Capítulo 23 – Compulsão
Alguns dias após o exame de alistamento, Camilo foi novamente convocado para uma missão no além-Leviatã. Ficaria longe de casa durante as três semanas sagradas, mas garantiu voltar até a véspera do ano novo. Antes de partir, tentou convencer a “filha vulgar” a fazer as pazes com a fidalga. As gêmeas mal trocavam olhares ou palavras e também não se sentavam mais juntas à mesa de refeições. Ao pai, Sara prometeu fazer um esforço nesse sentido, mas apenas para não preocupá-lo.
A ausência de Camilo, contudo, não mudou a dinâmica entre as irmãs. Alana, talvez por orgulho ou vergonha, não insistiu em reaproximações inúteis, e Sara se sentia aliviada por isso. Elas pareciam compartilhar o incômodo de estarem sob o mesmo teto, embora valorizassem as paredes e portas que delimitavam seus espaços.
Sara evitava ir muitas vezes à sala ou à cozinha, pois a irmã usava esses cômodos mais do que ela. Porém, certo dia, ao sair do quarto para encher sua garrafa de água, algo a fez parar na sacada interna do segundo andar. Lá embaixo, na sala de estar, Alana não estava sozinha. Um jovem fidalgo de cabelos parcialmente loiros encontrava-se perto dela. Perto até demais. Os dois conversavam de forma tão íntima, que seus rostos quase se tocavam, os braços de Alana enlaçados ao redor do pescoço dele. Falavam em sussurros, quase inaudíveis do segundo andar.
Aquele namoro era novidade. A irmã sempre deixava-a informada da vida amorosa dela. Mas pelo visto, não mais. Seria um caso recente? Bem, não importava. A vida de Alana não importava. Ao menos, era o que achava até ver os dois se beijarem e sentir uma onda de inveja queimar em seu peito.
Sara nunca ligou para namoro, mas aquela cena a fez se sentir rebaixada. Era mais uma coisa que a irmã tinha, e ela não. Na verdade, o incômodo não era por Alana ter um namorado… era por ela ter um namorado fidalgo. Se Sara namorasse um vulgar, não seria a mesma experiência, não estaria pertencendo à comunidade de sua casta. Da mesma forma que desejava ter sido aceita na escola fidalga, trajado o vestido de debutante e ingressado na Academia, ela também queria estar beijando aquele garoto, mesmo não sabendo quem era.
Ela só foi conhecê-lo três dias depois, quando o rapaz bateu à porta de casa, numa tarde em que Alana estava ausente. Não tinha tanta cor no cabelo quanto Alana, mas a julgar pela proporção de fios amarelos, provavelmente pertencia a uma família de ouro. Tinha a pele morena e músculos bem torneados. Apresentou-se como Osmar Galeus e não ficou surpreso ao se deparar com a irmã gêmea da namorada, embora tenha demonstrado desconforto, principalmente quando seus olhos pousaram nos cabelos escuros de Sara.
— Eu devia ter marcado o horário com ela. Desculpa. Volto mais tarde — disse ele, procurando soar amigável.
— Você mora muito longe? Pode esperar aqui, se quiser — disse Sara, abrindo a porta um pouco mais. — Na verdade, ouvi ela falar ao telefone que ia buscar alguma coisa na casa de uma amiga aqui perto.
Era uma meia-verdade. A tal amiga morava numa cidade a três estações de trem de Lerofonte, e pelo tempo decorrido desde que havia saído, a irmã provavelmente não voltaria dentro de uma ou duas horas, caso não enrolasse na casa dessa amiga.
— Hm, tem certeza que ela vai voltar logo? — Ele não parecia muito à vontade com ideia.
— Ahã. Vem. Pode entrar — Sara deu passagem para o fidalgo passar, quase forçando-o a dar passos à frente.
Osmar aceitou o convite, e a anfitriã guiou-o até um dos sofás da sala.
— Quer algo pra beber? Água? Suco? Também temos cerveja, se quiser.
— Eu… aceito uma cerveja. Obrigado.
Sara foi à cozinha e voltou com duas latinhas na mão. Acomodou-se no sofá, ao lado do rapaz, virando seu corpo para ele e mostrando-se bem à vontade. Ela não tinha experiência com flerte, mas, naquela ocasião, sentia-se motivada a fazê-lo. Dar em cima do namorado da irmã soava proibido, tão proibido quanto ter tentado prestar o exame de alistamento. E, mais que isso, tinha um prazeroso sabor de vingança.
Ela expressou curiosidade sobre a vida de Osmar, atirando várias perguntas como se estivesse genuinamente interessada nele. Assim, descobriu que a irmã estava namorando não um colega de escola ou um calouro da Academia, mas um mago quase graduado. Isso não foi uma surpresa. Na festa de quinze anos, até auranos recém-formados mostravam interesse em Alana.
Em certo ponto da conversa, Osmar desviou o assunto para a própria Sara.
— Alana me contou sobre você — disse ele, com a cautela de quem sabe estar tocando em algo controverso.
— É? E o que ela disse a respeito? — Sara deu um gole na cerveja, curiosa no quanto de si a irmã compartilhava com os fidalgos.
— Falou da sua doença… da sua deficiência. — Os olhos dele fixaram-se em seus cabelos escuros. — Deve ter sido… difícil viver assim.
