Capítulo 21: Uma lembrança da infância
Quando chegamos à propriedade, nos reunimos na sala de estar da residência principal para planejar os meses que antecediam o torneio, principalmente essas poucas semanas para a temporada de caça aos patrocinadores. Nix preferiu ir treinar, e Karlom a acompanhou até o gramado. Restamos apenas Jorjen, Selune e eu.
— Tenho algumas ideias, mas quero ouvir vocês primeiro. Jorjen, você já presenciou diversos torneios. Todo período de patrocínio segue uma mesma lógica, certo? E, Selune, qualquer ideia que ajude a organizar melhor as estratégias será bem-vinda. Quem começa?
Jorjen limpou a garganta e tomou a palavra:
— O foco deve ser a apresentação aos patrocinadores. As Casas grandes, claro, vão priorizar seus próprios talentos, mas podemos garantir alguma coisa se você se destacar logo nas primeiras semanas do torneio. As Casas menores costumam diversificar seus investimentos, apostando em dois ou três candidatos promissores, mesmo quando tem seus próprios participantes. É nisso que eu focaria.
Ele fez uma pausa, respirou fundo e continuou:
— Quanto à Casa Aníbal, o patrocínio principal está em disputa. Gérard, outro jovem do ramo principal, também vai participar, mas eu vou lutar para manter a cota principal para você.
A menção a Gérard me fez franzir o cenho, mas Jorjen prosseguiu, sem dar espaço para perguntas:
— Outra coisa importante: em cerca de duas semanas após a divulgação das regras, haverá o primeiro grande evento da temporada. Um baile de máscaras no Palácio Imperial. Este ano, não há nenhum herdeiro direto do trono participando, mas duas jovens da família imperial estarão no torneio. Claire e Zia Umbrani, primas entre si, e sobrinhas-netas do Imperador Juliani.
Selune interveio, pensativa:
— Claire e Zia… Elas têm fama de serem boas jogadoras no jogo social. Precisamos ter cuidado.
Jorjen assentiu e completou:
— Em uma semana, no máximo dez dias, as comitivas dos participantes começarão a chegar em Thallanor. Posso posicionar alguns homens nas entradas da cidade para monitorar as chegadas. Saber quem chega e quando, pode nos dar uma vantagem estratégica.
— Faça isso — confirmei, decidido.
Jorjen balançou a cabeça, afirmativamente e continuou.
— Por último, devo começar a fazer os preparativos para algum evento aqui em nossa propriedade. Lista de convidados e potenciais patrocinadores… provavelmente Gérard terá que participar, e precisaremos esperá-lo. Aceito ideias para o evento, mas não vamos nos preocupar agora… deixemos os participantes chegar…
Agradeci as informações trazidas por Jorjen, discutimos elas alguns instantes e pedi que ele se retirasse.
— Preciso conversar com Selune a sós. — Apesar da postura subserviente de Jorjen, havia segredos que eu preferia manter longe de seus ouvidos. Ele fez uma leve reverência e se retirou sem questionar.
Selune se levantou, e, como de costume, veio sentar-se ao meu lado, me provocando. Seus olhos profundos encontraram os meus, carregados de uma intensidade que sempre me desconcertava. Antes que eu pudesse falar, ela arqueou uma sobrancelha, me desafiando a retirá-la do meu lado.
— Bem… O que me diz sobre tudo isso? — perguntei, tentando sondar seus pensamentos.
— Acho que será uma temporada de apostas, tramas e muitas intrigas — respondeu, com um tom sério. — Você precisa manter uma coisa clara na sua mente: todos ali vão querer pisar em você para se destacar. Não importa o quão amistosos pareçam. Isso inclui até a sua irmã.
Engoli em seco. Ela não me dava trégua.
— Não confie em ninguém. Você tem essa tendência perigosa de acreditar nas pessoas… — Ela sorriu de canto, com um toque de carinho misturado à crítica. — Você é fofo, Lior, mas também ingênuo.
Para suavizar o golpe, me deu um tapinha na bochecha.
— Outra coisa — continuou, sem me dar tempo de responder. — Você já tem sua nova identidade. Não sei se é o momento certo para se revelar à sua mãe… Talvez seja melhor manter o disfarce. Mas essa é só a minha opinião.
Fiquei em silêncio por um momento, assimilando suas palavras.
— Só vou saber quando a hora chegar…
Selune respirou fundo, como se tentasse medir suas próximas palavras.
— Lembre-se dos seus objetivos. — Sua voz agora era quase um sussurro, mas carregada de aço. — Nosso mundo só valoriza os fortes. Não se permita fraquejar. Seja insensível e impiedoso. Esmague seus adversários antes que eles esmaguem você.
Fez uma pausa, os olhos brilhando com uma intensidade quase predatória.
