Capítulo 18: Como pode um cadáver chorar?
Renato abriu os olhos de sobressalto, assombrado, assustado. O coração era como uma britadeira batendo em suas costelas. A respiração estava irregular. O ar não queria entrar nos pulmões. Era como se as vias aéreas estivessem obstruídas. Ele tossiu com força, o que desencadeou o vômito. O conteúdo que saiu de seu estômago era azedo, cheio de sangue escuro e pedaços de carne que parecia ser dele mesmo.
Se mexeu e percebeu que estava coberto de sangue. Suas roupas estavam cheias de buraquinhos. Sentiu dor ao movimentar a mandíbula e constatou que havia alguma coisa metálica arranhando os ossos, internamente, na região da têmpora.
Se ergueu. A visão demorou para funcionar direito. A tontura passou após alguns segundos.
Conferiu o corpo, onde deveria ter sido dilacerado pelas balas, mas estava tudo intacto. Não havia ferimentos.
Caminhou até o camaro, que ainda estava em chamas, e viu um cadáver carbonizado e partido ao meio. Suspirou. Seus sentidos e emoções ainda estavam bagunçados. Olhou em direção ao portão, que estava aberto, e viu a estrada. Sabia que era impossível alcançar o Mercenário Possuído para resgatar Jéssica e Mical. Olhou para os carros no estacionamento, a maioria estava destruída por causa do míssil, mas alguns estavam intactos. Renato teve uma ideia melhor. Dessa vez teria que funcionar!
Ele subiu as escadas, correndo, e a primeira coisa que notou foi que ele conseguiu fechar uma distância muito grande em pouco tempo. Subiu todos aqueles degraus rapidamente, sem nem mesmo ficar cansado.
Chegou ao terceiro andar, onde ficavam os quartos. Foi até o quarto de Clara Lilithu, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira ao lado da cama e pegou a pena de fênix. Sua mão formigou só de segurar aquele ítem.
Bateu a pena contra o peito e, nas suas costas, explodiu um par de asas negras e escamosas, que reduziu sua camiseta a trapos no chão, tão grandes que roçavam no teto e tocavam nas paredes. Renato as recolheu e caminhou até a janela, e saltou. Em pleno ar, bateu as asas e conseguiu subir até o céu. Era meio desajeitado. Não sabia direito como fazer para subir ou descer, e nem como controlar a velocidade, mas o que importava era que estava indo na direção do furgão numa velocidade incrível.
Ele conseguia sentir a presença e energia santa emitida pelas duas meninas. Conseguia sentir o demônio dentro do mercenário, salivando, louco para devorar uma alma. Eram como grandes faróis chamando por ele. Qualquer um pensaria que era muito diferente o tipo de emanação energética entre eles, mas Renato sabia que eram iguais. Todos parecidos com todo o resto nesse universo de Deus.
Se aproximou da avenida, pouco acima dos carros indo e vindo no fluxo de cidade grande, e até conseguia ouvir as buzinas e palavrões de motoristas irritados uns com os outros. Era como um vulto, uma sombra, voando em alta velocidade. Seus olhos captaram o furgão e, em questão de segundos, estava na cola.
As portas traseiras se abriram, e ele viu Jéssica e Mical caídas, amarradas numa rede da cabeça aos pés. Elas olhavam para ele, com olhos assustados, implorando por ajuda. Também viu um homem alto, musculoso, com uma pistola na mão, atirar contra ele. Renato bateu as asas com força e ganhou altura. Ficou bem em cima do furgão. Os tiros continuaram vindo em sua direção, atravessando a lataria do teto. Viu Kath olhar assombrada pela janela e puxar a submetralhadora.
— Você já está morto! — berrou ela e mandou a rajada de tiros.
Renato manobrou novamente e girou como um pião, em pleno ar, por sobre a cabine, e parou ao lado da janela do motorista. Lúkin não podia acreditar em seus próprios olhos.Tentou puxar a pistola, mas Renato foi mais rápido. Ele enfiou a mão dentro do bolso da calça e tirou a única granada que lhe restava, e a jogou, através da janela, pra dentro da cabine do carro.
Lúkin viu a granada entrando em câmera lenta, passando ao lado de seu rosto e indo em direção a Kath. Ele estendeu a mão e pegou a bomba em pleno ar, e jogou de volta para Renato. Mas a bomba, numa distância de poucos centímetros dos dedos de Possuído, explodiu.
