A Terras das Chamas, parte final
No Palácio ZhuRong, ao fundo dos corredores, uma única porta permanecia aberta. Tratava-se de um quarto onde, em uma cama luxuosa de dossel vermelho-escuro e cercada por almofadas, repousava um velho com a pele pálida dos setenta anos. Ao lado, sobre um criado-mudo envernizado, folhas de ervas medicinais em uma pequena xícara de porcelana exalavam o vapor do líquido fervente em que estavam.
Do lado de fora, postados um em cada lado da porta, dois guardas vigiavam o corredor.
Repentinamente, passos delicados e rápidos alcançaram os ouvidos de todos.
Já sabia-se quem vinha.
Pelos tapetes grossos do corredor, saltos dourados sob um vestido amarelo apressavam-se, o brilho dos calçados entregava o entusiasmo da jovem que os usava. Era uma garotinha, de cabelo preto curto preso em dois nós no alto da cabeça e bochechas avermelhadas pelo esforço das aulas particulares daquela manhã. Seus olhos de jade acompanhavam as tapeçarias nas paredes.
Ela sentia que algo a chamava adiante, algo além da rotina do palácio.
— Cumprindo de novo sua promessa diária, Alteza? — perguntou um dos guardas, sem se mover.
A garotinha parou a poucos passos da soleira, inclinou o corpo e esticou o pescoço para espiar. Quando viu o senhor deitado e encarando o teto em silêncio, voltou-se para os guardas com o rosto inocente, deixando que a expressão muda falasse por ela.
Os dois se entreolharam por um segundo, e como de costume, deram meio passo ao lado. A permissão estava concedida.
A menina atravessou a porta com o cuidado de quem visitava um lugar sagrado, e à beira da cama, fez aquele sorriso que só crianças sabiam dar. — Boa tarde, senhor dançarino.
O velho reclinou-se nas almofadas; olhos emoldurados por pálpebras pesadas brilharam discretamente com a nova companhia. — Já terminou os deveres, Princesa? — sua voz era uma brasa abafada: sem força, mas quente.
— Não todos. É que hoje eu queria continuar ouvindo sobre a floresta das lanternas flutuantes, aquela história que o senhor não terminou da outra vez.
Um sorriso surgiu no rosto do ancião…
Durante seis anos, esse encontro se repetiu.
Desde nova, a princesa fora instruída no controle da aura ígnea e nas técnicas de combate pelos mestres do palácio — mas nem o próprio fogo incinerava o que atrapalhava.
As imagens que a desconcentravam dos treinos e aulas iniciais nasciam longe da própria memória: vinham de relatos, fragmentos contados e ecos de palavras, que mesmo sem rosto, persistiam. Histórias sobre como aquele idoso, conhecido inocentemente por “senhor dançarino”, treinava ao ar livre, onde dizia ser acariciado pelo frescor da manhã e o abraço da noite.
A pequena sequer compreendia o que era ter a grama respirando sob os pés, o vento navegando junto à alma, os animais ganhando forma nos próprios movimentos. Imitar a garça ao levantar os braços? Difícil. Invocar um tigre com as garras à mostra? Impossível. Deslizar como uma cobra em chão seco? Um tormento. Ter os olhos do mundo — dos farrapos das vilas aos nobres imperiais — presos a ti, sem pestanejar? O pior.
Na mente da sonhadora, aquelas visões eram belas, sagradas, eventos que jamais conheceria… a menos que aprendesse a criá-la por si mesma…
Aos dezesseis, seus cabelos estavam na cintura, tingidos de um forte vermelho a partir da nuca. O fogo amadureceu. Kimonos elegantes foram escolhidos, e os passos pelo palácio deixaram de ser os de uma garota curiosa e se tornaram os de quem buscava a verdade e o significado. As histórias pediam mais que atenção: exigiam investigação, confronto e libertação dos véus do tempo.
Para que entendesse e soubesse, precisava perguntar. Perguntar muito. Sempre diante da mesma cama.
— Senhor dançarino, com prática de verdade e a minha própria vontade, posso aprender a dançar com o fogo assim como o senhor fazia?
