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    No dia seguinte à minha conversa com Selune, preparamo-nos para partir rumo à ilha central de Thallanor.

    — Tudo pronto? — perguntei.

    Os três assentiram, e partimos em direção à névoa.

    Com as pedras de ancoragem apropriadas, a travessia foi tranquila, sem os sustos de antes. Havia um misto de ansiedade e alívio em mim. Aquela jornada marcava o início de uma nova etapa, um divisor de águas em minha vida. Por mais que os desafios enfrentados até então fossem muitos, eu sentia que a sorte, de certa forma, estava ao meu lado. Meu corpo era mais forte, livre da enfermidade que me atormentava. E, além disso, eu havia encontrado aliados inesperados, incluindo Nix. Era impossível não sentir um calor reconfortante no peito ao pensar nela.

    Enquanto Brumora se destacava pela imponência de sua arquitetura opressiva, Thallanor tinha uma atmosfera mais moderna e organizada. Suas ruas largas e distritos bem planejados conferiam à cidade uma sensação de espaço, mas também de hierarquia. No centro, o complexo do Palácio Imperial dominava a paisagem, rodeado por vastos parques e pelas residências das grandes Casas.

    Algumas Casas menores possuíam moradias dentro do complexo, mas a maioria residia nos arredores, numa espécie de zona de prestígio que diminuía gradualmente à medida que se afastava do centro. Era um lembrete constante da hierarquia e da importância atribuída à localização.

    Percorríamos as ruas movimentadas em busca de uma estalagem adequada quando Selune interrompeu nossos planos.

    — Jovem mestre, seria melhor alugarmos uma propriedade. Além de facilitar sua nova identidade como nobre de uma Casa menor, poderemos nos organizar melhor. Seria melhor para mantermos o seu treinamento escondido.

    Seus argumentos faziam sentido. Acenei com a cabeça e perguntei:

    — Você conhece alguém aqui em Thallanor que possa nos ajudar?

    — Conheço sim. Tenho contatos no submundo, exatamente o que precisamos agora. Sem documentos, ninguém vai alugar nada para você.

    — Entendido. — Apontei para uma estalagem próxima. — Eu e Nix vamos até lá. Você e Karlom procurem seus contatos. Será que temos dinheiro suficiente para isso?

    — Para isso, sim — respondeu Selune. — Mas precisaremos de uma fonte de renda em breve. Se o senhor me permitir, posso planejar algo.

    — Tudo bem.

    Passei a maior parte do dinheiro para Selune, ficando com apenas cinco moedas imperiais. Na estalagem, pedi um quarto simples. Enquanto esperávamos, eu e Nix praticávamos exercícios de respiração, mas a energia inquieta da “raposinha” acabava atrapalhando minha concentração.

    Horas se passaram, e nada de Selune ou Karlom retornarem. A inquietação começou a tomar conta de mim. Decidi me concentrar na ligação mágica que compartilhava com Selune, mas a sensação era abafada, como se algo ou alguém estivesse interferindo.

    — Droga — murmurei.

    — Aconteceu alguma coisa? — perguntou Nix, com os olhos atentos.

    — Não sei ao certo. Mas eles estão demorando muito, e sinto que algo está errado com Selune.

    — Temos que investigar.

    Levantei-me, olhando pela janela para calcular quanto tempo de sol nos restava. A prática havia me feito perder a noção da hora, e a luz do dia parecia começar a desaparecer. O tempo estava contra nós.

    Saímos caminhando em silêncio, Nix envolta em seu manto encapuzado, com as adagas presas à cintura, e eu carregando a espada que usava para treinar com Karlom, embainhada ao lado. Seguia a direção que minha ligação com Selune indicava, tentando manter a calma apesar da tensão crescente.

    Conforme nos afastávamos do centro de Thallanor, o cenário mudava. As construções elegantes davam lugar a galpões industriais e ruas desertas. Logo estávamos em uma área de grandes armazéns, onde trabalhadores realizavam serviços de carga e descarga. Meu vínculo me levava até um dos galpões.

    — Nix, esconda-se e fique de olho. — murmurei. Ela assentiu, desaparecendo nas sombras com a agilidade de uma raposa.

    Aproximei-me do local, tentando parecer despreocupado, e caminhei devagar para passar em frente ao galpão. Era uma estrutura ampla, construída em alvenaria e madeira, com um pé direito alto de pelo menos quatro metros. No interior, notei caixas sendo empilhadas ao longo das paredes. Uma escada de pedra levava ao andar superior, onde uma luz fraca escapava de uma das janelas.

    — Ei, garoto! — chamou uma voz severa. Olhei em direção ao som e vi um homem robusto, com um rosto marcado por cicatrizes. — Quer ganhar uns trocados? Parece forte o suficiente para ajudar.

    Fingi hesitar por um momento, mas logo balancei a cabeça e me aproximei.

    — Dec, mostra para o garoto onde ele deve guardar as caixas — ordenou o homem.

    Rapidamente, comecei a trabalhar, carregando as caixas das carroças para o interior do galpão. Dec apenas me observava, como se avaliasse minha eficiência.

    Quando peguei uma caixa menor, percebi que ela tinha um símbolo estampado na tampa: um leão rampante com asas. Antes que pudesse pensar muito a respeito, Dec me cortou:

    — Essas aí não, garoto. As caixas com o leão vão direto pro escritório, lá em cima. Anda logo.

    Minha sorte parecia estar ao meu lado. Com a caixa nos braços, corri em direção à escada de pedra.

    No andar de cima, um curto corredor levava a duas portas. Uma delas estava aberta, e vozes ressoavam de seu interior.

    — Então, Selune, já se decidiu? Não entendo por que abriu mão de sua cidadania por causa de uma marca de escrava. Mas agora que está nessa posição, não preciso mais te tratar com o mesmo respeito de antes. Ah, quantas vezes você me recusou… Vir aqui fazer negócios só com um guarda-costas foi pura imprudência…

    Minhas mãos apertaram a caixa com força, e meu coração disparou. A culpa se infiltrou como veneno: se eu não tivesse marcado Selune, ela nunca estaria nessa situação.

    Adentrei a sala segurando a caixa, tentando não demonstrar meu estado interno. O homem que me havia mandado trabalhar indicou com um gesto para que eu colocasse a caixa em um canto, onde outras iguais já estavam empilhadas.

    Enquanto me movia, olhei ao redor de forma furtiva. Em um sofá largo, um mercador obeso se recostava, exibindo um sorriso satisfeito. Seu rosto era adornado por um cavanhaque bifurcado, e dedos gordos cheios de anéis brilhavam à luz bruxuleante. Ao lado dele, Selune estava acorrentada, impassível, com os olhos fechados. Sua expressão era estoica, mesmo quando o mercador acariciava seu rosto.

    No canto oposto, Karlom estava amarrado, pendurado no teto por uma corda. Dois homens davam socos nele, enquanto ele resistia silenciosamente.

    Contando rapidamente, identifiquei cinco inimigos: o mercador e quatro homens, sem incluir Dec, que havia ficado lá embaixo.

    Deixei a caixa no canto e saí do escritório sem chamar atenção. Desci as escadas, meu coração batendo como um tambor, e voltei para o serviço de descarregar caixas. Cada movimento era automático; minha mente fervilhava com um único pensamento.

    Eu iria precisar da ajuda da minha contraparte sombria.

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