Quando Kai abriu os olhos novamente, algo dentro dele havia despertado. Levantou a mão na altura do peito, apertando-a com força.

    A partir de agora… não quero mais viver acorrentado ao remorso. Nem ao arrependimento, pensou, ao romper as amarras do passado. Sua declaração resoluta não foi feita aos céus, tampouco a algum ser superior. Foi uma promessa feita a si próprio. 

    Se esta for realmente a oportunidade de iniciar uma nova jornada… então, seguirei o meu próprio caminho e forjarei as minhas próprias vontades.

    Não precisava dizer nada. Apenas aquela aura distinta em relação aos outros, já era o suficiente para desmontar sua vontade. Liberando uma aura controlada, transmitiu uma silenciosa, porém inabalável determinação.

    A Matriz Seletora pareceu captar essa transformação.

    Por um breve instante, os padrões antigos em sua superfície alteraram o ritmo, reorganizando-se de forma sutil, como se formassem um sorriso. Uma expressão de aprovação, vinda de uma consciência que raramente demonstrava qualquer emoção genuína. Suas respostas, na maioria das vezes, eram apenas simulações funcionais. Mas naquele momento… foi diferente. Como se pensasse com sigo: você escolheu bem, criança.

    Então, sua voz ecoou, ressoando mais uma vez dentro da consciência de todos, agora carregada de uma sutil urgência:

    “Despertos de Hoikuen… Há muito mais a ser dito. Mas devido a algumas interrupções e contratempos, iniciarei agora o processo de Herança. Formem uma fila ordenada, para que cada um de vocês seja chamado, um por vez.”

    Todos ficaram confusos com a menção ao termo herança. Ainda que não compreendessem completamente seu significado, imaginaram que se referia à linhagem mencionada anteriormente. Mas, no instante seguinte, seus pensamentos foram interrompidos pelos padrões que começaram a se formar no chão diante da Matriz. Linhas de energia se entrelaçaram, criando uma trilha geométrica que conduzia até sua base central. As luzes não apenas indicavam o caminho… emanavam uma aura de ordem e disciplina.

    “Aproximem-se. E, quando forem chamados, devem adentrar minha estrutura, um por vez.”

    Assim que as palavras foram pronunciadas, um rasgo silencioso se abriu na parte inferior da Matriz, lembrando a entrada de um portal. Os padrões giratórios ao seu redor se separaram, revelando uma abertura oval. Dela, emergia uma névoa espessa e opaca, que os impedia de enxergar o que havia no interior. O grupo congelou e um silêncio pesado caiu sobre todos. Como se o tempo tivesse desacelerado diante do mistério que viria.

    Por alguns segundos, ninguém ousou se mover ou sequer respirar alto. A maioria pensava a mesma coisa: não quero ser o primeiro! 

    Nenhum deles queria ser a cobaia ou arriscar ser o primeiro a descobrir se tudo o que o Seletor dissera era realmente verdade.

    O silêncio se alongou… até que um dos acordados finalmente se moveu. Com passos vacilantes, rompeu a imobilidade do grupo. Seus joelhos tremiam a cada avanço, e os braços, levemente enrijecidos, revelavam o esforço para conter o medo. Seu corpo oscilava entre a hesitação e o impulso. Mas sua mente, tomada pela cobiça, o empurrava adiante.

    Com certeza deve haver um prêmio para o primeiro que entrar! Sempre tem algo assim… e eu não vou deixar essa oportunidade escapar, pensou, seguindo em direção à entrada.

    Sem olhar para trás, ele atravessou o limiar da plataforma.

    Assim que adentrou a estrutura, sua forma Etherya foi imediatamente envolvida pela névoa de energia, que o cercava como uma cortina viva, pulsando em compasso com a Matriz. Em questão de segundos, seu corpo desapareceu da vista dos demais, engolido pelo portal que se fechou logo em seguida.

    Dentro da Matriz, o processo havia começado.

    Vários fragmentos esféricos e translúcidos passaram a orbitar ao redor do corpo do recém-chegado de forma automática, traçando padrões complexos, como se exibisse uma coreografia pré-programa e antiga. Cada partícula de sua essência era analisada com precisão quase divina, da superfície de sua forma até os recantos mais profundos de sua alma. Pensamentos, emoções, traumas, desejos, características físicas… e até mesmo aquilo que ele tentava esconder de si mesmo, tudo era trazido à tona.

