuto sequer nesta zona morta.”

    Correu para dentro da floresta e se jogou no chão. A vegetação rasteira sob a copa das árvores se estendia amplamente, com diferentes texturas e tons de verde, embora alguns trechos fossem densamente fechados. Kai deixou-se cair naquele tapete natural, fechou os olhos e sentiu a grama macia envolvê-lo como um abraço. “Como é bom sentir esse ar fresco e essa sombra.” exclamou, abrindo e fechando os braços, enquanto cada fibra de seu corpo relaxava.

    Só então reparou ao redor e percebeu que não eram árvores comuns, e sim gigantes que se erguiam por mais de cinquenta metros. Suas copas imensas entrelaçavam-se, criando um teto natural que filtrava a luz solar e devolvia leves tons esverdeados. Folhas enormes, lustrosas e vibrantes adornavam os galhos, enquanto, no solo, um labirinto de raízes monumentais formava um tapete, quase pequenas ilhas de madeira entrelaçada.

    “Até o ar aqui parece diferente… Como isso é possível? Dois lugares tão distintos, um ao lado do outro!?” disse Kai, contemplando a fronteira que separava as duas paisagens.

    Foi então que captou um som sutil, aquele que ansiava ouvir havia algum tempo. Virou-se para o coração da floresta. “Água!” disse. Sem perder tempo, correu, afastando alguns arbustos, e avistou uma pequena bica escorrendo pela parede, provavelmente de uma nascente próxima. Correu e se ajoelhou à beira do pequeno poço, logo abaixo da cachoeira, pronto para matar a sede. 

    O que ele não sabia era que, entre as árvores, uma figura oculta observava cada movimento. Sem que percebesse, aquela presença o acompanhava desde o instante em que ele atravessara seus domínios. Um par de olhos sombrios, imerso na penumbra, vigiava o intruso.

    O sol começava a declinar, prestes a tingir o céu de laranja e rosa. Satisfeito, Kai se preparou para levantar, pronto para retomar a jornada. Mas, antes que pudesse se mover, congelou no lugar.

    A floresta, antes acolhedora, agora parecia mais sombria. Seus sentidos entraram em alerta máximo; algo não estava certo. Com um mau pressentimento, virou-se lentamente. Seus olhos varreram as sombras em busca da origem daquela sensação.

    “Quem esta ai?” gritou, mas ninguém respondeu.

    A folhagem se agitou levemente, gerando um eco sutil pela floresta. Um calafrio percorrer sua espinha. A sensação foi tão intensa que todos os seus pelos se arrepiaram. Sem hesitar, virou-se e disparou. As pernas reagiram antes do pensamento; quando percebeu, já corria como um louco, com a adrenalina martelando nas veias.

    Momentos após sua partida, uma sombra gigantesca deslizau pela floresta, chegando ao local. Arrastou-se lentamente pelo chão, seus contornos se moviam como se estivesse respirando, abrindo a mata e deixando um rastro por onde passava.

    Kai corria como se o diabo o perseguisse. Seus pulmões queimavam, suas pernas pesavam como chumbo e seu coração já havia subido para a garganta há muito tempo. No entanto, ele não ousava parar. A cada passo, a certeza de que algo terrível o perseguia o impulsionava adiante. 

    O que diabos foi isso? Eu me senti pressionado, um vazio interno e aquele calafrio. pensou, ao sentir algo como um sexto sentido. Então, uma hipótese se formou em sua mente. 

    Será que é isso que chamam de intenção assassina? Por um instante, o que senti foi uma intenção de matar. Então… isso quer dizer que havia alguém me vigiando?

    Depois de correr por uma boa distância, lutando contra a própria vontade de olhar para trás, no fim não resistiu: virou-se para espiar e, para sua surpresa, não havia nada.

    “Ué… Que estranho. Tinha certeza que havia algo me seguindo. Será que foi apenas a minha imaginação?” disse, recuando alguns passos até topar em algo.

    Ao se virar para ver no que havia batido, os olhos de Kai se arregalaram. Um corpo escuro atravessava a trilha, bloqueando a passagem. As escamas, negras e foscas, devolviam apenas um lampejo da luz filtrada pelas copas. Mais adiante, a cabeça erguida era maior do que o seu próprio tamanho, a língua bifurcada sondando o ar em intervalos curtos. Os olhos, de tom âmbar, acompanhava fixamente cada movimento dele.

    Kai recuou um passo por instinto. Quando transferiu o peso para a perna de trás, a cauda do animal surgiu por trás da vegetação e prendeu seu tornozelo, firme como um laço. Em seguida, num rápido movimento, o tronco envolveu-lhe os joelhos e, logo depois, a cintura, sem lhe dar qualquer chance de reação.

    Sentindo o desespero crescer, tentou se soltar com os braços, mas um novo anel de músculos fechou-se à altura do tórax, comprimindo as costelas. A cada expiração, o aperto aumentava, e a inspiração seguinte ficava mais curta. 

    Não pode ser… vou morrer assim. pensou, enquanto a consciência vacilava e a visão escurecia pelas bordas.


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