A cabine travou sobre a pista e virou um pilar de fogo, jogando estilhaços de vidro e lataria para todos lados. A parte de trás do furgão, por causa da parada brusca e a força da explosão, empinou e rodopiou no ar. O carro capotou e girou no asfalto, e só parou o percurso quando se chocou contra um poste.
O trânsito tinha virado um caos, com carros virando bruscamente, tentando evitar seja lá o que estivesse acontecendo, e batendo uns nos outros. Logo, toda a avenida virou uma grande fila de carros batidos, num tipo de acidente coletivo. Volta e meia uma buzina ressoava.
Na outra pista, vários carros tinham parado e as pessoas estavam filmando.
Renato recolheu as asas e pisou sobre o asfalto. Viu o estado do furgão. Ele não imaginava que o estrago seria tão grande. Engoliu em seco e desejou muito que elas estivessem vivas. Se aproximou.
Foi quando Lúkin surgiu numa das janelas do carro, se espremendo entre as ferragens e destroços, trazendo o corpo de Kath em seus braços. Ele pôs o corpo da garota sobre a calçada e virou na direção de Renato. Estava todo coberto de fuligem e cinzas, com metade de seu corpo em carne viva, com a pele de um dos braços descolando.
A expressão era séria, cheia de ódio e mágoa. Os olhos estavam vermelhos. Uma única lágrima solitária havia saído do olho direito e aberto caminho no meio da fuligem no rosto dele.
— Você matou alguém especial para mim — disse Lúkin, com voz grave e fria.
— Ora, que coincidência — respondeu Renato. — Parece que eu não vou ser o único a chorar hoje.
— Como pode um cadáver chorar?
Instantaneamente, Lúkin moveu todos os músculos de seu corpo e correu tão rapidamente que foi como desaparecer. Renato, percebendo o ataque, moveu a cabeça para trás, e sentiu o pé de Lúkin passando a poucos centímetros de seu rosto. Lúkin se virou, tentando um soco; Renato o desviou batendo o braço contra o punho do mercenário. Lúkin tentou outro soco e Renato conseguiu também desviá-lo com um movimento semelhante ao anterior. Foi quando o pé de Lúkin se chocou no peito de Renato, numa bênção poderosa.
Renato foi jogado para trás com força, cruzando o ar, e bateu contra o para-brisa de um carro. A mulher ao volante gritou. Renato ficou de pé, sobre o capô, e abriu as asas, se atirando contra Possuído. Lúkin também vinha em sua direção, ensandecido, com o único objetivo de matar. Parecia um berserker.
Os dois se chocaram ainda sobre o capô. As asas se agitaram e os dois ganharam altura, trocando uma infinidade de golpes. O punho de Renato achava a cara de Lúkin; o joelho de Lúkin achava o estômago de Renato. Eles se agarraram, puxando o adversário para perto, num tipo de Jiu-jitsu no ar, enquanto um tentava imobilizar o outro.
Para Lúkin, bater em Renato era como bater numa muralha. O garoto tinha ficado extremamente mais forte desde o último encontro deles; mas em experiência de combate, Lúkin certamente levava a melhor, e ele conseguia encaixar mais golpes, bater em locais mais sensíveis, causar mais dano.
Achando uma brecha, o mercenário meteu a mão no peito de Renato e conseguiu puxar a pena de fênix. As asas se dissolveram num tipo de pó escuro e desapareceram, e os dois começaram a cair.
Lúkin bateu a pena contra o próprio peito, e as asas ressurgiram, dessa vez em suas costas; enquanto ele chutava o Renato para longe. O garoto, no entanto, conseguiu se segurar na perna de Possuído e, ao invés de se afastar, puxou o adversário para mais perto e, num movimento ágil, afundou a mão no peito de Possuído e puxou a pena de volta. Os dois voltaram a trocar socos violentamente, enquanto despencavam das alturas. A pena, no meio da confusão, caiu para longe dos dois.
As costas de Renato se chocaram brutalmente contra o asfalto, com Lúkin Ivanov por cima, com os joelhos sobre seu peito. Renato sentiu algo úmido na nuca e uma dor aguda nas costelas. Ele achou que fosse tossir, mas a tosse não saiu. Foi quando tomou um soco na cara, e depois outro, e mais outro. Lúkin Ivanov, se aproveitando que estava por cima e que Renato estava atordoado, aproveitou para desferir uma chuva de socos poderosos contra o rosto dele.
