Cruzando os braços. Kai observou tudo sem ter participado da comoção. Sentiu que a lógica daquele mundo estranho, fazia mais sentido do que ele gostaria de admitir.

    É, até que faz sentido, pensou Kai. Receber uma linhagem específica não é uma questão de desejo… nem mesmo no Sonho Eterno que vivi na Terra era assim. Nossas aparências, nossos traços físicos, tudo estava ligado aos nossos genes. E, pelo visto, aqui não é diferente. Comparou certas particularidades entre sua antiga existência na ilusão e sua atual condição em Etheryum.

    Talvez seja melhor assim. Mesmo sem ter a chance de opinar diretamente, ao menos, seríamos moldados por aquilo que realmente somos, e não por escolhas precipitadas ou gostos distorcidos como certos indivíduos vem fazendo. Pensando bem… imagina o risco que seria se delinquentes como eles despertassem com uma linhagem assassina ou perigosa desde o início. ponderou. Mas, logo em seguida, achou melhor afastar aquele pensamento. Não fazia sentido se prender a suposições. Ainda que nem sabia com o que exatamente estava lidando. Tudo não passava de mera especulação de sua parte.

    Enquanto isso, os despertos retornaram ao silêncio. As palavras do Seletor haviam sido claras o suficiente, e agora, todos aguardavam, ansiosos, pelo momento em que suas linhagens seriam reveladas. Alguns já estavam resignados. Não viam outra saída a não ser seguir o fluxo que lhes fora imposto. Outros, no entanto, ainda mantinham, uma pequena esperança, quase ilusória, de serem surpreendidos ou premiados, exatamente com aquilo que haviam desejado no fundo de seus corações.

    O medo que antes dominava o grupo… agora foi substituído pela expectativa. Quase todos, mesmo sem perceber, começavam a projetar mentalmente uma possível forma, talvez improvável ou inexistente, mas que, em suas mentes, poderia ser a sua.

    Sem qualquer anúncio ou aviso, a aura ao redor da Matriz, começou a pulsar com uma intensidade crescente, O próprio espaço ao seu entorno se distorceu pela força de algo muito além da compreensão humana. Um feixe de energia irrompeu do topo de sua estrutura, subindo em espiral até tocar o Véu. O clarão que surgiu oscilava entre tons de azul neon e violeta profundo.

    ZiiiiBam…

    Um estrondo seco ecoou, como o estalo de um mundo sendo rasgado. O Véu, até então silencioso, reagiu com uma onda de pressão intensa, varrendo o campo em todas as direções. Raios etéreos serpenteavam por sua superfície, refletindo o poder que agora fluía pela Matriz. A conexão entre o interior e o exterior de Hoikuen havia sido finalmente estabelecida.

    Como resultado, o ar se tornou mais denso. O chão vibrou sob os pés dos despertos, como se a gravidade tivesse aumentado de forma repentina. Eles sentiram o impacto de imediato. Alguns cambalearam, perdendo o equilíbrio, recuando instintivamente. Outros levaram as mãos ao peito, sentindo seus núcleos reagirem ao fenômeno.

    Houve quem gritasse, tomado pelo susto. Alguns se ajoelharam, vencidos pela emoção ou pela pura impotência. A mistura de medo, reverência e ansiedade se refletia nas auras instáveis de cada um. O silêncio anterior foi engolido por sussurros e murmúrios trêmulos, como se todos tentassem compreender, em vão, a magnitude do que acabavam de presenciar.

    Kai sentiu a onda invisível atravessar tudo ao seu redor, intensa, esmagadora, mas permaneceu firme, os pés cravados no solo. Levou a mão até o núcleo em seu peito e percebeu que ele reagia ao fenômeno, vibrando em perfeita sintonia com a aura que agora emanava do Véu.

    Parece que o Enviado resolveu se mover… pensou, acompanhando com os olhos as oscilações que cortavam o Véu como serpentes de luz. Ele Iniciou alguma coisa, mas achou desnecessário nos avisar. Um leve suspiro escapou junto aos seus pensamentos. Não que eu esperasse consideração. Mas, antes que pudesse compreender por completo aquela situação, um grito vindo da multidão desviou sua atenção.

