Capítulo 9 – O Rancor de uma Sombra
Antes que pudesse reagir, questionar ou sequer processar o peso daquelas palavras, a Matriz prosseguiu, firme, sem dar espaço para pausas emocionais:
“Sua herança condiz muito com sua personalidade: séria, analítica e um tanto ranzinza! Apenas um número muito pequeno consegue obtê-la.” completou, e surpreendentemente, seu tom carregava um leve sinal de respeito para com a linhagem.
“O que exatamente é uma Herança de linhagem?” Will perguntou, ainda tentando compreender a fundo o significado. Mas não houve tempo, pois o processo não havia terminado.
Ele presenciou uma das partículas convergir em direção ao seu núcleo. Assim que a esfera se aproximou, foi absorvida sem nenhuma resistência, enquanto os outros fragmentos permaneciam imóveis.
“Observe com atenção, criança!” exclamou a Matriz. “O fragmento de energia está reagindo a você. Isso significa que seu núcleo irá absorvê-lo, formando o seu corpo físico com as características dessa herança!” explicou, referindo-se ao fenômeno que acabara de ocorrer.
“Compreendo!” respondeu Will. “Então… cada uma dessas esferas representa uma herança diferente?” questionou, ao notar uma pequena diferença entre os fragmentos.
“De forma simples e direta, pode considerar que sim!” respondeu à Matriz Seletora.
Ele conseguiu notar esse detalhe mesmo após passar por todo aquele estresse psicológico. Interessante… pensou o Seletor, cada vez mais atento ao desperto em sua presença.
Enquanto eles conversavam, a energia que havia se acumulado cresceu em intensidade, prestes a romper os limites daquele pequeno cristal que agora pulsava como um farol, iluminando todo o espaço ao redor com um brilho intenso e etéreo.
Algo estava prestes a surgir.
“Eu posso sentir… meu corpo está prestes a se formar? murmurou, com a voz trêmula.
“Só mais um pouco…!” Will disse a si mesmo, tentando resistir àquela pressão como quem sustenta uma represa prestes a se romper. Sabia que, se relaxasse por um único instante, tudo poderia desmoronar. Com um esforço final, usou tudo o que tinha. Fracassar ali não era uma opção. “Se eu começo algo… devo… ir… até o fim!” As palavras saíram rasgadas.
Um brilho ofuscante irrompeu do núcleo de Will, liberando uma grande massa de energia que lentamente foi se expandindo e gerando uma forma física humanoide. No primeiro instante, não havia diferença alguma da forma humana. Mas, segundos depois, quando seu corpo parou de brilhar, pôde-se notar algumas peculiaridades:
Will havia ficado com um metro e noventa de altura, um porte imponente que contrastava com seus cabelos curtos e loiro bem acinzentado. No entanto, o detalhe que mais se destacava era a auréola de energia flutuando sobre sua cabeça. Estas eram as características mais evidentes de sua linhagem recém-desperta.
“É sempre um prazer receber o despertar de um Arcéu!” disse a matriz, em tom cordial.
Arcéu! Este é o nome da minha herança de linhagem.
Do lado de fora, apenas dois segundos haviam se passado. O tempo dentro da Matriz fluía de forma diferente.
E, nesse breve instante, Kai havia dado apenas três passos desde que Will atravessara o portal. Parou, fitando o vazio. A risada que ouvira já havia cessado, mas o eco dela continuava reverberando em sua mente, como uma sombra persistente que se recusava a desaparecer.
O que você está aprontando dessa vez Roy?
Quem ele estava procurando… estava ali. Escondido.
Ao reconhecer a voz de Kai, recuou instintivamente, desaparecendo entre os outros despertos. Observava de longe, com o semblante fechado e os ombros curvados. Sua aura oscilava de forma sutil, carregando uma mistura densa de surpresa e desconforto.
Como isso pôde ter acontecido…? Justo agora que achei que tinha me livrado de todo o meu passado… você aparece aqui. reclamou, mentalmente.
Eu nunca mais serei a sua sombra. A partir de hoje… serei a estrela que mais brilhará neste universo… Entendeu Kai? Gravou sua promessa em meio seu estado de fúria.
Sem pensar duas vezes, virou as costas e caminhou em direção à fila. Seu semblante, tremia levemente. Levou a mão ao rosto, tentando conter as emoções que ameaçavam transbordar.
Não posso cometer o mesmo erro duas vezes. Se isso acontecer… ele vai me descobrir. E meus objetivos serão arruinados. Roy pensou, enquanto lutava contra a insana vontade de se soltar e gargalhar novamente.
Discretamente, misturando-se entre os dispersos. Evitou olhares. Sabia como desaparecer. E, naquele momento, o melhor jeito… era entrando na Matriz.
O processo continuava. E um a um, os despertos adentravam a porta na estrutura, deixando para trás qualquer resquício de sua antiga identidade.
“Próximo” ordenou a Matriz.
Roy deu alguns passos até a entrada da estrutura, pronto para ser envolvido por uma névoa sutil que começava a se erguer ao seu redor. Mas, antes de ser tragado por completo, virou-se discretamente… e lançou uma última olhada. Soltou um suspiro carregado de ódio e culpa por tudo o que jamais foi dito entre os dois.
No instante seguinte, foi sugado pela Matriz. Ou, ao menos, foi o que todos viram por fora. Por dentro, era como cair em um abismo separado da realidade. Não havia teto, nem chão. Nenhum sinal de direção ou ponto de apoio. Apenas uma plataforma suspensa abaixo dele e, ao redor, uma névoa espessa que parecia viva, dando a sensação de não ter um fim.
