Os recém-despertos se entreolhavam em silêncio, como se a simples menção do “lado de fora” despertasse algo instintivo. Nenhum deles fazia ideia do que existia além daquela névoa azulada, mas a forma como o Enviado falou, deixava claro: não era algo simples e acolhedor.

    “Suas formas físicas não estão completamente formadas. São apenas sementes. E como sabem… sementes podem florescer ou apodrecer. Vai depender de suas escolhas.” disse o Enviado.

    O silêncio que se seguiu foi diferente dos anteriores. Não era respeito, nem curiosidade… era cautela.

    Alguns baixaram as cabeças, engolindo em seco. Outros fecharam as mãos, tentando disfarçar o constrangimento. A pressão que antes viera com a presença do Enviado agora surgia de dentro deles mesmos, um peso interno. Mesmo que suas mentes ainda não conseguissem compreender o que ou quem temiam, no fundo, sentiam o perigo apenas pelo instinto.

    Kai também sentiu. Um frio sutil percorreu o que seria sua espinha, se ainda tivesse uma. Seu olhar permanecia fixo no céu, mas agora via o Véu com outros olhos.

    O que exatamente está do outro lado… para precisarmos ser protegidos desse jeito? pensou, sentindo seu corpo esquentar com um desejo há muito esquecido: empolgação e aventura.

    O Enviado os observava em silêncio, lendo cada pensamento sem esforço. Ele não precisou dizer nada. O próprio ambiente foi suficiente para reforçar a mensagem. O que não durou muito tempo. Um grito súbito cortou o silêncio.

    “Isso é loucura. Alguém aqui acredita em alguma palavra do que ele falou.” disse a voz, vindo do meio do grupo. “Eu exijo voltar.” gritou, voltando seu olhar para o Enviado. “Me tira daqui!”

    Todos se viraram ao mesmo tempo, e avistaram um dos recém-despertos agitado, com a sua forma Etherya instável, os contornos tremiam e vibravam dos pés à cabeça em total descontrole. Ele estava entrando em colapso, como se não conseguisse sustentar sua propiá estrutura física.

    “Eu… eu não pedi por isso!” continuou, seu tom oscilava entre alterado e passivo. Tentando se agarrar a uma realidade da sua vida que nunca existiu. “Eu tinha uma vida perfeita! Amigos, família, dinheiro! Isso aqui não pode ser real! Me tirem daqui! Agora!”

    A aura que permeava seu corpo oscilava entre tons de azul e vermelho, reflexo claro do turbilhão de emoções que o dominava. A comoção cresceu. Murmúrios e olhares nervosos se espalharam entre os outros. Um a um, começaram a se afastar, mantendo um círculo vago ao seu redor.

    Caindo de joelhos no chão, o jovem gritava com as mãos na cabeça, como se quisesse calar os próprios pensamentos.

    A tensão era palpável, estando prestes a se romper. O Enviado resolveu interferir antes que o caos se espalhasse.

    “Acalmem-se, crianças!” gritou, sua voz percorrendo a mente de todos. “Não sejam consumidos pelos próprios pensamentos negativos… ou terão um fim prematuro!”

    Alguns, que davam indícios de pânico, se estabilizaram com o severo aviso. Mas suas palavras não alcançaram o principal causador do tumulto. O recém-desperto havia mergulhado em um estado de insanidade. Seus gritos atravessavam o campo, mas sua mente estava inalcançável.

    O Enviado não se moveu. Limitou-se a fechar os olhos por um instante, como quem lamentava algo inevitável. Em seguida, ergueu a mão direita.

    No mesmo instante, uma barreira de aura se projetou ao redor do rebelde, abafando seus gritos. Aqueles que haviam se afastado recuaram ainda mais, tomados pelo medo de serem envolvidos.

    O recém-desperto já havia perdido por completo sua forma humanoide. Agora parecia mais um cristal em brasa. O que se seguiu foi uma explosão inesperada abalando a todos, fazendo o chão tremer.

    Um estalo seco ecoou, a barreia se desfez e a aura, que ardia como chamas vermelhas, se fragmentou em centenas de partículas de luz, dissipando-se no ar.

    “Eu avisei.” murmurou o Enviado, com um leve pesar na voz.

    O ambiente voltou ao silêncio, mais profundo do que antes. Kai sentiu o impacto daquilo como um aviso severo.