— Sabe — Lúkin estava ofegante, cortando as palavras para respirar —, eu tive uma ideia. Foda-se o dinheiro! Eu vou… eu vou estuprar aquelas duas garotinhas e depois… sabe o que vou fazer depois? — E continuava batendo — Vou dar elas pros cachorros comerem! — Ele riu, mostrando os dentes ensanguentados — Uma de cada vez, pra segunda poder ouvir os gritos da primeira.
— Vaishghgfodjjr — Renato sibilou alguma coisa.
Lúkin parou de bater.
— Desculpe, eu não entendi. Pode repetir?
— Eu disse: vai se foder!
Renato moveu o braço, com o punho fechado trazendo consigo um ódio puro, assassino, cheio de vontade de destruir tudo. Com Lúkin sobre ele, inclinado, não foi difícil acertá-lo embaixo do queixo.
Primeiro, Lúkin ouviu o estalo de alguma coisa se quebrando; depois, sentiu uma força aterradora empurrando-o para trás, arremessando-o no ar; em seguida, ele viu estrelas; e só sentiu dor depois de cair.
Ele se levantou rapidamente, ainda vendo estrelas. A boca estava aberta e ele logo percebeu que não conseguia fechá-la. Sua mandíbula balançava lateralmente, para a esquerda e direita, como se o osso fosse feito de alguma substância gelatinosa. O motivo era óbvio: a articulação da mandíbula com o osso temporal se quebrou, assim, ela perdeu sustentação.
A dor era excruciante.
Renato se ergueu. Deu um passo em direção a Lúkin.
Lúkin tentou dar um passo em direção a Renato, mas sua perna travou. Ele tentou forçar o movimento, mas a perna não queria ir.
— Não fode comigo! — Ele tentou falar, mas o som foi algo como “Não shóde cohigó”.
E forçou as pernas para frente. Tentou um soco, mas Renato segurou seu punho com a mão e afundou uma joelhada no estômago de Lúkin, que se inclinou com dor, inclinação essa que Renato aproveitou para acertar uma cotovelada nas costas dele.
Lúkin caiu de cara no chão.
“Não pode ser” lamentava-se ele, sem conseguir pronunciar as palavras.
Renato segurou-o pelo ombro e o virou. Olhou direto em seus olhos e Lúkin teve a impressão de estar olhando para o verdadeiro vazio. Algo muito pior do que as mais cruéis entidades demoníacas.
“O demônio dentro de mim…”
Renato afundou a mão no peito dele. Os dedos, afundavam na carne como espinhos, penetrando, indo cada vez mais fundo.
“… o demônio dentro de mim…”
A mão de Renato atravessou as costelas e invadiu o interior da caixa torácica. Lúkin estremeceu em espasmos e seus olhos reviraram. Ele só teve tempo de terminar um pensamento:
“…está com medo.”
A mão de Renato passou pelo coração do Mercenário. Era outra coisa que ele queria. Enquanto estava ali, com a mão dentro do peito de um homem, ele sentia que era, também, como afundar a mão dentro da alma dele. Foi como se ele mesmo se misturasse à essência de Lúkin Ivanov.
Encontrou o que queria. Era uma substância densa, viscosa, fedida como enxofre e cadáver apodrecido. Puxou a coisa para fora. Era como uma grande massa de piche velho que começou a se enrolar em seu braço.
Foi quando ele se lembrou das chamas que viu em seu sonho, lembrou da destruição, e finalmente entendeu que algumas coisas só têm salvação se forem destruídas. Então chacoalhou o braço, afastando a coisa de si, e a coisa explodiu em chamas. Ela gritou, tentou sair rastejando, mas o fogo a consumia rapidamente. Projeções de gosma balançavam, tentando arrastar-se para longe, mas logo paravam.
Quando o fogo se dissipou, havia apenas uma mancha enegrecida sobre o asfalto.
Renato, sem forças, caiu sentado sobre o asfalto quente. Ofegante, com o corpo todo dolorido, e olhou na direção do furgão. Foi quando viu Andrei correndo para longe, cruzando a avenida, com Kath nos braços. Ele estava muito machucado. Renato tentou se erguer. Não deveria deixá-lo fugir. Aquela era sua chance de alcançá-lo, mas faltaram forças. Quando ele tentou se levantar, os músculos da perna tremeram e reclamaram com uma dor aguda. Renato percebeu que ficar ali sentado mais um pouco era sua única opção.
Foi quando viu os vários homens armados e fardados cercando-o. Era um verdadeiro exército de uniforme negro.
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