27 - Das profundezas bíblicas - Gabinete do Schordinger
Autor: Mk Hungria
“O relato descrito a seguir foi recuperado por pesquisadores holandeses em uma região deserta da Antártida. Embora absurdamente fantasioso, a Marinha brasileira ainda debate se ele servirá para explicar o desaparecimento da Fragata Princesa de Prata comandando pela Capitã Miraela Arami S. Tesoro.
As páginas foram encontradas em um caixote de ferro preso no gelo junto de armas inutilizáveis. Nada que indicasse a presença da Capitã Tesoro ou de algum de seus marujos foi achado e assim todos seguem oficialmente desaparecidos.
Muitas das páginas se encontravam ilegíveis e como um membro da perícia, afirmo que foi um milagre termos recuperado o relato a seguir. Mesmo que sem alguns pontos cruciais, ainda é fácil entender o que aconteceu, na verdade, o que a Capitã acreditava estar acontecendo.
Eu irei dar as explicações lógicas para os ocorridos em páginas separadas após cada divisão do relato. Dessa forma poderemos ter alguma história válida para contar aos parentes dos desaparecidos e não as sandices de uma mulher que, perdoe minha falta de educação, jamais deveria ter passado no teste do psicotécnico.”
Primeiro trecho recuperado do diário pessoal da capitã Tesoro datado de 13/09/2003 às 15:38.
Nossa atual missão é transportar uma carga de surprimentos até a Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira da Antártida. Os cálculos estimam que chegaremos a baía do Almirantado em no máximo trinta e seis horas de viagem. Em breve precisaremos atravessar o Drake, ele sempre vai me causar alguma apreensão mesmo tendo já o atravessado dezessete vezes em minha carreira. O percurso será de mais mil quilômetros ao todo.
Já ordenei os homens que peiem a carga e tudo mais que estiver a bordo da Princesa de Prata. Aqueles que não estam em serviço, já se esconderam em seus dormitórios. A pequena capela improvisada que foi construída no passadiço já está lotada de marinheiros, os mais céticos preferiram verificar se tudo esta peiado. As nuvens de tempestade já podem ser avistadas no horizonte.
Não por acaso, o Drake é considerado o mar mais perigoso do mundo. Nossas previsões são de ondas possuindo três metros e meios, juntamente com uma velocidade de cinco nós. Isso é seguro se comparado aos sete metros de marulhos que eu peguei da última vez que atravessei a região.
Mandei que maçãs fossem distribuídas, elas são boas para o enjôo.
O imediato veio a cabine avisar que estamos a cerca de duzentos quilômetros do Drake, irei parar por aqui e retomarei a escrita amanhã ou em breve caso seja necessário.
Eu acredito que será em breve na verdade, caso ele apareça e espero que o faça.
Segundo trecho recuperado do diário pessoal da capitã Tesoro datado de 13/09/2003 às 20:22.
Infernos, caralho, buceta, desgraça!
Quase tudo deu errado, eu não esperava por mais, nunca imaginei que haveria de ter outro. A cólera que me toma neste momento é tanta que minhas tripas doem.
Quando terminei meu relato anterior, saí para verificar se tudo havia sido peiado. Quando terminei a verificação. Subi até a ponta do convés, para tentar avistar algum sinal dele de lá. Não consegui enxergá-lo.
Fui até a sala de navegação e os sonares não indicavam coisa alguma abaixo do mar, mas ainda não estávamos no Drake, e foi somente naquela área que eu tinha avistado ele. Eu possuía uma necessidade, não só de atravessar aquele mar, mas também de provar aos meus superiores de que não sou louca. Ele existe, ele é real tanto quanto minha carne e meu sangue, é tão real quanto Deus ou o diabo.
Troquei minha fragata anterior pela Princesa de Prata que é especializada em luta antisubmarina, apenas para sujar o mar com o seu sangue.
