Sara permaneceu imóvel, com um pé em frente ao outro, surpreendida por estar na mira do aurano Mostar. Não ousou sequer abrir a boca. Temia que um único movimento seu pudesse desencadear o ataque. Sabia que a energia aurânica, disparada à queima-roupa, lhe traria consequências graves — poderia deixá-la inconsciente, ou pior, matá-la.

    — Espere. Ela está conosco — declarou uma voz familiar. 

    Embora paralisada de medo, Sara arriscou mover levemente o pescoço, espiando de soslaio.

    — Pai? — disse ela, reconhecendo-o ao lado do vulgar que havia visto em casa. Uma esfera de luz branca flutuava acima deles, lançando uma pálida iluminação no interior da cabana.

    O alívio inundou seu peito quando o aurano amarelo desvaneceu a energia que cintilava na mão e abaixou o braço.

    — O que está fazendo aqui, Sara? — indagou Camilo, o tom severo, mas com um leve traço resignado. — Não deveria estar na cama a essa hora?

    — É que eu acordei e escutei barulhos. Quando fui ver o que era, vi esse cara na sala — explicou, apontando o dedo para o vulgar. Logo deu um passo em direção ao pai, buscando esclarecimentos. — O que está havendo? Por que o Mostarda tá aqui? 

    — Do que você me chamou? — disse o aurano, estreitando os olhos.

    Uma risada preencheu o interior da cabana. Vinha do garoto vulgar, de aparência franzina e estatura baixa.

    — Não tem graça, Lipe — protestou Juan, melindrado.

    O jovem levou alguns segundos para se recompor.

    — Desculpa, Mô… Mas achei engraçado — disse ele, os lábios ainda curvados em um sorriso, tentando disfarçar o riso.

    — Foi mal — disse Sara, voltando sua atenção para o aurano. — É só um apelido que criei quando minha…

    — Espera, você é vulgar? — interrompeu Juan, ignorando a justificativa dela. — Não estou vendo madeixas azuis no seu cabelo. — Em seguida, olhou para Camilo. — É sua filha, não é? Foi adotada? Ou é mestiça?

    — Nem uma coisa nem outra — respondeu o aurano vermelho, com firmeza. — Sara Buarque é minha filha legítima, e a mãe dela também era fidalga. Mas, por causa de uma condição congênita, a aura dela é mais equiparável à do Felipe do que à sua. 

    — Então ela é uma vulgar igual a mim? — perguntou o rapaz chamado Felipe.

    — Não! Não sou — Sara protestou, erguendo a voz. — Sou fidalga, igual ao meu pai. 

    Felipe comprimiu os lábios, claramente arrependido por ter contrariado a garota. Juan, no entanto, permaneceu cismado.

    — Camilo… Mesmo sendo sua filha, podemos confiar nela?

    — Tanto quanto vocês confiam em mim — respondeu ele, trocando um olhar rápido com a garota. — Agora vamos indo. Estamos correndo contra o tempo.

    — Mas por que a pressa? — Sara perguntou, desorientada. — O que estão fazendo aqui, afinal? Esse lugar não era um segredo de família?

    Camilo suspirou, impaciente.

    — Explico depois, Sara. Vamos.

    Ele abriu a porta da cabana, permitindo ao vento frio da noite percorrer o recinto. Juan apanhou uma bolsa de viagem jogada no chão e seguiu atrás de Camilo, acompanhado de Felipe. 

    Curiosa e inquieta, Sara saiu atrás deles. Assim que seus pés descalços tocaram a areia, deu uma boa olhada na vastidão sombria do mar e na escuridão que abraçava o interior da ilha, torcendo para que a caminhada na praia não se tornasse um passeio na mata. Antes que pudesse acelerar a passada para alcançar o pai, que andava à frente dos rapazes, Sara flagrou o vulgar segurando a mão do fidalgo, ambos entrelaçando os dedos como um casal de namorados. E a visão da bolsa de viagem pendurada no ombro de Mostar a fez compreender toda a situação

    Recordou-se da entrevista de Juan durante o teste de graduação, sobre ele ter mencionado que seu coração já pertencia a alguém. Nunca imaginou, porém, que esse alguém seria um homem. Mais que isso, um vulgar! Era a primeira vez que testemunhava um casal como aquele. Era… estranho. Errado? Seu tio Célio se apaixonara por uma humana, o que era um tabu ainda maior. Mas isso? Um relacionamento entre castas distintas? Entre um fidalgo e um vulgar? Ainda lhe soava… anti-natural. Juan e Felipe não deveriam estar juntos. A lei era clara. “É terminantemente proibido o relacionamento amoroso entre um membro da casta vulgar e um membro da casta fidalga”. Se forem descobertos pela polícia, seriam condenados a passar anos na prisão. Só que seu pai era policial. E estava ajudando os dois!

    — Quer um autógrafo? — Juan interrompeu seus pensamentos, lançando-lhe um olhar zombeteiro por cima do ombro. — Está me encarando bastante.

    — Não, obrigada. Não sou sua fã, na verdade — respondeu ela, apressando o passo para se alinhar ao aurano. — Mas minha irmã é. Ela é apaixonada por você.

    — Muitas garotas são.

    — Bem, pelo que vejo, acho que as mulheres nunca teriam chance com você.

    Juan soltou uma risada curta.

    — Teriam se eu estivesse solteiro. Eu sou bi. Por isso, o Lipe morre de ciúmes delas.

    — Ah, Mô. Não exagera — retrucou o vulgar. — Só fico irritado com as malucas que se aproximam de você só pra te beijar bem perto da boca.

    Juan consolou o namorado dando-lhe um beijo rápido nos lábios.

    — Se preocupa não, Lipe. Pra onde vamos, eu não terei nenhuma fã tentando me assediar. Na verdade, meu único fã vai ser você.