    “Meu Deus… a Matriz ficou louca! Ela quer matar todos nós!” exclamou o recém-desperto. Sua voz, tomada pelo pânico, acendeu uma faísca de insegurança nos demais. “Não podemos ficar parados… só esperando o nosso fim!” gritou, virando-se de um lado para o outro, tentando chamar a atenção dos demais. Alguns chegaram a dar um passo à frente, inclinados a seguir sua teoria. Mas recuaram logo em seguida. Preferiram esperar… apenas um pouco mais. Queriam ver como um certo alguém reagiria ao tumulto.

    “Covardes!” exclamou o desperto, indignado ao perceber que ninguém estava disposto a apoiá-lo. Seus olhos percorriam o grupo em busca de aliados, mas tudo o que encontrou foram rostos virados e um silêncio constrangedor. Até que alguém se pronunciou.

    “Se o que diz for realmente verdade, me responda uma simples questão” retrucou outro desperto, dando um passo à frente. Sua voz carregava um traço sutil de raiva e repulsa, não apenas pelas palavras ditas, mas pela maneira como haviam sido lançadas. “O que exatamente pretende fazer?”

    Ao ser questionado daquela forma, ele travou. Não havia pensado nessa parte… agira no calor do momento, movido apenas pelo impulso. Quando estava prestes a inventar alguma resposta, aquele “alguém” a quem todos, no fundo, temiam, finalmente se moveu. 

    A Matriz havia se limitado a observar toda a baderna gerada pela criança eloquente. Sua presença permaneceu neutra, impassível, mas algo em sua estrutura oscilou levemente… e, por um instante, deixou escapar um suspiro decepcionado.

    Então, voltou sua atenção para o grupo, como quem decide intervir após observar o suficiente. “Quem ousa me difamar?!” bradou o Seletor, agora com um tom carregado, difícil de decifrar se era ira real ou apenas controle calculado. Sua aura percorreu o ambiente, em seguida uma onda de dor atravessou as formas Etherya de todos ali presentes. Foi algo breve, mas intenso o suficiente para arrancar gemidos e silenciar qualquer alvoroço. 

    Ninguém se prontificou. O medo os dominou por completo. Nem mesmo o autor da confusão teve coragem de se manifestar. Pelo contrário, encolheu-se, com a cabeça baixa, fingindo que aquilo não tinha nada a ver com ele. Já os demais permaneciam imóveis, como crianças que haviam acabado de aprontar e agora temiam a repreensão. Aqueles que decidiram esperar um pouco mais agradeceram em silêncio pela escolha sábia ou, ao menos, por não terem se precipitado.

    No fundo, ele não se importava com palavras ditas ou gestos impensados, nada disso tinha real significado. Mas não podia permitir que o caos se instaurasse. Por isso, controlava a agitação sempre que necessário, demonstrando autoridade… e raiva, quando julgava apropriado. 

    Então, a voz retornou, ressoando diretamente dentro da consciência de cada um:

    “O processo de Seleção começará em breve. E quando terminar… nada em vocês será como antes. A não ser suas memórias. Aproveitem o tempo livre para meditar e estabilizar sua mente em vez de desperdiçá-los proferindo bobagens.” finalizou, em um tom mais sereno, porém incontestável. Como se respondesse à questão anterior.

    A Matriz percebeu que, entre a multidão, apenas alguns despertos não se abalaram com os eventos anteriores, nem com a instabilidade do ambiente, tampouco com o desespero alheio. Para esses poucos, aquele instante marcaria um ponto de virada em suas existências. Por isso, mantinham o foco. E nada, por menor que fosse, os desviaria disso.

    Kai estava entre eles. Mesmo em silêncio, sua atenção não se limitava ao que acontecia ao redor, mas também ao que começava a despertar dentro de si. Quando foi a última vez que me senti tão empolgado assim? ponderou, olhando não para o que estava à sua frente… mas para o passado.

    Uma emoção intensa, quase esquecida, subiu em seu peito com uma onda quente, expandindo-se por toda sua forma Etherya. Era mais do que empolgação. Era como se algo dentro dele tivesse finalmente sido restaurado. O tipo de sentimento que não se explica… apenas se sente.

    Seu núcleo respondeu a suas emoções, demonstrando estar em sincronia com sua mente, como se, enfim, estivesse sendo escutado. Sentiu que estava exatamente onde deveria estar. Fechou os olhos por um instante, e não foi apenas o ambiente que desapareceu naquele momento, eram também os medos, as memórias que o prendiam ao passado, os sentimentos reprimidos… Pela primeira vez em muito tempo, não precisou fingir e nem esconder o que sente. Poderia apenas ser ele mesmo.


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