Capítulo 20 - O dia do alistamento (2)
Alana não respondia. Do outro lado da porta, o silêncio imperava com indiferença. Talvez estivesse ignorando-a. Ou, quem sabe, já tivesse ido embora para o Centro de Alistamento, deixando-a trancada no quarto. Sara ponderou sobre isso, um clima de desespero começando a tomar conta daquele cômodo. Alana realmente havia prendido-a em seu próprio quarto? Era uma atitude drástica, sem dúvida. Mas Sara também estivera a um passo de uma decisão igualmente impetuosa minutos antes.
— Tenho que sair daqui… tenho que sair daqui — murmurou, sentindo o pânico subir a garganta.
Correu até a janela e olhou para o jardim seis metros abaixo. Saltar daquela altura era pedir para sair machucada ou até com uma perna quebrada. Direcionou os olhos para além do quintal, na esperança de vislumbrar alguma ajuda. Mas a serenidade bucólica de Lerofonte só lhe oferecia ruas desertas e silenciosas. Aguardou um minuto, dois, três… Nada.
Justo quando cogitava uma solução mais ousada, um carro conhecido dobrou a esquina e estacionou em frente à casa.
— Dona Helena! Dona Helena! — gritou assim que viu a senhorinha sair do carro, sem o habitual uniforme de empregada, já que hoje não era dia de faxina. — Aqui em cima. Aqui!
— Santa Salaris! O que foi, Sara? Aconteceu alguma coisa? — perguntou a vulgar, franzindo o cenho ao vê-la na janela.
— Estou trancada. Venha abrir a porta. Rápido. É urgente!
— Já estou indo.
Dona Helena atravessou o portãozinho de metal da propriedade e desapareceu sob a marquise da entrada. Sara suspirou aliviada. Não sabia o motivo da visita, mas nunca ficou tão feliz em vê-la. Talvez a deusa Shala, no fim das contas, concedesse pequenos milagres.
Ela voltou para perto da porta, e logo os passos apressados ecoaram pelo corredor.
— Menina, quem te trancou aí? — indagou a diarista do outro lado.
Sara torcia para que Alana tivesse deixado a chave na fechadura. Caso contrário demoraria algum tempo até a dona Helena buscar a chave mestra no andar debaixo. Felizmente, numa segunda gentileza de Shala, a porta se abriu com um leve clique, e Sara, finalmente livre de seu confinamento, jogou-se nos braços de sua salvadora.
— Dona Helena, obrigada! Sua vinda foi um presente divino.
— Mas o que aconteceu? — perguntou a diarista, desfazendo o abraço. — Eu não entendo. Por que você estava… — A pergunta ficou suspensa no ar quando os olhos dela notaram o que a jovem segurava na mão. — Isso… é uma peruca?
Sara não se dera ao trabalho de escondê-la. Estava focada demais em sair logo dali para ir atrás da irmã.
— Desculpa, dona Helena. Eu explico depois. Agora eu tenho que ir. — Recuperou sua bolsa que estava jogada no chão e voltou à saída do cômodo. — Por favor, não conte a ninguém sobre a peruca, está bem?
Sem esperar uma resposta, passou pela empregada de forma apressada em direção às escadas. Se corresse até a estação, talvez conseguisse embarcar no mesmo trem que a irmã.
— Você está indo se alistar, não está?
Sara travou a passada no topo dos degraus. Ao olhar para trás, viu a diarista se aproximando novamente, com algo mais a dizer.
— Eu vi você crescer dizendo ao mundo que se tornaria uma aurana. Também vi os fidalgos desprezarem ou sentirem pena deste seu sonho enquanto eu lhes servia comida e bebida. Eu… sou só uma vulgar. Uma diarista trabalhando para uma família fidalga. Mas consigo imaginar como deve ser ruim ter seus sonhos esmagados antes mesmo de tentar realizá-los.
— A senhora não vai me impedir, vai? — perguntou a garota, quase em súplica. — Igual fez a minha irmã ao me trancar no quarto.
Dona Helena balançou a cabeça em negação. Seus olhos pairaram sobre a peruca por um instante, antes de se fixarem no rosto de Sara.
— Eu vou te ajudar.
— Me ajudar? Por quê?
Aquela senhora, que dedicara quase duas décadas de trabalho à família Buarque, parecia ter os olhos marejados ao dizer:
— Porque, ao contrário de mim, você é uma fidalga, não é? Seu… destino imutável… é estar na Academia.