    — E pra onde vocês estão indo? — Sara quis saber. A bolsa de viagem era um sinal óbvio de que estavam usando o espelho de Greine para deixarem o país sem serem notados pelas autoridades.

    — Hmm… — O aurano parecia relutante em responder.

    — Liberfil — disse Camilo, sem se virar, sua voz firme cortando a noite.

    Um ponto de interrogação despontou na cabeça de Sara. Liberfil? Esse era o único país do além-Leviatã que proibia a entrada de neriquianos. Como os dois fariam para entrar lá? E por que justo aquele lugar? Ela entenderia se fosse qualquer outra região, um refúgio onde pudessem passar um tempo juntos, escondidos dos olhares da sociedade neriquiana. Até mesmo a ilha onde estavam iria servir, tal como seu tio Célio fizera com a humana, embora isso pudesse colocar a família Buarque em risco por ser cúmplice daquele relacionamento. 

    Sara então compreendeu que Juan e Felipe estavam planejando algo muito mais ousado. 

    — Vocês dois… estão fugindo de Neriquia?

    O aurano trocou um olhar cúmplice com o namorado antes de responder:

    — Só queremos um lugar onde possamos ficar juntos. Nada mais.

    A simplicidade daquela resposta não suavizou o choque que Sara ainda sentia. Ela franziu o cenho e encarou o fidalgo que sua irmã tanto adorava.

    — Sério que está desertando? Um aurano famoso como você?

    Ainda que compreendesse a situação, algo dentro de Sara relutava em aceitá-la. Juan Mostar estava disposto a abandonar sua fama e seu status por algo proibido segundo a lei. Ele estava disposto a jogar tudo isso fora, arriscando não apenas a carreira, mas a própria vida, por amor.

    — Não conte para ninguém, está bem? Nem para sua irmã — disse o aurano, num tom mais sério, quase suplicante.

    Sara encontrou o olhar de seu pai. Ele caminhava um pouco à frente, mas os olhos dele a miravam, como se buscasse silenciosamente a compreensão da filha.

    — Acho que não tenho escolha, tenho? — concordou ela, com um suspiro.

    Ainda bem que não acordara Alana para trazê-la junto. Não saberia a reação da irmã ao descobrir que seu amor platônico namorava um rapaz vulgar e que ambos estavam deixando o país para nunca mais voltarem. 

    O grupo continuou percorrendo a encosta da ilha. A lua alta refletia sua luz pálida sobre o mar, delineando as ondas que se quebravam, enquanto o vento agitava suavemente as folhas das árvores. Quando finalmente chegaram a um pequeno cais de madeira, uma embarcação modesta os aguardava, balançando levemente ao ritmo da maré.

     O casal subiu a bordo, conferindo o estado do barco e as provisões estocadas para a viagem. Camilo, pelo visto, já havia preparado a fuga deles. Sara observava em silêncio, aceitando a realidade de que eles estavam realmente partindo para o continente eldriano, deixando para trás Neriquia e todo o mundo que conheciam.

     — Quando estiverem perto de aportar em Eldria, não se esqueçam de tomar a droga para se misturarem entre os humanos — alertou Camilo

    Sara arqueou as sobrancelhas. Droga? Misturar-se entre os humanos? Como isso seria possível? Apesar das dúvidas, manteve-se calada, enquanto o pai continuava:

    — Não percam tempo em Talares. Procurem chegar a Liberfil o mais rápido possível.

    — Certo. Vamos fazer isso — assentiu Juan, na beirada do barco. — A gente agradece de coração pela ajuda. A Sola…

    — Ah, deixe para agradecer quando estiverem morando no sítiozinho de vocês, certo? Embora eu provavelmente nunca vá saber — disse Camilo, com uma risada leve.

    Juan sorriu de volta, seus olhos encontrando brevemente os de Sara antes de se voltarem mais uma vez para o aurano vermelho. Em seguida, enquanto Felipe arrumava algumas caixas na proa, Juan levantou âncora e deu partida no motor. O barco começou a se afastar lentamente, ganhando distância do cais.

    — Bo-boa sorte! — gritou Sara, movendo a mão em despedida. 

    Ela foi respondida por dois acenos e um grito de “adeus” de Juan Mostar enquanto a embarcação ia se apequenando sobre o vasto oceano. A visão do casal partindo deixava um sabor agridoce em sua boca.

    — Será que verei eles de novo algum dia? — Sara perguntou ao pai, sem tirar os olhos do mar. 

    — Espero que não. Os únicos neriquianos que eles querem ver pelo resto da vida são eles mesmos.

    — Que pena. Eu devia ter aproveitado e pego um autógrafo do Mostarda — comentou num tom de leveza, ainda que resignado.

    Camilo riu, mas logo lhe perguntou com seriedade:

    — Quero que seja sincera, Sara. Ver aqueles dois juntos te incomodou?

    Ela não respondeu de imediato, mas quando o fez, sua voz saiu firme.

    — Não.

    — Ótimo. Bom saber que não vai me delatar por ajudar num crime de deserção.

    — Não me importo de ser sua cúmplice.

    Pai e filha, então, começaram a caminhar de volta pela praia, os pés afundando na areia fria e úmida. O vento soprava mais forte agora, carregando consigo o cheiro salgado do mar. De repente, algo leve e pequeno flutuou diante de Sara, chamando sua atenção.

    — O que foi? — perguntou Camilo, ao perceber que a filha havia parado.

    Era uma folha, grande e comprida, balançando suavemente no ar como se guiada por mãos invisíveis. Sara a apanhou e, ao segurá-la mais de perto, notou algo escrito nela. Seus olhos se estreitaram para enxergar aquelas palavras à luz do luar: “Juan Mostarda”.

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