O velho direcionou os olhos à luz noturna que entrava da janela. — Já faz um tempo que não consigo levantar. Gostaria que um dia a minha arte fosse replicada ao longo dos anos e… ficasse eternizada nas raízes da existência. Porém, eu não quero uma réplica. Quero algo novo, original, mas com resquícios do que um dia foi minha paixão… Posso te contar tudo, Princesa. Absolutamente tudo. Desde que você não copie, crie.
Gerar algo do zero já exigia coragem, contudo, criar a partir do que nunca viu, apenas ouviu, isso era loucura. Como transformar em gestos algo que só vivia na memória de outro? Como desenvolver uma técnica nunca presenciada? Essas perguntas poderiam martelar na cabeça de qualquer um, mas a princesa já tinha sua resposta: ela entendeu que recebeu uma herança indireta, que por mais incompleta que fosse, tinha conceito e potencial.
— Aceito o acordo, pois seria improvável imitar fielmente o que nunca vi. Apenas quero sentir o que o senhor sentia.
As histórias começaram a vir com mais detalhes. O homem falava de suas apresentações em templos e feiras até que chegasse aos palácios e castelos. Os giros eram melhor descritos, não no sentido literal: sobre como era a fluidez da chama que poderia ser de uma águia, um dragão, ou um campo de plantas sendo fatiado por um louva-deus faminto.
— Dançar é transformar o olhar do espectador e fazê-lo sentir com o coração aquilo que os olhos apenas vêem. Assistir uma dança é o mesmo que encarar a mudez de um céu noturno. O céu é o reflexo mais antigo daquilo que ninguém entende, e toda forma de arte, minha pequena, é o reflexo mais recente, uma tentativa humana de traduzir o mistério do antigo em algo mais sensível aos ignorantes.
Aos dezoito, a princesa era outra: seus movimentos incendiavam a noite dentro do palácio, silenciosos, poderosos, inimitáveis, ganhando nomes e significados.
Onde antes era um segredo entre uma garota e um velho, criou-se uma nova arte…
Salto dourado, vestido imperial amarelo, mangas longas e finas… Alguém cruzou a entrada do quarto do idoso, que estirado sobre o leito, reconheceu a presença com o olhar entreaberto.
— Princesa?
— Boa noite, senhor dançarino.
— Não teve guardas na porta pela manhã e nem à tarde, sem contar que o silêncio estava mais alto do que nunca. O que aconteceu?
A princesa sentou-se à beira da cama. — Ordenei que se afastassem da sua paz no dia de hoje.
— … Está praticando sua autoridade?
— Participo das decisões do conselho desde o último inverno. Aprendi a ter voz e a ser atendida como devo.
— Haha, tudo isso só para me agradar?
— O senhor disse que suas danças serviram este império como um protesto mudo perante as decisões dos superiores, e deixou claro que não gosta de ser vigiado. Depois de escutar certas coisas, entendi o porquê do senhor somente sentir conforto neste palácio se contar com a minha companhia.
O velho viu mudanças. Aquela não era mais a aprendiz, nem a princesa do brasão: era alguém que ouvira demais.
— Fale… antes que o tempo nos leve.
— Nos corredores da ala oeste, escutei ministros. Falavam baixo, mas pronunciaram nomes com clareza… Mencionaram uma possível expedição… diplomática… ou armada. As palavras estavam todas erradas.
— Irão explorar a fraqueza de um povo em guerra interna?
— Disseram que podem ocupar sem um único combate. Um deles sugeriu dividir território ao mesmo tempo que outro desejou expulsar qualquer tipo de estrangeirismo. O império está se dividindo, mas a opção por unir forças está cada vez mais próxima.
— Uma aliança com o povo do gelo? Isso seria… contraditório.
— Por isso vim. Quero conhecer os outros povos, ver com meus próprios olhos, julgar com meu próprio espírito, e saber se o império está em prol da paz ou aproveitando de ruínas.
— E se forem mais perigosos que imagina?
