Uma esfera de cristal transparente encaixada no topo de uma coluna de madeira de um metro de altura: era o arauto, no centro de um cômodo silencioso. Um homem de cabelos e olhos dourados, sentado atrás de uma mesa ao fundo, com as mãos firmemente cruzadas sobre o tampo: era Durval Montenegro, anunciando um nome em voz alta, Alana Buarque! Em seguida, mãos de unhas azuis tocaram o arauto, e uma luz da mesma cor, ofuscante como uma lâmpada em frente ao rosto, inundou o recinto.

    Sara abriu os olhos, piscando algumas vezes para se acostumar à luz das lâmpadas no teto, pintado com faixas multicoloridas. Onde estava? Um cheiro forte de produto de limpeza e a maciez do colchão sob suas costas lhe deram uma pista. Virou o rosto em busca de uma confirmação e discerniu, além de uma fileira de leitos, dois homens sentados ao lado de sua cama. Um era o seu pai. O outro, no entanto, levou alguns instantes para reconhecer. Foi a insígnia hexagonal vermelha no uniforme que fez a conexão: era o chefe de polícia de Helió, Dario Lamar, aquele que viera cumprimentá-la em seu aniversário de quinze anos. 

    Camilo conversava com o delegado sem tomar conhecimento de que ela havia despertado.

    — Dario, por favor, entenda. Minha filha já teve o ônus de nascer diferente, mesmo sendo de família fidalga. Não é justo que ela…

    — Pai — murmurou a garota, com a voz modorrenta. 

    O aurano parou de falar e debruçou-se para olhar a jovem de perto.

    — Sara, que bom que acordou! Você me deu um baita susto — disse ele, apertando-lhe o ombro com ternura.

    Só então a garota notou uma pressão em torno da testa. Seus dedos tocaram a textura macia de uma faixa que cobria a região. 

    O som abafado de rodas de metal ao longe a fez imaginar um trem partindo, e quase ao mesmo tempo, uma dor pulsante atravessou sua cabeça, atenuando-se em seguida para uma leve sensação latejante.

    — Tudo bem? — perguntou Camilo, observando o desconforto em seu rosto.

    — Pai, por que o senhor está aqui?

    — Fui dispensado mais cedo da minha missão. Achei que, se voltasse rápido para Neriquia, poderia testemunhar o alistamento da sua irmã.

    A menção à Alana provocou uma dor de cabeça mais forte. 

    — O que aconteceu? — perguntou ela, embora sua mente já houvesse formulado parte da resposta.

    — Você se arriscou demais e bateu a cabeça nos trilhos, é isso o que aconteceu — disse o pai, exalando censura nas palavras. — Ainda bem que um guarda da estação tirou você de lá. Quer me matar do coração, filha? — Desconcertada, Sara desviou o olhar. Não estava acostumada a ouvi-lo naquele tom severo. — Me contaram que você estava pendurada na porta de um trem! Que ideia mais maluca foi essa?!

    Enquanto tentava formular uma resposta, Sara se lembrou de algo crucial. Levou a mão até a parte do cabelo que não estava coberta pela faixa e estendeu alguns fios escuros diante de seus olhos. Havia saído de casa usando um boné e guardara a peruca na bolsa. 

    — Sentindo falta de alguma coisa? — perguntou o chefe de polícia. Ele puxou uma sacola de papel debaixo da cadeira e retirou um ornamento familiar. — Sua peruca azul?

    Sara engoliu em seco. Sua farsa tinha sido desmascarada, e pelas autoridades, algo que só imaginaria acontecer após seu fracasso no exame (caso fracassasse). Ser flagrada antes mesmo de ter aproveitado sua chance foi o pior dos cenários.

    — Por sorte, nem o guarda que te salvou nem os enfermeiros na ambulância revistaram sua bolsa. Mas a equipe do curandeiro que cuidou do seu ferimento descobriu o adereço e avisou a delegacia. Mas ele ficou confuso quando viu sua identidade e notou que era de casta fidalga. — Dário olhou para uma prancheta que estava sobre o colo. — Agora, não sei ao certo se devo enquadrá-la sob a lei nº 2627, que proíbe os vulgares de se alistarem para a Academia, afinal, preciso levar em conta que você é de uma família fidalga. Enquanto estava desacordada, conversei com seu pai sobre seu histórico, a pressão psicológica pela qual está passando e tudo mais. Então quero ouvir de você, garota. — Dario voltou o olhar para Sara em uma expressão dura. — Está satisfeita agora? 