Naquele momento não havia urgência alguma e por isso resolvi tirar um momento para descanso. Eu iria precisar de toda minha energia para o caçar e depois cruzar o Drake. Como a idiota que sou, não percebi o que estava debaixo do meu nariz mesmo quando olhei diretamente. Antes de voltar a cabine consegui enxergar algo no horizonte, era plano e alto, quase triangular, primeiro pensei ser o avistamento de de algum navio a vela, mas descartei a idéia, nem o mais insano dos marinhos navegaria o Drake com um barco a vela. Eu imaginei que estava vendo coisas, uma imbecil, eu pensei estar apenas vendo coisas.
Foi pensando nessa estranha visão que eu acabei cochilando sem querer. Quando acordei, constatei que estávamos no Drake antes mesmo de me levantar. O navio balançava de forma violenta. Eu sentia através do balanço que a bochecha e a través eram constantemente acertadas. Com muito esforço fui capaz de me dirigir até a sala de comando.
O caminho até lá era cheio de homens e mulheres desesperados. Felizmente, tudo havia sido devidamente amarrado como ordenei, não havia carga alguma deslizando pelo chão. Quando entrei na sala de navegação, a primeira palavra que disse foi um palavrão, provavelmente “puta que me pariu”. Todas as previsões estavam erradas.
Apenas olhando, eu podia afirmar que aquelas eram ondas de nove a dez metros, os aparelhos mediram uma velocidade de setenta nós. E o pior de tudo, o sonar não mostrava nada, o inferno sobre o mar e seu demônio não dava o ar de sua desgraça.
Um marulho de onze metros acertou a bochecha do navio, ficamos numa inclinação de quarenta e cinco graus por cerca de onze segundos, se tivesse alguns graus a mais, teríamos emborcado.
O meu imediato sugeriu aumentarmos a velocidade para vinte e dois nós, o que já é superior a velocidade normal. Eu recusei. Disse que seguiriamos na velocidade normal.
Foi nesse momento que uma onda de nove metros e seis segundos nos colocou em uma direção contrária. Quando eu ia devolver o navio para a rota, vi um grande sinal no sonar, porém os indicadores de anomalias magnéticas não indicavam nada.
Não era metálico, não era uma máquina, eu senti um arrepio de excitação atravessar minha espinha. Logo me decepcionei, era pequeno demais para ser ele.
Coloquei o navio na rota correta. A mancha do sonar se deslocou em nossa direção e novas ondas atingiram o bico do navio, foi em um marulho distante que eu vi essa coisa misteriosa. Era horrendo, grotesco. Uma forma grande e confusa quase triangular da qual dezenas de tentáculos se projetavam. Estava dentro da água, então foi difícil enxergar, apenas os raios do céu e os faróis da embarcação davam alguma luz. Tudo que fomos capazes de ver foi essa mancha escura que parecia a sombra de um monstro.
Felizmente eu não fui a única a ver desta vez, meu imediato e os navegadores avistaram. Sugeriram, imploraram que pedissemos ajuda por satélite. Recusei por dois motivos, primeiro que a ajuda não chegaria milagrosamente do nada mesmo que acreditassem no pedido, segundo que fui lá para matar um prêmio muito maior, não me assustaria por causa daquilo. O que eu queria era de fato mais assustador.
Eu o vi pela primeira vez quando ainda era uma novata, era minha primeira viagem no Drake, na época ainda navegava a bordo da Maria Quitéria. Estava apenas eu no convés, sei que não é o comum, mas não era uma noite comum de qualquer forma. Não é todo dia que se faz aniversário em meio ao mar mais perigoso do planeta, um dos membros estava sendo coberto de aplausos lá embaixo. Havia muita bebida não alcoólica e comida, claramente estavam todos desrespeitando o protocolo, mas os superiores permitiam e faziam parte desse desrespeito.
Não era um ambiente ruim, apenas não era o meu ambiente. Nunca gostei muito do barulho e das vozes altas, some isso ao fato de quase não haver mulheres naquela tripulação, me sentia deslocada.
Eu subi ao convés para fumar um pouco, as ondas estava frenéticas, mas não haviam tempestades a vista no momento. Caminhar em um navio balançando não é desafio quando você é acostumada, alguém destreinado teria sido lançado ao mar aquela altura. Para mim que já tinha treinado anos, não era difícil caminhar no navio balançando. Foi sozinha lá em cima, entre uma baforada de fumaça e outra que eu o vi pela primeira vez.