— Então teremos o que aprender.
A conclusão firme acompanhada de um sorriso confiante orgulhou o senhor.
— Vejo que está convicta de suas decisões, seu senso de justiça me enche de orgulho. Mas ainda há juventude em teus passos. A força que habita em ti pode num só instante trazer luz ou apenas aniquilação. Se seguir assim, estará prestes a trilhar um caminho feito de ovos, e terá de andar com coragem e delicadeza, pois há seres inocentes que ainda não nasceram, e não merecem ser destruídos antes do tempo. Seja prudente e continue protegendo o seu coração.
Alguns meses se passaram, e no último quarto do corredor do palácio imperial, o tempo pareceu adormecido, a noite se mostrava infinita.
Naquela mesma cama, o velho respirava em compassos longos, puxando o ar com o esforço de quem não conseguia ao menos abrir os olhos.
A porta, que estava fechada, rangeu devagar.
O senhor sabia que estava no horário em que aquela mesma pessoa costumava chegar. No entanto, os sons familiares dos saltos haviam sumido. O que alcançava seus ouvidos cansados era o som de botas. A confusão o atingiu de imediato, pois não fazia ideia de quem se aproximava. A dúvida aumentou quando sentiu alguém ajoelhar-se ao lado da cama, apenas o observando.
— Me contaram… que o senhor está partindo… — A voz era tão familiar quanto o som dos saltos, porém, mais madura, ainda que preservasse traços de juventude.
— É… você? — O tom sábio saía em sopros.
— Sim, senhor dançarino.
— Seus treinos… acabaram?
— Positivo, senhor. Hoje, não vim por histórias. Só queria… ficar aqui. Fique tranquilo, estamos a sós em um raio de cem metros, e posso pressentir quem ousar atrapalhar a nossa paz.
O dançarino tentou sorrir, mas sua boca nem lembrava como. — Você… dançou esta noite?
— Dancei. Durante os treinos e no mesmo jardim de sempre, entre lanternas e colunas. Minhas chamas… consigo enxergar por elas e revelar coisas que sempre estiveram ocultas de mim, e que enfim, estou prestes a conhecer.
— Foi escalada para uma missão?
— Positivo, senhor. Como sempre desejei.
Um riso falho escapou dos lábios vencidos. — Huh… Você fará aquilo que planeja?
— Com exatidão.
— Huhu… É assim que começa… Quando a vontade excede o ilógico… Você se tornou mais corajosa do que eu pensava.
— Quero agradecer sinceramente ao senhor por me ensinar aquilo que nunca tive a oportunidade de vivenciar. Graças a suas histórias, hoje me sinto mais forte e capaz de encarar a verdade que me espera. O senhor transformou a minha vida, serei eternamente grata.
— De… todos os que cruzaram este palácio… você foi a única que me devolveu à luz. Seus olhos… nunca mentiram.
— Foi quando os seus deixaram de se esconder que eu comecei a acreditar.
A chama da lamparina vacilou.
— Se um dia… perguntarem de onde veio sua dança… diga que ela não foi herdada… Encontrada — finalmente, o velho virou o rosto, e enfim, pôde vê-la.
Ajoelhada ao lado da cama, uma moça usava um uniforme militar vermelho profundo e detalhado a ouro nas bordas. A mão enluvada repousada nas coxas ajudavam na postura elegante, onde sobre os ombros, os cabelos negros, invadidos por mechas escarlates do meio a baixo, representavam a mais quente das brasas queimando o céu obscuro. Os mesmos olhos esmeralda que um dia foram inocentes, demonstravam o amadurecimento adquirido por anos de disciplina, entretanto, o queixo levemente inclinado indicava mais dúvida do que fragilidade.
— Como um último pedido… você poderia me mostrar sua dança, Princesa?
— … Como o senhor deseja.
A princesa ergueu-se devagar, sua mão direita cerrada recuou até o centro do peito, e a outra, avançou… como um escudo.
Os véus vermelhos ondularam com a brisa morna. Nada mais se moveu.
Até que o primeiro passo surgiu.