    A menina piscou os olhos, tentando compreender a pergunta. O aurano continuou:

    — Sua pré-avaliação com o supremo Montenegro, sua tentativa ilegal de fazer o exame… você fracassou em todas elas. Está satisfeita?

    O “não” ficou preso em sua garganta, sufocado pela exaustão de tantas falhas ao longo de sua vida — das brincadeiras excludentes no Jardim de Infância a um escorregão que quase  a matou. Por fim , cedeu ao mover a cabeça em uma concordância abatida.

    — Ótimo. Fingirei que nunca intentou prestar o exame de alistamento. Em todo o caso, você só queria pregar uma peça na sua irmã, não é mesmo? Contudo, não posso ignorar o porte ilegal dessa peruca. Será fichada por esse crime, e a pena será o pagamento de uma multa. De acordo? — perguntou ele, intercalando o olhar entre Sara e Camilo. 

    — Sim, parece justo. Agradeço a compreensão — assentiu o pai, aliviado.

    — Muito bem. O curandeiro disse que poderia receber alta assim que acordasse — continuou Dario, focando-se apenas na garota dessa vez. — Nós havíamos sugerido levá-la à delegacia, mas pedirei que um aurano vá à sua casa mais tarde para você assinar um termo de declaração. Seu caso demanda um pouco de discrição, caso não queira uma foto sua estampada no Utopia de amanhã. “Uma fidalga com corpo de vulgar?”. A pauta com certeza chamaria atenção, embora talvez fosse vetada pelo DCM.

    Sara visualizou a manchete do jornal: “Fidalga ou Vulgar? O segredo por trás da herdeira que não pôde se alistar na Academia.” Imaginou o choque de seus colegas de turma ao descobrirem sua identidade fidalga, embora já não tivesse mais contato com eles após o término dos estudos. Era provável que o Departamento de Controle Midiático realmente impedisse a publicação do caso, só pelo inconveniente de ter que lidar com a situação, contudo, do jeito que sua sorte parecia virada do avesso, não duvidava de nada. Se Dário estava disposto a mantê-la fora dos holofotes da mídia, melhor para ela. 

    — Só mais uma coisa antes de ir — disse o chefe de polícia, com o olhar sério. — Essa peruca… foi vendida a você por um sintético de Shala? 

    A expressão surpresa de Sara foi tomada por um “sim” pelo delegado. Ele explicou que havia um grupo criminoso composto por seis sintéticos falsos, cada um alegadamente servindo a um deus neriquiano. Esses impostores facilitavam práticas ilegais, incluindo a venda de identidades falsas para vulgares que sonhavam em ingressar na Academia. Isso explicava o comportamento transgressor do indivíduo mascarado que Sara havia encontrado.

    Então, como fizera com a irmã, a jovem narrou seu encontro com o suposto sintético de Shala, desta vez, fornecendo mais detalhes à medida que o policial lhe jogava mais perguntas.

    — Esse sintético se aproximou de você já conhecendo suas intenções de entrar na Academia — concluiu Dario. — Provavelmente vinha te espionando muito antes do primeiro contato. Mas, infelizmente, ainda não sabemos como eles conseguem monitorar tantos candidatos à pária. 

    — Eu não sou uma pária — reagiu a garota, sentindo-se atingida pela palavra.

    — Não se preocupe. Como decidimos invalidar sua tentativa de prestar o exame, não terá de carregar esse rótulo. — Dario deu um suspiro forte e se levantou. — Bom, isso é tudo por agora.

    O aurano deixou a enfermaria, e um silêncio recaiu sobre o lugar por alguns segundos, até Camilo abrir a boca com uma palavra inesperada:

    — Desculpe.

    Sara arregalou os olhos. Estivera pronta para receber reprimendas, ou no máximo, frases condescendentes, e não um pedido de desculpas. 

