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    No calor do sol, isolado, faminto, sonolento, sem alguém que trouxesse uma comida na mesa e nem mesmo quem lhe desse um humilde abraço, um garoto vagava pelo Bambuzal de Arashi, uma floresta em Kiouto conhecida pelos seus mais variados tipos de seres áuricos de pequeno porte e uma linhagem de bambus tão altos que a simples visão de um humano não consegue conceber o topo daquelas plantas esverdeadas e magníficas.

    Mas por mais horrível que a situação estivesse, o garoto quieto e estranho não tremia nem menos chorava enquanto observava o verde infinito.

    Na verdade, ele não sabia o que pensar. Sua mente estava perdida, nem mesmo uma voz ele achava para definir os seus pensamentos.

    Logo, a confusão transformou-se em inaceitação, e logo, a inaceitação transformou-se no temido estresse, assim, dando espaço para as palavras sujas que sempre escutara sobre sua vida.

    “Despachem-o logo, ele já tem mais de seis anos!”

    “Como ele deseja ser um samurai sem aura? Pessoas assim não existem a séculos!”

    Ele se ajoelhou, as vozes na cabeça ficaram mais fortes.

    “Um trivial não deveria permanecer nem mais um segundo na nossa aldeia.”

    “Este garoto não tem mais volta.”

    “Não peguem remorso por um reles trivial.”

    “A graça dos deuses não quis procurar o vosso elemento.”

    “Desculpe, pai. Mas ele não é nosso irmão.”

    “Pegue esta katana, e procure o seu lugar neste mundo. Você ainda tem mais uma chance de viver. Lembre-se do que aprendeu na aldeia…”

    — Ei, você.

    O garoto abriu os olhos, e logo deparou-se olhando ao chão, onde uma pequena poça de água refletia sua imagem, que ao contrário do desespero legítimo, sorria alegremente.

    — Você não gosta deles, não é?

    Estava estranho, era como se a imagem falasse, mas, sem mexer a boca.

    Outro detalhe intrigante era a tonalidade: infantil e brincalhona, algo mais puxado para o feminino. Mas era evidente que não pertencia ao garoto. Ainda assim, soava bastante familiar.

    O pequeno não sabia o que tentar responder, na realidade, nem passava por sua cabeça conseguir. Ele apenas observava.

    — Todos que fizeram mal a você, você quer o mal deles, não é?

    Ainda não haviam respostas.

    — Aqueles que sempre te recusaram, que sempre o diminuíram quando passavam perto de seus treinamentos, você quer que eles sofram, não é?

    O dono do reflexo trocou olhares com ele mesmo por mais alguns segundos… mas não foi o bastante para evitar sua rejeição ao o que ouvia.

    Ele deformou a própria imagem ao bater na água e seguir andando…

    O momento exigia análise, entendimento, mas havia algo que ainda escapava: colocar conhecimentos em prática.

    O primeiro passo, e o mais crucial, era a regra número um da sobrevivência: encontrar comida, afinal, não daria para viver só de brotos de bambu.

    No Bambuzal de Asashi, caçar os seres áuricos seria uma tarefa fatalmente desafiadora. 

    Mesmo na luz do dia, névoas sombrias podiam esmagar qualquer um que se aproximasse sem cautela, onde dentro e fora dela, criaturas áuricas eram tanto um perigo quanto um banquete exótico para quem ousasse caçá-las.

    As vespas eram rápidas e elétricas, um inferno para capturar sem isolamento adequado. Mas quem conseguisse remover suas glândulas elétricas sem se fritar podia aproveitar sua carne crocante e levemente adocicada, perfeita quando grelhada.

    Gafanhotos, apesar de suas pernas destruidoras, eram fáceis de capturar após um salto exaustivo. Sua carne tinha um gosto terroso, lembrava castanhas tostadas, um petisco popular entre viajantes.

    Macacos, furtivos e inteligentes, só eram caçados por especialistas. Mas sua caça, assim como a dos pandas, era malvista; diziam que os espíritos da floresta puniam quem devorasse esses animais.

    Serpentes eram alvos arriscados, corpos giratórios que faziam qualquer erro virar desastre, mas um corte limpo na espinha a tornava indefesa, e no final, uma carne firme e boa para sopas encorpadas.

    Pequenos peixes entre pedras e raízes submersas iluminavam as águas com seus brilhos corporais, era como se manipulassem a própria correnteza para escapar dos incautos. Se a sorte sorrisse, encontrar o riacho que serpenteava pelo bambuzal seria encontrar mais uma fonte valiosa de alimento.

    Já os tigres? Esses sim deveriam ser evitados…

    No início, o garoto optava pelas presas menores, sempre atento à espreita dos verdadeiros caçadores.

    A katana mesmo desgastada servia de bom uso para a execução de insetos comestíveis e coelhos inofensivos.

