Roy passava pelo túnel do espaço-tempo. O percurso não ofereceu a mesma resistência devastadora que tragara Kai, mas nem por isso foi suave. Seu corpo era guiado por pequenas sacudidas, como se fosse arremessado de um lado a outro por mãos invisíveis. A distorção ao redor se curvava em espirais, imagens deformadas cruzando sua visão em velocidade extrema.

    O tempo se fragmentou, dissolvendo-se em segundos que pareciam eternidades. Cada piscada lhe mostrava vultos e sombras que não pertenciam a lugar algum. Um clarão o cegou, e então foi cuspido para fora do portal. Caiu de joelhos, o peito arfando em um ritmo irregular. O silêncio se impôs quando o portal desapareceu atrás dele, deixando apenas a estrutura imóvel, indiferente ao que acabara de acontecer.

    Não havia ninguém esperando. Nenhum guarda, nenhum guia. Apenas silêncio.

    Ele não conseguiu falar. O enjoo o consumia, o estômago revirando-se como se ainda estivesse preso na viagem. A mente latejava, tomada por ecos das distorções. Aquilo não era uma experiência que alguém pudesse simplesmente ignorar. Ficaria marcado em seu corpo e em sua consciência, como em todos os que atravessaram o teleporte, exceto Will, cujo método para escapar das consequências daquela travessia permanecia um mistério.

    “Droga…” murmurou entre dentes, tentando se levantar.

    E só então percebeu: o chão sob seus pés estava em chamas. Não eram labaredas comuns, mas fogo etéreo, azul e negro, que dançava sobre a superfície rochosa da caverna.

    “Mas que diabos…” murmurou assustado, saltando instintivamente.

    Esperava sentir a ardência na pele, ser devorado pelas chamas… mas nada aconteceu. O fogo o cercava, vivo e pulsante, mas não o queimava. Inspirou fundo, aliviado, e soltou o ar. Nesse instante, porém, arrependeu-se.

    Assim que suspirou, as chamas reagiram. Erguendo-se como se fossem possuídas por uma entidade, lançaram-se contra seu corpo e o envolveram por completo. O calor explodiu em ondas brutais, fazendo Roy cair de joelhos novamente, o grito estridente rasgando-lhe a garganta.

    As chamas se contorciam como serpentes famintas, penetrando cada fibra de seu ser. Roy sentia músculos se rasgando, ossos vibrando como se fossem forjados em uma fornalha. A pele ardia de dentro para fora, e sua mente oscilava entre a consciência e o colapso.

    Entre as labaredas, rostos distorcidos surgiam e desapareciam, como se o fogo carregasse as vozes dos antigos Umbros que haviam sucumbido à mesma provação. Os gritos ecoavam em sua mente, misturados ao próprio sofrimento, como um gruindo de agonia que testemunhava o nascimento de mais um herdeiro ou de mais uma vítima.

    Ele tentou lutar contra a dor, mas era inútil. A cada segundo, novas labaredas atravessavam sua carne, forçando algo a emergir das profundezas do núcleo em seu peito. Não era apenas energia: era como se uma segunda essência, até então adormecida, fosse arrancada de dentro dele à força.

    “AAAAHHH!!!” Seu grito reverberou na caverna, misturado ao som das chamas que chiavam.

    As veias em seus braços começaram a pulsar em padrões incandescentes, ardendo como brasas recém-saídas da forja. As argolas de energia tatuadas em seus pulsos incendiaram-se em chamas vivas e instáveis, queimando ainda mais do que o restante do corpo. Então, no ápice da dor, um cristal negro começou a despontar em sua testa, rasgando a pele como se buscasse emergir à força.

    A dor era tão intensa como se sua alma fosse destilada junto ao fogo que ele não conseguia perceber as alterações ocorrendo em seu corpo.

    Aos poucos, deixou de ser apenas dor. Uma energia nova se formava, percorrendo suas veias como água em brasa. O núcleo vibrava em harmonia com as labaredas, cada pulso reforçando a sensação de que algo maior estava nascendo.

    Roy tombou de lado, ofegante, os músculos contraídos em espasmos. As chamas começaram a se retrair lentamente, voltando ao solo como se nunca tivessem existido.

    Por alguns segundos, o silêncio reinou. Ele acreditou que se continuasse por mais um segundo naquela situação iria desmaiar, mas então sentiu.

    “Tem algo diferente em mim!”

    Um peso ardente em sua testa, uma energia que girava em torno de seus braços, um poder que não existia antes. O corpo doía, mas em meio à dor havia um resquício de satisfação.

    Ofegante, levantou-se com dificuldade.

    “Isso…” murmurou, sentindo o cristal pulsar. “O que diabos… aconteceu comigo?”.

    Mais tarde, ele descobriria que aquele era o processo único, ou a maldição, destinado a todos que recebiam a herança da linhagem Umbro. As chamas existiam para forçar os recém-chegados a despertar o Éther no instante em que pisassem na ilha. Não havia tempo para adaptação, nem qualquer conforto. Ou suportavam a dor…, ou morriam no processo.

    Aos poucos, foi retomando a calma e percebeu o lugar em que estava. A ilha Umbro parecia uma colmeia gigante cheia de cavernas ocultas em seu interior. O teto se erguia em abóbadas colossais, onde cristais se prendiam como estrelas apagadas. As paredes eram sulcadas por moradias escavadas, buracos iluminados por chamas sombrias onde os Umbros viviam. O ar denso, misturado a uma névoa de fumaça negra que jamais se dissipava, tornava difícil enxergar a longas distâncias.