— Você nem imagina. Fui obrigada a ir para uma escola vulgar.
O rosto de Osmar se retorceu como se mastigasse uma comida intragável.
— É. Ela me contou. Conviver com gente de casta inferior por tanto tempo… nossa, isso deve ter mexido com a sua cabeça.
— Mexeu mesmo — concordou Sara, com um sorriso tímido. — Mas não enlouqueci, tá? No fim das contas, ainda sou uma fidalga.
— Você não estaria morando nessa casa se não fosse, não é? — disse ele, permitindo-se também esboçar um sorriso.
— Por falar em quem mora nessa casa… — Sara puxou as pernas para cima do sofá e apoiou o cotovelo nas costas do móvel, aproveitando para se achegar sutilmente ao rapaz. — Me diz. O que você viu na minha irmã… além do cabelo?
Osmar levou a latinha à boca, mas não respondeu imediatamente após a bebida descer pela garganta.
— Bem… ela… ela é bonita. Inteligente também.
Sara reprimiu o riso. Eram elogios tão genéricos que mal pareciam verdadeiros. Se a atração de Osmar por Alana era superficial desse jeito, talvez houvesse uma brecha para ela.
— Se você acha minha irmã gêmea bonita, você também me acha bonita?
Osmar arqueou as sobrancelhas, surpreso com a pergunta.
— Ehh… de certa forma, acho que… sim? — respondeu, tropeçando nas palavras. — Quer dizer… Você é bonita. Mas não é exatamente a mesma beleza.
Sara soltou um suspiro insatisfeito, mas logo se recompôs em um ânimo travesso. Ajeitou-se novamente no sofá, sentando-se sobre as pernas dobradas, e aproximou-se um pouco mais do garoto.
— Então tá. Quero que olhe pra mim, mas me imagine com o cabelo todo azul.
— Hein? Por quê?
— Só finge que eu sou Alana, vai.
— Tá… bem — respondeu Osmar, franzindo a testa.
Assim, os dois ficaram se encarando, os rostos a poucos centímetros de distância. Até então, Sara tinha conseguido levar o garoto na conversa, mas agora que surgia uma abertura para fazer algo mais ousado, refletiu se deveria prosseguir com aquilo. Seus olhos miraram nos lábios do rapaz. Nem mesmo na época da escola, quando seu colega vulgar dera em cima dela, Sara havia se interessado pelos lábios de alguém. Dessa vez, no entanto, a boca era a de um fidalgo, a mesma boca que sua irmã beijava.
Reunindo a mesma coragem que quase a transformou numa pária, Sara diminuiu a distância entre ela e Osmar com um movimento rápido. Seus lábios colidiram de forma desajeitada. No instante seguinte, recuou a mão que estava apoiada no encosto do sofá e levou-a ao rosto do garoto junto com a outra. Acabou perdendo o equilíbrio e caindo sobre o corpo dele, ao mesmo tempo em que sua língua tentava desbravar seu primeiro beijo.
O beijo… não era tão mágico quanto havia imaginado. Pensou se realmente estava fazendo aquilo certo. Talvez precisasse de mais alguns segundos para suas bocas se encaixarem direito. Mas embora não sentisse o prazer esperado, algo dentro dela dava pulinhos de alegria. Estava beijando um fidalgo! Ela, que não era considerada uma fidalga, estava beijando um. Era como se atravessasse os portões de uma escola fidalga ou entrasse na sala de alistamento do CA. Ou como se provasse o vestido de debutante que só sua irmã vestiu. Sentia-se mais fidalga com esse beijo do que quando se olhara no espelho usando uma peruca azul. Era o sentimento de validação de, enfim, ser uma garota normal.
— Sai de cima de mim, sua louca!
O empurrão foi tão forte que Sara se viu arremessada contra o sofá no outro lado da sala. O impacto fez ela tombar no chão junto ao móvel.
— Mas que nojo! Que nojo! — praguejava o rapaz. — Aghhh!
Meio desorientada, Sara ergueu-se para observar o fidalgo por cima do sofá virado. Osmar cuspia no chão como se tivesse areia na boca. Não era o rosto de alguém que desgostou de um beijo, mas o rosto de quem parecia ter engolido um verme.
— Sua vulgar imbecil! Por que fez isso?! Perdeu a cabeça!? — disparou, enfurecido.
Sara estava atônita com aquele comportamento. Havia esperado algum tipo de rejeição. Afinal, que fidalgo normal curtiria o beijo de uma vulgar, mesmo que teoricamente ela não fosse uma? Mas aquilo era outra coisa. Era…
— Escuta aqui… — disse Osmar com o dedo em riste apontado para ela. — Nunca… nunca se atreva a beijar um fidalgo! — Ele cuspiu mais uma vez e secou os lábios com a manga. — E pro seu próprio bem, não conte a ninguém o que fez agora. Nem mesmo pra sua irmã, escutou?
Sara queria ter dito algo em concordância, ou mesmo anuído com a cabeça, mas sua única resposta ao estouro daquele homem foi um tremor nos lábios e uma crescente liquidez nos olhos. Somente quando Osmar saiu da casa, batendo a porta atrás de si e deixando um rastro de impropérios no ar, que sua reação se converteu em um choro ruidoso, sentindo que jamais voltaria a beijar um homem em sua vida.
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