    Os preparos eram simples, habilidades desenvolvidas pelo próprio pai e repassadas de outras mulheres para o filho: achar uma boa pedra para amolar sua espada; fazer grelhas com o próprio bambu à volta era perfeito para cortar e assar carne; pegar pedras e plantas secas para criar brasa; colocar comida embrulhada em folhas sobre um recipiente improvisado com água quente para cozimento lento. Essas e outras eram técnicas que com certeza iriam funcionar até para o mais fraco dos fracos…

    Caçando como ensinado em sua vila, se abrigando em um casebre de bambu, escondendo dos desconhecidos e maiores perigos da vida áurica, meditando em lugares tranquilos para a alma e vagando quando havia a certeza de que o caminho à frente evoluiria seus conhecimentos sobre a vida, um garoto abandonado com quase uma década de vida cresceu por mais quinze anos…

    Sentado em posição de lótus e à beira da correnteza do riacho em meio ao Bambuzal de Asahi, o homem que um dia fora um garoto rejeitado, meditava com o brilho e o calor do sol em seu rosto. O vento soprava suavemente, balançando seus longos cabelos pretos e as altas hastes de bambu que formavam sombras na areia.

    As roupas marrons um dia usadas foram desfeitas pelo tempo e transformadas em simples enfeites para a empunhadura da única companhia fiel de um espadachim solitário.

    A nudez já não causava desconforto, era apenas mais um detalhe irrelevante diante de uma vida que criou um corpo esculpido pelo rigor da sobrevivência estava forte e ágil. A dieta simples baseada em carne e brotos moldara um físico imprescindível digno de um predador supremo da floresta.

    Sentidos estavam aguçados, nenhum som passava despercebido; até mesmo um pernilongo ousando pousar em uma pele lisa seria cortado como uma folha de papel.

    No entanto, o frio que se aproximava era uma preocupação real. Era preciso novas vestimentas, mas nenhum animal pequeno serviria para tal propósito. Era preciso algo maior, algo digno, algo que representasse o domínio sobre a floresta de bambus; afinal, aquele homem não era qualquer um que poderia cruzar seu caminho, já os ousados ou inocentes que se depararam com uma velha katana, por mais que fossem áuricos, rápidos, espertos, ou até mesmo, estrondosos… nenhum deles era perdoado.

    A paz buscada durante anos, a resposta que um pai queria, finalmente se tornou clara na mente de um jovem adulto: estar sozinho. Absolutamente sozinho. Nenhum som humano, nenhum olhar julgador, nenhuma lembrança de um passado que insistia em persegui-lo. Apenas ele, a sobrevivência, e a espada.

    Entretanto, por mais que tivesse encontrado o seu significado da paz, por mais que ele estivesse adaptado a uma vida complicada, um desejo ardia no peito: o desejo de reencontrá-los. Mas não era ódio, não era vingança, era apenas a necessidade de mostrar, mais exatamente, mostrar o que havia se tornado, mostrar que a paz deles era uma mentira, que seu próprio conceito forjado, na sobrevivência, na solidão, e na lâmina de sua katana, era o verdadeiro.

    Aquela criança sem experiência amadureceu e construiu a própria sabedoria, um crescimento não monitorado por pessoas civilizadas, porém, acompanhado pelos olhos da floresta, e principalmente, pelos reflexos no riacho.

    — Você cresceu bastante, não é?

    Seu reflexo na água continuava conversando com ele, a voz infantil permanecia inalterada. Será que aquilo poderia ser considerado uma companhia? Uma questão estranha, sem dúvida.

    — Você ficou forte, ninguém aqui pode te atrapalhar, não é?

    O homem respirou fundo e olhou para o céu. Pelo visto, ele nunca respondia as perguntas.

    — Entendo, você não está em completa paz. Você sente um buraco, não sente?

    Olhos fecharam-se.

    — Aqueles que o baniram, que zombaram de sua existência, que o rejeitaram, que o descartaram como um pedaço mais velho da madeira mais podre, deveriam pagar… E sim! Sim! Você pode! Sua vontade está mais próxima do que imagina. Eles estão te esperando…! Mas… é que… você ainda não se sente pronto, não é?

    Imperceptivelmente, o canto dos pássaros, o movimento dos bambus e o barulho da correnteza se dissolveram no silêncio. O único humano ficou à mercê de apenas uma voz.

    — Não há problema, você pode se preparar contra aquilo que te incomoda. Você pode vencer. Apenas… confie em si mesmo.

    Foi então que algo já esperado veio: uma presença.

    O homem abriu os olhos lentamente, virando o pescoço até onde vinha a perturbação em seu domínio. Ele não precisava ver para saber. Os pássaros disparando voos, o cheiro quente, o peso do ar, a leveza dos passos camuflados entre pedras e arbustos…

    O visitante não era qualquer um, tratava-se um ser único que o procurava há anos.

    Um tigre…

    A besta de pele alaranjada, peito branco e listras escuras, o olhava de longe… sem pressa, sem medo, apenas seus olhos amarelos brilhando na penumbra do bambuzal.

    Não era uma caça, não era uma ameaça comum, um evento diferente estava prestes a acontecer.