    Aquilo foi real. As regras deste lugar não perdoam ignorância, desespero ou imprudência, ponderou. Seu núcleo pulsou em resposta, como se estivesse reagindo diretamente aos seus pensamentos.

    “Isso…” disse o Enviado, com a voz fria, “é o que acontece quando uma semente escolhe o caminho errado: Ela apodrece.”

    Ele deixou a frase pairar no ar por longos segundos, o silêncio reverberava como a clara descrição emocional do grupo. Quando estava prestes a retomar sua fala, um segundo grito irrompeu, vindo de outro Desperto.

    Desta vez, uma voz feminina soou trêmula, talvez ainda presa às lembranças da ilusão do passado. Ela começou a se desesperar incontrolavelmente. Seu corpo de energia oscilava, a aura se partindo em faíscas instáveis, igual ao primeiro.

    “Não… não pode ser… isso é mentira! Eu quero voltar! Mãe, socorro!” gritou, desesperada, cobrindo o cristal no peito como se pudesse protegê-lo.

    O Enviado apenas observou. Não com frieza, mas com a certeza de quem já sabia o desfecho. “Uma mente quebrada… raramente pode ser salva.” disse ele, num tom quase inaudível.

    A explosão foi menor do que a anterior, mas não menos impactante. Novamente, o chão tremeu e partículas de luz se dispersaram no ar, misturando-se à névoa azul que cobria Hoikuen.

    Um terceiro Desperto, vendo a cena, caiu de joelhos, em pânico.

    “Por favor… por favor, eu não quero morrer!” implorou, olhando em direção ao Véu, mesmo sem saber a quem. 

    Mas nada aconteceu com ele. O Enviado sequer olhou em sua direção.

    “A diferença entre o medo e a insanidade… é uma linha tênue.” comentou, voltando a encarar o grupo.” Então, cuidado para não se perderem e acabarem tendo o mesmo fim que eles.” Finalizou, olhando para o local onde ocorreram as explosões. 

    Kai permaneceu em silêncio a todo momento, mas sua vontade era firme. Ele entendeu. Este mundo não era uma brincadeira e nem um conto de fadas. Mas sim um campo de provações. E ele não pretendia desistir, principalmente logo no começo.

    Apenas os que se adaptarem e aceitarem a nova realidade… sobreviverão, refletiu, ao presenciar os eventos anteriores. 

    Após as perdas e o clima pesado, o Enviado caminhou lentamente pelo ar, flutuando acima dos do demais.

    “Alguns de vocês estão sentindo medo. Outros, raiva. Poucos… estão ouvindo.” comentou, com a voz mais baixa agora, quase um sussurro, mas que ressoava direto dentro de cada um.

    “Entendam. Vocês sempre pertenceram a este universo: Etheryum. Talvez não soubessem antes… mas agora espero que tenha ficado claro.”

    Ele fez uma pausa antes de continuar:

    “Etheryum é onisciente, onipresente e onipotente. Ele nos observa a todo momento. Mas o futuro de cada um, é um reflexo das escolhas de hoje. Então reflitam bem sobre suas ações a partir de agora.”

    Kai absorvia atentamente cada palavra como se fossem algo que já ouvira antes. Acompanhava cada frase, mas, ao mesmo tempo, sua mente fervilhava com inúmeros outros pensamentos, e aos poucos, a voz do Enviado estava se distanciando sem ele perceber. Em uma transição suave, tudo ao redor pareceu se dissolver. Sons, formas, luzes… tudo desapareceu, exceto por uma presença familiar. Como se uma parte dele estivesse… voltado no tempo.

    Aquele sentimento percorreu sua essência. Não era dor, nem medo, mas algo misterioso e, ao mesmo tempo, nostálgico.

    Essa sensação… eu conheço, pensou, surpreso.

    Era como aquele estranho chamado que tinha na infância, sempre em seus sonhos, quando se via preso naquele liquido estranho. Quando relembrou deste detalhe travou.

    Não pode ser! pensou, chegando a uma conclusão.

    Na época, achava que era apenas imaginação. “Coisas da idade”, diziam. Mas agora… agora tudo fazia sentido.

    Nunca foi um pesadelo. Eu estava vendo a realidade, preso dentro daquela fruta. Então aquela voz foi Etheryum me chamando! 


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