Sentiu sua consciência flutuar no vazio de forma desconfortável, como se seu próprio ser estivesse sendo arrancado das camadas superficiais da mente. E ali, naquele silêncio opressor, encarava o reflexo do seu próprio distúrbio.
Mas que merda de lugar é esse…? Roy pensou, inquieto a até um pouco assustado.
Uma onda caótica subia por dentro, gerando um nó na garganta que parecia crescer a cada segundo. O ambiente ao redor era opressor. Sem lógica, nenhuma referência. Apenas ele… e o vazio.
Isso… não parece ser real. ponderou. Mas a pressão que sentia era muito real.
Uma voz surgiu, parecia sussurrar em seu ouvido:
“O despertar nunca é suave para aqueles que carregam rancores profundos.” disse a Matriz. Soava suave… mas havia algo desconcertante em suas palavras, como se cada sílaba fosse capaz de despir sua alma sem esforço, revelando tudo aquilo que ele tentava esconder.
“Você… consegue ouvir os meus pensamentos?” questionou Roy, com um tom urgente, como se a simples ideia já fosse inquietante demais para ser suportada.
“Eu não só ouço. Eu vejo. Tudo o que você foi… e tudo o que tenta esconder em seu coração, criança” respondeu, sua voz ressoou ao redor como um sussurro inevitável.
Roy cerrou o punho, mesmo sem ter certeza de que ainda possuía um. As palavras da entidade o invadiam como lâminas sutis, cortando silenciosamente as defesas que ele levara anos para construir. Todas as lembranças enterradas começaram a emergir em sua mente.
Sua infância.
O rancor.
Os gritos. E a humilhação.
Memória distorcidas. Aqueles olhares de desprezo. A sensação de ser sempre o segundo. A sombra de outra pessoa. Uma peça quebrada que ninguém queria consertar. E agora… tudo isso retornava, mais vívido do que nunca.
“Eu não preciso reviver isso!!!” gritou, lutando para silenciar os fragmentos de lembranças que emergiam. Mas a Matriz não teve misericórdia e continuou o processo ignorando todas as reclamações.
As esferas translúcidas começaram a se mover ao seu redor. Diferente de Will, não havia ordem na dança. As partículas giravam em espirais caóticas, colidindo entre si com estalos estridentes de energia, como se travassem uma guerra ao contato. Nada ali parecia em harmonia. Era instável, violento… confuso.
“Não… vocês não vão me dominar, seus hipócritas.” gritou frases aleatórias, tentando conter a pressão mental que se acumulava como um peso invisível sobre sua alma. “Estão querendo me humilhar. Mas eu sou mais forte. Sempre fui!” Sua voz soou abafada, mas carregada de tensão. Aos poucos, a instabilidade rompeu o limite da contenção. E sua insanidade que tanto lutava para esconder… começou a vir à tona.
“Essa força que tanto valoriza… é só um disfarce, Roy” disse a Matriz, sem alterar seu tom, mas como quem entrega uma verdade impossível de ignorar. “Apenas uma casca vazia que esconde quem realmente é.”
“Cale-se!” Roy gritou, erguendo a voz de forma abrupta. “Todos vocês me subestimam, mas vou mostra do que sou capaz.”
O cristal em seu peito brilhou intensamente, liberando uma aura sombria e densa, que consumia qualquer resquício de luz ao redor. Ela serpenteava como uma fumaça viva, pulsando em sincronia com seu desequilíbrio interior. Mas não durou muito. No instante seguinte, as esferas se afastaram e o caos ao redor cessou. Apenas um dos fragmentos permaneceu, flutuando próximo, até ser lentamente absorvido pelo seu núcleo, que liberou uma massa de energia obscura e intensa.
Um novo ser estava prestes a nascer.
Aos poucos, a névoa obscura começou a emanar de seu núcleo. Roy sentiu o peso dos seus membros retornarem. Primeiro os braços. Depois as pernas. Então um formigamento passageiro percorreu todo o seu corpo. A sensação não foi nem um pouco suave. Como se milhares de agulhas estivessem perfurando sua alma. O que não durou muito. Seus olhos se abriram fisicamente pela primeira vez.
Essa é… minha linhagem? pensou, enquanto sentia o resto se reestruturar.
Ele pousou sobre uma plataforma de energia circular no centro da Matriz, enquanto os demais fragmentos de energia se afastavam, como se reconhecesse que aquele espaço não lhes pertencia. Seu corpo havia mudado. Estava mais esguio do que no Sonho Eterno e os cabelos negros caíam sobre os olhos, tingidos por um leve tom azulado que vibrava em sintonia com sua aura instável. Mas o que mais chamava atenção eram aqueles olhos, completamente negros, com íris vermelhas em forma de losango, e o cristal cravado no centro da testa, do mesmo formato e cor de suas iris. Ao redor de cada um de seus pulsos, havia uma tatuagem de energia que emitia um brilho obscuro, como selos flutuantes em sua pele.
“Você despertou como um Umbro!” anunciou a Matriz, com um tom mais contido do que o usado com Will. “Deveras, uma linhagem moldada pela cobiça e rancor. O que combina perfeitamente com sua personalidade invejosa, manipuladora e rancorosa.”
“Umbro…” repetiu Roy, saboreando o som da palavra. Ignorou por completo os comentários da Matriz e qualquer traço mencionado. Pois para ele, tudo aquilo era irrelevante. Ergueu o rosto e as mãos e sorriu, incapaz de se conter. Seus olhos percorreram toda a câmara. Aquilo era mais do que orgulho.
“Tá vendo, Kai…” Ele gritou, erguendo os braços. “Agora chegou a minha hora. E ninguém mais vai poder me ignorar!”
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