    O espadachim se ergueu.

    Em tanto tempo, algo enfim abalou sua paz, mas pela primeira vez em anos, ele não sentiu medo, apenas uma estranha serenidade diante do perigo que outrora o fazia recuar.

    Era irônico encarar de frente uma ameaça real capaz de tirar sua vida e ainda assim permanecer inabalável…

    O silêncio reinava entre os dois.

    O homem perseguia a fera somente com os olhos.

    O tigre rugia baixo, parecia enxergar além da lâmina do oponente, desnudando sua fragilidade com um único olhar. Para o animal, era como se aquele humano não passasse de um mero trivial segurando uma espada, enquanto ele, por outro lado, era uma verdadeira fera áurica.

    O ataque iniciou-se.

    Incendiando seus tons laranja, o monstro investiu primeiro, suas garras levantavam areia e deixavam rastros de brasas no seu encalço.

    Contudo, usando a agilidade e as técnicas desenvolvidas pelo ex-clã e aprimoradas por vivências na floresta, o espadachim começou esquivar dos primeiros ataques ardentes. A lâmina enferrujada irradiava um brilho prateado contra as chamas que ameaçavam engoli-lo.

    Um corte superficial.

    Outro.

    Mais um.

    O humano se saía bem, mas o tigre não era um adversário qualquer.

    A katana gasta não era suficiente para causar danos severos na pelagem rígida, uma nova estratégia era necessária. Enquanto isso, cada golpe desperdiçado da fera deixava chamas no chão que cresciam, cercavam e transformavam o campo de batalha em um inferno à luz do dia.

    A areia tornava-se mais clara, aquecida, e surpreendentemente, chegava a congelar devido a fenômenos naturais.

    O embate subiu pelas raízes e troncos dos bambus, uma ideia posta em prática por quem achou que teria vantagem.

    Mas não foi bem assim.

    Abrindo o caminho com estocadas e cortes, o espadachim saltava entre as hastes para ganhar tempo contra o tigre que o perseguia para responder com fúria.

    A aura flamejante consumia tudo ao redor, carbonizava as plantas e tornava o ar sufocante.

    Até que o primeiro ferimento sério veio.

    O tigre o alcançou.

    No ar, garras incandescentes rasgaram uma pele fina, e o cheiro de carne queimada poderia desconcentrar a mente mais confiante, mas o homem não gritou, muito menos hesitou.

    A dor serviu para lembrar de que ainda estava vivo. O sangue pingou nas folhas calcinadas, mas as esquivas nunca paravam.

    A katana nunca fraquejou.

    Bambus eram cortados, garras eram evitadas, alternativas eram buscadas…

    Então, a água chamou.

    Queimado e marcado, o homem levou a luta ao riacho, o lugar onde ele sabia que era o seu campo de vitória.

    O tigre, cego pela selvageria, saltou sobre ele, tentando apagar a afronta daquele ser que ousava resistir.

    Mas tudo já estava pensado.

    Eles colidiram na água, o impacto ergueu um redemoinho de espumas e brasas moribundas. A aura flamejante do tigre encontrou seu limite, sua maior força estava irrelevante. 

    Mesmo simultaneamente sendo acertado por cortes de raspão, o homem, com a katana entre os dentes, afundou junto da fera, afastando peixes e seres desconhecidos que queriam evitar intrigas.

    O humano degladiou, resistiu, e impressionou ao encontrar as costas da fera.

    Naquele momento crucial, os braços moldados pela sobrevivência fecharam-se ao redor do pescoço da criatura.

    O tigre se debatia.

    O mundo debaixo d’água era silêncio e tensão. Do fogo que antes rugia, sobrou apenas bolhas dispersas. O brilho feroz de olhos amarelados, apagou-se.

    Ao bater as costas no fundo do riacho, o homem apertou firme: eram suas últimas forças.

    Por fora d’água, percebeu-se que as bolhas pararam. A paisagem, com o verde misturado com o preto dos bambus queimados, o amarelo das areias e do sol escaldante, e o azul do céu e do riacho límpido, estava caoticamente quieta…

    Segundos se passaram e nenhum dos dois emergiu.

    Os animais voltavam, o riacho trafegava, as fuligens caíam, o vento soprava suavemente…

    Foi quando um único suspiro afoito denunciou a vida do homem, que movendo-se lentamente, com apenas o pescoço visível acima da superfície, nadou até a margem. 

    Ao se erguer, a cena revelou-se por completo — nos braços da sobrevivência, jazia o corpo inerte do tigre: trezentos quilos sem vida. A morte causada por afogamento era certa.

    O vitorioso caminhou até para distante da margem, sua respiração estava ritmada, tranquila. As feridas ardiam, mas ele não sentia mais dor. Somente a certeza.

    A criatura foi largada na areia, reduzida a nada mais que alimento e matéria-prima para vestimentas; e o homem, ciente disso, observava em silêncio.

    O bambuzal era dele.

    Ninguém naquela área era páreo.

    Seu mundo… estava em paz…

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