    — Pouco antes da sua mãe morrer, conversamos sobre você e sua irmã, sobre o futuro de vocês duas. — Ele parou, provavelmente revisitando memórias distantes. — Eliza me disse que, enquanto estivesse viva, daria todo o apoio e amor que precisassem, independentemente do quão absurdos fossem os sonhos de cada uma. E depois que ela partiu, prometi a mim mesmo que educaria vocês desse jeito. — Ele fez uma pausa, respirando fundo. — Não que eu me arrependa de ter te apoiado nesse sonho de entrar na Academia, mas… eu esqueci em educá-la numa coisa.

    — No que? — Sara quis saber, atenta às palavras do pai. 

    — Filha, tá tudo bem falhar.

    A frase pareceu ficar suspensa no ar, sendo absorvida letra a letra pela garota que sentiu os olhos se encharcar de lágrimas. Seu pai tinha razão. Ele se esquecera de lhe ensinar essa lição. Do contrário, estaria agora acomodada na poltrona de um cinema, desfrutando de um bom filme, e não deitada em um leito com a cabeça enfaixada e dolorida, amargurando seu último fracasso e sentindo que sua vida perdeu o sentido.

    Sara tentou abrir a boca para dizer que realmente não estava tudo bem, mas só conseguiu gemer e chorar.

    ******

    Após deixarem a clínica, cujo atendimento lidava com pouquíssimos pacientes, pai e filha voltaram para casa em uma quieta caminhada. Sara não estava no clima para conversas casuais, tampouco importantes. E Camilo também não abria a boca para tecer qualquer comentário, provavelmente querendo dar a ela um tempo para processar o ocorrido.

    Um assunto só veio à tona quando um carro passou por eles. Dona Helena! Sara perguntou ao pai se ele a tinha visto. Havia ocultado o envolvimento dela em seu depoimento ao policial, para não torná-la uma cúmplice. Camilo tranquilizou-a ao dizer que encontrara a vulgar na clínica, toda aflita e culpada pelo que havia ocorrido. Ele recomendara a senhora que fosse embora e não dissesse nada do que fizera, que era melhor deixar que os fidalgos resolvessem a situação. Dario Lamar também concordara em fazer vista grossa para a vulgar, já que o envolvimento poderia comprometer o emprego dela.

    Ao chegarem em casa, Sara subiu direto para o quarto. O ambiente trouxe de volta as lembranças da briga com Alana, fazendo a frustração, a raiva e a tristeza tomarem conta de seu corpo enquanto se deixava cair na cama. Várias horas haviam se passado desde o embate entre as duas, e Alana certamente já tinha sido aprovada no exame, como qualquer outro fidalgo, enquanto Sara estava ali, abatida, sem vontade nem para tomar um banho.

    Pouco depois, Camilo apareceu no quarto perguntando se ela gostaria de um lanche e se queria algo especial para a janta. Só então Sara teve ciência do estômago vazio desde que acordara. Mas embora o pai tentasse amenizar a dor de suas feridas internas, ela sentia-se indiferente a qualquer sabor.

    — Qualquer coisa serve — respondeu, ainda deitada na cama. 

    O som de passos rápidos subindo as escadas fez seu coração disparar, e, em poucos instantes, Alana entrou no quarto, ofegante. 

    — Sara, você… — A irmã calou-se ao ver a faixa na testa. Olhou para o pai e de volta para Sara. — O que aconteceu? Você se machucou?

    A Buarque que foi privada de ser uma maga sentiu o sangue ferver ao rever a irmã ali.

    — Sai daqui! — deixou a raiva falar.

    — Sara, eu… 

    A garota de cabelos negros arreganhou os dentes. Conteve o ímpeto de pular da cama e esmurrar aquele rosto quase idêntico ao seu. Em vez disso, expandiu os pulmões e vibrou as cordas vocais em um grito de arranhar a garganta:

    — SOME DA MINHA FRENTE!

    A cor sumiu do rosto de Alana, que engoliu em seco. Os lábios trepidantes querendo dizer algo em resposta morreram em silêncio enquanto os olhos se mostravam marejados. Ela girou nos calcanhares e saiu do quarto como um animal escorraçado. 

    Sara não iria perdoá-la pelo que fizera. 

    Jamais!

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