    Nada escapava diante da Matriz, uma consciência ancestral, criada pelo próprio universo, moldada com um único propósito: desvendar a verdade por trás de cada núcleo e revelar a verdadeira identidade de cada acordado.

    Do lado de fora, após o portal oval da Matriz se fechar, não se passaram nem dois segundos antes que ele voltasse a se abrir, revelando sua forma anterior mais uma vez como se nada houvesse acontecido.

    Os despertos se entreolharam, surpresos… e mais desconfiados do que antes.

    “Próximo!” ecoou a voz digital, firme e sem qualquer emoção. Mas ninguém se moveu.

    “Ué… mas onde está o que entrou por primeiro?” questionou, procurando por uma resposta. Mas os outros estavam tão perdidos quanto ele.

    “Próximo, rápido! Se não entrar agora ou sair da fila, não terá outra chance!” declarou o Seletor, com a voz ríspida, deixando claro que ali não havia espaço para hesitação.

    A tensão voltou a se espalhar pelo grupo.

    Alguns despertos trocaram olhares nervosos, enquanto outros mantinham os olhos fixos na estrutura da Matriz, perdidos em suas próprias teorias.

    O autor daquele discurso anterior difamatório, agora em silêncio, encarava a entrada da Matriz como se estivesse diante da boca de uma fera ancestral.

    Eu sabia… este é o nosso fim. Sua aura empalideceu à medida que viu o primeiro desaparecendo dentro da estrutura. O temor que antes o dominava agora se tornava uma convicção distorcida, de que sua teoria estivesse sendo confirmada diante de seus olhos.

    Ele vai nos engolir… um por um. pensou, sem coragem de participar do batismo de Etheryum, recuou silenciosamente da fila.

    “Próximo!” declarou, em um tom elevado, obrigando os presentes a esboçarem alguma reação.

    O indivíduo da vez, aparentemente calmo por fora, mas visivelmente abalado por dentro; respirou fundo e só então avançou lentamente. Sua atitude não foi de coragem… mas puramente de resignação.

    Se eu tenho que passar por isso… que seja de uma vez, pensou, tentando sufocar o medo.

    Assim que ele adentrou a estrutura, o portal manteve o mesmo padrão de antes, fechou-se logo em seguida e, após dois segundos, com um brilho sutil, se revelou novamente. O grupo observava fixamente, em completo silêncio. Ao presenciarem a repetição exata da situação anterior, agora tinham certeza: não havia retorno, era um caminho só de ida.

    O tempo se curvava em repetição e cada entrada era seguida por um silêncio quase cerimonial. 

    Kai observava tudo atentamente com os braços cruzados. Sem demonstrar medo, tampouco pressa. Antes de agir, preferiu analisar com atenção cada detalhe do procedimento.

    Então, este é um evento oculto… pensou, mantendo os olhos fixos na Matriz. Os detalhes de cada um não serão revelados ao público. Talvez seja isso que mais os assusta os demais… não saber o que esta acontecendo la dentro. Anteriormente, considerou que poderia aprender algo apenas observando, mas ao decorrer dos eventos obteve sua resposta. 

    Achei que conseguiria entender como funciona o processo dessa forma… refletiu. Mas vejo que vou ter que experimentar por mim mesmo se quiser descobrir a verdade. Vendo a fila avançar, um a um, deu um passo à frente, decidido a garantir seu lugar.

    “Muahaha.”

    Foi nesse momento que uma risada insana reverberou sobre o ambiente como uma lâmina invisível. Breve, mas intensa o suficiente para atrair toda atenção. Não viera da Matriz. Tampouco de qualquer um ao seu redor. Era ríspida, carregada de sarcasmo, completamente fora de contexto diante do clima solene que dominava o campo dos acordados.

    Todos se viraram, aborrecidos, em busca do responsável por quebrar a concentração do grupo. Alguns acreditaram que fosse o mesmo sujeito de antes. Outros imaginaram que talvez fosse apenas mais um… tentando chamar atenção.

    Kai paralisou. Aquela risada… não era qualquer uma.

    Não pode ser… pensou, espantado.

    Pela primeira vez desde que chegara a Hoikuen, sua aura oscilou, revelando uma leve, mas visível, instabilidade.

    “Roy… é você?”


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