O dedo indicador da mão estendida usou fogo para desenhar um círculo.
— Eu criei essa arte para contestar os limites impostos a mim. O corpo é apenas a metade do que se move, a outra metade é a intenção que o guia e o espírito que o sustenta…
Deformando a circunferência ígnea no ar, uma ave foi formada.
— Certa vez, ouvi a história de uma mulher que, ao ser cercada por uma garça-branca inquieta durante seu treino, foi testada pela própria limitação e instruída pela natureza.
Após as mãos flutuarem diante do rosto como folhas levadas pela brisa, os braços abriram-se como asas.
— Ela tentou repelir a garça usando um bastão, mas a ave não recuou e reagiu com desvios, sem abusar da brutalidade ou sequer revidar.
A princesa deslizou a ponta do pé sobre o tapete, e num giro, executou um corte horizontal com o braço. O fogo acompanhou o trajeto, sem intenção de ferir.
— O corpo analisa, se adapta, e aprende a se compor novamente. O mesmo braço que hoje afasta, amanhã saberá acolher. Tal qual a garça que nunca foge para permitir que o vento trace o caminho.
Com a leveza de uma ave graciosa, ela desferiu um golpe de palma aberta. Suas chamas incandescentes tomaram toda a parede, mas não causaram o mínimo dano. Tanto o seu corpo, quanto sua aura, estavam sob controle de seus belos movimentos ao recuar e continuar, incessantemente.
— Minha aura… ao invés de apenas agredir, espera, sente, e acolhe. Com base nas histórias, estudei as formas que me permitiram observar seres que nunca vi. Bestas, árvores, cada gota de orvalho tem um ritmo que a si pertence.
Entre socos velozes, chutes curtos ou longos, saltos angulados e golpes de alturas distintas, a garota refletia nos seus gestos em chamas tudo o que ouviu e fundiu aos treinos.
Ofegante, velho contemplava com olhos úmidos, e apesar das suas pálpebras estremecerem de esforço, seu sorriso absorvia a luz das chamas. Em sua visão, no lugar do quarto, havia uma floresta.
As folhas sob os pés descalços, os pássaros exóticos cruzando o céu, o vapor das águas escaldantes subindo pelas pedras negras, e sob a neblina tropical dos dotes meilianos, ele se via de novo. Jovem, forte e em movimento com sua túnica artística. A princesa dançava ao lado.
Revelando suas chamas, ambos manifestavam a vida por meio de suas danças — ele, com a graça da arte; ela, com os requintes da guerra.
Um sol a brilhar, uma tempestade a devastar, um pinheiro a balançar, um vulcão a eclodir. A natureza que oculta dentro da boca de um vulcão era invocada nas chamas de uma jovem que deixou de ser solitária e de um idoso que reencontrou sentimentos roubados pelo tempo…
— Você criou… sua arte… Explêndido.
O último golpe envolto em chamas se perdeu no sopro do vento. — Descanse, senhor dançarino. Não se preocupe com sua dança, pois o mundo ainda a verá… através de mim.
— Muito obrigado… Alteza HuoYing.
Ele sorriu… e partiu.
A princesa superou a despedida rapidamente. O foco estava na continuação.
Naquela noite, uma dança apreciada por tantos, abandonou o eco e virou centelha, todavia, renasceu com a nova Chama Eterna dominada por HuoYing, filha do trono de fogo, da restrição dos covardes, e de um dançarino que a ensinou a ouvir…
Nos pátios do Palácio ZhuRong, entre os pilares dracônicos, as danças continuavam narrando uma filosofia sem nome, ainda crua, mas existente.
Para aquela que passou toda a vida enfurnada sob a vigilância dos que a viam como o futuro da nação, sua criação em forma de arte era apenas a forma mais sincera de sentir o que significa viver, e que mesmo presa, era possível ter liberdade.
Mal sabia ela que havia cultivado uma semente que sempre existira, mas com o diferencial de que, um dia, o broto floresceria e iria além de meros sentimentos, evoluindo os conceitos daquilo que era conhecido por arte marcial.
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