O Leviatã.
Foi assim que o nomeei, é o que ele é, por Deus, não poderia ser outra coisa. Era o próprio, como descrito nas linhas sagradas do Livro de Jó. Eu o vi, juro que o vi, com esses mesmos olhos que a terra um dia há de comer.
Apenas sua cabeça, o suficiente para que eu perdesse minha voz, para que eu esquecesse de como se fala. Eu o olhei paralisada, meus olhos castanhos encarando seus olhos negros como a noite. Ele olhou pra mim, aquela criatura de proporções colossais olhou direitamente para mim.
Eu caí sobre minhas pernas, ajoelhada em meu próprio temor. A urina que escorria pela minha calça e sujava o chão do convés não me importou, as lágrimas de terror que desceram pelo meu rosto eram insignificantes.
Ele era tudo que importava.
Somente a sua cabeça, uma mistura infernal entre peixe e serpente, era do tamanho de pelo menos metade da embarcação. Sua boca, embora curta, lembrava a de um crocodilo, mesmo que esses répteis não possuíssem uma fileira de dentes tão numerosa. Dois barbilhões saiam de cada lado de seu rosto e suas guelras ficavam logo abaixo no que era visível do seu pescoço.
Palavras não podem descrever o que eu senti, eu não entendo completamente o que senti. O meu peito retubando, a respiração acelerada. Meus pulmões doeram de tanto desespero. Foi quando minha voz voltou e junto com ela veio uma tempestade. Os meus gritos de desespero soterrados pelos sons dos trovões.
E ele ainda olhava para mim.
O desespero nos torna capazes de coisas impressionantes. Quase como se houvesse voltado à velha catequese de quando eu tinha apenas onze anos, fui capaz de ouvir a voz da velha Irmã Benê lendo em voz alta a bíblia. Eu escutei em meu ouvido, as mesmas palavras que Deus disse a Jó.
“Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem a ele resistiria face a face? Quem pôde afrontá-lo e sair com vida debaixo de toda a extensão do céu? Quem lhe abriu os dois batentes da goela, em que seus dentes fazem reinar o terror? Quando se levanta, tremem as ondas do mar, as vagas do mar se afastam. Se uma espada o toca, ela não resiste, nem a lança, nem a azagaia, nem o dardo. O ferro para ele é palha, o bronze pau podre”
Como dito na bíblia, a maior e mais poderosa das criaturas aquáticas. Graças ao nosso bom senhor, o demônio se virou e submergiu enquanto eu perdia a consciência.
Alguns minutos depois fui encontrada por membros da tripulação, eles acreditavam que eu escorregara e batera a cabeça. Uma concussão leve explicaria ver coisas que não estavam lá e a perca do controle de minha bexiga. Pro caralho com o que aqueles idiotas acreditam.
Eu sei o que eu vi.
Eu não seria capaz de esquecer, eu nunca fui capaz. Eu o vi em cada noite, cada detalhe de seu rosto aterrorizante ainda me atormenta, eu tentei esquecer.
Eu não consigo, eu não sou capaz, eu estou desesperada. Eu escrevo isso agora em lágrimas, só eu sei o desespero que me afoga a cada noite. Mesmo em terra firme eu sinto que a qualquer momento ele irá surgir do chão e me engolir.
Eu retornei ao Drake para vê-lo outra vez, até hoje não havia acontecido. A obsessão de uma vida inteira, eu jamais poderia ser feliz sem o ver de novo. Não poderia ser feliz, eu não irei ter paz nunca.
Eu preciso o matar.
É a única forma de conseguir superar esse terror que inunda minha alma.
E hoje eu o reencontrei, depois da aparição daquela nova criatura em meio às ondas, mandei que alertassem a tripulação, muitas testemunhas viram o ser e logo o navio inteiro tinha consciência da ameaça. Como quem conta um conto aumenta um ponto, as histórias o retratavam muito mais ameaçador do que ele realmente era.
Ele veio em nossa direção e, céus, eu tô cansada demais pra isso. Concluo esse relato amanhã.
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