Como nunca antes em sua vida, Sara espiou bem no fundo dos olhos cansados daquela senhora de pele branca e cabelos castanhos. Helena Carias era o nome completo dela. Durante o tempo em que servira aos Buarque, devia ter envelhecido duas vezes mais rápido que o seu pai, cujo sangue fidalgo ainda preservava um pouco da juventude aos cinquenta anos. Porém, essa mesma juventude, de alguma forma, parecia estar presente no brilho amarelado dos olhos de dona Helena.
— Pode me dar uma carona até a estação? — pediu Sara, lembrando que a diarista viera de carro. — Não posso perder o próximo trem.
Um minuto depois, a garota estava batendo a porta do passageiro. A peruca estava escondida numa sacola preta dentro de sua bolsa. Em vez dos falsos fios azuis, usava um boné sobre a touca, a fim de passar despercebida dos funcionários da estação que a conheciam de vista — e, claro, evitar que Alana a identificasse facilmente.
— Pisa fundo, dona Helena.
Atendendo de pronto ao seu pedido, Sara sentiu o corpo grudar no encosto quando o carro acelerou cantando os pneus. O vento entrando pela janela aberta, chicoteando-lhe o rosto, forçou-a a girar a manivela rapidamente para subir o vidro.
Uma viagem de carro até a estação levava menos de cinco minutos. Mas com dona Helena guiando o veículo a sessenta quilômetros por hora, demoraria menos de três. Mesmo nas curvas, o carro era manobrado de forma agressiva, embora firme e precisa.
Ainda bem que Lerofonte era uma cidade pacata, de ruas desertas e bem asfaltadas, pois Sara não aguentaria a adrenalina de ter que avançar semáforos e desviar de carros e pedestres como num filme de ação. Dona Helena já parecia tensa o bastante só de guiar o veículo sem ninguém à vista.
Quando a estação finalmente apareceu à frente, o som de um apito rompeu o ar — o trem estava prestes a partir.
— Droga — praguejou a garota, o coração disparado no peito.
— Se segura.
O velocímetro agora marcava oitenta quilômetros por hora, e o carro avançava em linha reta, sem mais curvas para reduzir o ritmo. Precisava pegar aquele trem! Se o perdesse, suas chances de chegar ao CA antes da irmã seriam quase nulas.
Dona Helena freou o carro em frente ao edifício da estação, deixando os pneus marcarem o asfalto.
Sara soltou o cinto, agradeceu a carona e abriu a porta escutando “Vai, menina, vai”. Ao pôr os pés na calçada, ela correu. Ao olhar além do muro, conseguiu ver os primeiros vagões. O trem ainda estava parado. Tinha que dar tempo.
Entrou no prédio da estação em disparada, dirigindo-se diretamente às catracas. O cartão-transporte estava em algum lugar na bolsa.
— Merda, cacete!
Com as mãos suadas e trêmulas, abriu o zíper da bolsa e vasculhou freneticamente. Por que não pegou o cartão antes!? Lastimou-se enquanto remexia os dedos entre os vários cartões que pareciam surgir do nada na carteira. Não, não o de crédito! Por que raios carregava tantos cartões!?
Outro apito soou, acompanhado pelo aviso de fechamento das portas. O som reverberou pela estação, quase a deixando sem ar.
— Que se dane!
Sem pensar duas vezes, jogou a carteira de volta na bolsa e pulou a catraca.
— Ei, garota!
Ignorou o grito distante de um guarda, proferido no mesmo instante em que as portas se fechavam.
— Não, não, não, não, não — repetia a cada passo largo em direção ao vagão. Quando, enfim, alcançou-o, o trem já começava a se mover, e Sara passou a correr ao lado do vagão, desferindo murros desesperados na lataria. — Espera! Espera!
Mas o trem não parou. Seguiu ganhando velocidade a cada segundo, e Sara, sem alternativa, iniciou uma corrida para tentar acompanhá-lo.
Em qualquer outra ocasião, teria desistido e observado o transporte se distanciar sobre os trilhos. Mas não hoje. Não agora.
Num ato de pura loucura, ela aguardou o último vagão estar prestes a ultrapassá-la e, com um grito interno de coragem, agarrou um dos suportes de metal fixados na lateral da cabine do maquinista. Com esforço, cravou os dois pés na beiradinha que ficava fora da porta. Mesmo nervosa, não se importaria de viajar pendurada ali até a próxima estação.
— Ótimo. Agora é só…
Foi ao tentar encontrar uma posição mais segura para os pés, que Sara escorregou. O pânico tomou conta de seu corpo quando as mãos frouxas se desprenderam do apoio.
Ela caiu.
Bateu a cabeça contra o aço dos trilhos, e a dor explodiu em sua mente. Sua última visão antes de perder a consciência foi a do trem se afastando, levando sua irmã para o Centro de Alistamento.
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