    No centro da ilha erguia-se a cidade principal, formada por construções feitas de um material singular: um minério negro que só podia nascer naquele solo queimado eternamente. Chamavam-no de Dimitium, forjado pela constante exposição da terra ao fogo sombrio e ao Éther. As edificações erguidas com ele emanavam uma aura pesada e ameaçadora, como se guardassem em suas paredes a memória das chamas que lhes deram origem.

    Roy caminhou em direção ao norte, ruma a uma grande edificação que imaginou ser à cidade. Ainda dolorido. No caminho, passou por uma construção rústica no meio do nada, onde alguns Umbros consumiam alimentos que não reconheceu. Pedaços de carne enegrecida, embebida em um caldo denso e brilhante, quase viscoso. O cheiro era forte, misto de ferro e especiarias amargas.

    “Carne de bestial Vulkar.” disse um deles, encarando-o com desdém. “Se sobreviver, vai aprender a gostar.” gritou ao vê-lo passar, reconhecendo-o de imediato como um recém-acordado.

    Ao lado, outro mordeu uma fruta escura, do tamanho de um punho. Ao abrir, o interior liberava fumaça negra e um cheiro forte. Era chamada de fruta umbro, alimento típico da ilha, capaz de amplificar a energia do núcleo por um tempo, mas era uma faca de dois gumes, pois corroía lentamente o corpo se consumida em excesso.

    Bando de sem-teto miseráveis… acham que estou no mesmo nível que vocês? Não me comparem a essa ralé. pensou Roy, enojado. Em seguida, desviou o olhar, sem querer perder tempo com aquele tipo de gente.

    Seguiu adiante até alcançar o portão da cidade. Dois guardas Umbros estavam de vigia, mas não o receberam com cortesia. Apenas o mediram de cima a baixo, como predadores avaliando uma presa, trocaram comentários casualmente, sem demonstrar qualquer preocupação com a presença do garoto.

    “Mais um que sobreviveu ao fogo…” disse um deles, em tom áspero. “Ao menos não morreu como os fracos… iguais àqueles lixos inúteis que não aguentaram a provação.”

    Roy cerrou os punhos. O ódio fervia dentro dele, mas permaneceu em silêncio. Não era estúpido, sabia que não poderia arrumar confusão ali. Não conhecia ninguém, tampouco as regras ou leis daquele lugar. Abaixou a cabeça e avançou, decidido a entrar na cidade. Mas, antes que pudesse dar mais um passo, duas armas cruzaram à sua frente, bloqueando sua passagem.

    “Onde pensa que vai? Na capital só entram aqueles que o tem direito… ou quem é convidado. E, pelo que vejo, você não tem nenhum dos dois!” exclamou o guarda, fechando o rosto em desdém.

    “Sua sorte é ser apenas um recém-acordado… caso contrário…” completou o outro olhando para uma certa direção, soltando uma risada baixa e maligna que ecoou na entrada da cidade.

    Roy acompanhou o olhar do guarda e viu três seres caídos ao chão, espancados até perderem a consciência.  Ele cerrou os dentes, mas conteve a explosão que queimava por dentro. Em vez de reagir, ergueu o rosto demonstrando uma calma calculada.

    “Então é assim…” disse em voz baixa, quase submissa. “Os fortes mandam, e os fracos… acabam no lixo.”

    Os guardas se entreolharam e caíram na risada.

    “Olha só, temos um espertinho aqui!” zombou o primeiro, cutucando-o de leve com a ponta da lança. “Ele deve estar achando que é especial?” disse, com um sorriso zombeteiro. Então sua expressão se fechou. “Sinto muito em acabar com suas esperanças, mas todos que chegam aqui pensam como você… até morrerem na semana seguinte.” finalizou soltando uma gargalhada que ecoou pelo ambiente.

    “Na ilha Umbro não existem leis escritas, moleque.” completou o outro. “Aqui, o direito é conquistado na base da força. Se quiser algo, lute por ele. Se não tem poder, aceite a sujeira de uma das cavernas ao redor e fique calado.”

    Roy inclinou a cabeça, como se estivesse aceitando a humilhação, mas sua mente trabalhava rápido.

    “E como alguém consegue… entrar na cidade?” perguntou, fingindo ingenuidade.

    “Ha!” Um dos guardas cuspiu no chão.

    “Simples. Mostre seu valor lá fora, faça a sua força ser reconhecida e seu nome ser temido. Se chamar a atenção, talvez o mestre decida que vale a pena trazê-lo para dentro. Até lá, a caverna é tudo o que merece. Ou morra tentando, como tantos outros.” diz o segundo, rindo com desdém.

    Roy manteve o olhar baixo, engolindo o ódio, mas por dentro sorria. Eles haviam entregado exatamente o que precisava: a confirmação de que apenas os poderosos eram convidados para o centro da ilha.

    Então é isso. Primeiro sobreviver, depois me destacar. Só assim vou entrar nessa maldita cidade… pensou, o cristal em sua testa latejando.

    O guarda afastou a lança e, com um gesto de desdém, o enxotou.

    “Agora some da minha frente, recém-acordado. Vai achar um buraco nas paredes da caverna e se enterrar lá. Quem sabe, se não morrer no processo, a gente se encontra de novo.”

    Roy não respondeu. Se virou e saiu em silêncio, sentindo os olhares pesados nas costas. Seu corpo ainda doía, mas a mente ardia em um único pensamento:

    Não vou viver como um inseto entre as pedras. Vou conquistar esse lugar e, aqueles que me desprezarem vão aprender a temer meu nome.


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