— Guarde sua doçura para mim… e para a nossa Nix. — Piscou, fazendo um biquinho provocante que, por um instante, quebrou a tensão na sala. Minha curiosidade sobre o que se passava entre a elfa e a vulpina quase me fez perguntar… mas ela não me deixou falar, continuando.
— Outra coisa — disse, com o tom sério retornando à sua voz —, você ainda está um nível abaixo dos demais participantes. Não podemos negligenciar os treinamentos. Ainda temos cerca de quatro meses até o torneio. Precisamos aproveitar cada momento para praticar.
Assenti, absorvendo suas palavras. — E quanto à investigação que quero conduzir? Quero descobrir quem armou contra minha irmã, quem está tentando derrubar minha família. Pretendo usar os eventos sociais para conquistar patrocinadores para isso também.
Selune suspirou, cruzando os braços. — É uma ideia interessante, meu querido. Mas, sinceramente, acho que você deveria focar em si mesmo. Concentre-se em conseguir os melhores patrocinadores possíveis. O que passou, passou. Não vale a pena se meter nessa investigação.
— Não! — interrompi, a voz firme, deixando claro que minha decisão estava tomada. — Preciso saber… preciso ajudar Cass. Ela e minha mãe sempre estiveram ao meu lado. É hora de retribuir o que fizeram por mim.
Selune estreitou os olhos, avaliando-me. —Honestamente, não entendo por que você se sente tão em débito com elas. Você deveria pensar mais em você.
— Se você quer mesmo saber — respirei fundo, sentindo memórias antigas emergirem —, vou te contar algumas coisas…
Era nosso aniversário. Tínhamos completado doze anos. Minha mãe sempre fazia questão de me levar café da manhã na cama nesses dias. Ela sentia que tinha que me compensar de alguma forma… Cass era perfeita em tudo, enquanto eu… bem, eu… antes, eu era um inútil, né? Pelo menos, era assim que me sentia. Minha mãe tentava compensar o desprezo que eu recebia de todos com seu carinho. Ela sempre me dizia que eu era seu garotinho especial.
Meus meio-irmãos, mesmo os filhos das concubinas, todos, sem exceção, pegavam no meu pé. Me batiam, pregavam peças, roubavam minhas coisas… enfim, até os mais novos me batiam e eu não conseguia me defender por não poder usar mana.
De todos, a pior era Alissande. Ela me odiava de verdade. Achava que eu deveria estar morto ao invés de vivo. Me chamava de desperdício de recursos.
Uma vez, ela chegou ao ponto de contratar uma garota para fingir que gostava de mim. Só para, depois, fazer com que ela me traísse na minha frente, destruindo o pouco que restava da minha confiança. Mas mesmo assim, o que me manteve são foi a amizade de minha irmã e o carinho de minha mãe. Acho que por isso nunca consegui ser tão cruel ou “desumano” com os outros quanto eles foram comigo.
Mas voltando ao nosso aniversário de doze anos… foi um dia que deveria ser especial. Minha mãe me trouxe café na cama, como sempre. Passei o dia todo brincando com Cass. Roderick, filho de Alluna, uma das concubinas de meu pai, também brincou conosco. Foi uma das poucas vezes que me senti aceito.
Quando voltamos para dentro, era hora dos parabéns. Meu pai estaria lá, algo raro. Ele nunca ficava conosco. Suas visitas eram breves, e quando ficava, só dava atenção à minha mãe, suas esposas e concubinas. Nós, seus filhos, éramos invisíveis, exceto por Cass, a quem ele chamava de “joia de Vulkaris.” Naquele dia, ele estaria presente. Era algo grande.
Mas quando vi o bolo… só o nome de Cass estava ali. Apenas uma vela, como se eu nem existisse. Nem liguei, já estava acostumado com aquilo. Mas Cass… Cass ficou furiosa. Lembro dela gritar que éramos gêmeos. Ela pegou o bolo, sem deixar que cantassem parabéns, e o jogou no chão. Saiu pisando duro, indignada por mim.
Cass sempre esteve lá. Sempre me defendeu. Ela enfrentou todos os nossos irmãos por minha causa. Quando ela foi passar uma temporada com nossa bisavó, fui espancado tão brutalmente que quase morri. Dois meses de cama.
O silêncio pairou entre nós por alguns instantes após o desabafo. Senti o peso das memórias, como se cada palavra revivesse as dores enterradas do passado. Selune ficou em silêncio, absorvendo tudo, os olhos fixos em mim. Quando ergui o olhar para ela, vi algo que raramente via na elfa: vulnerabilidade. Seus olhos estavam marejados, e a compaixão neles era quase palpável.
— Sabe, não é legal sentir pena de alguém… — ela começou, a voz suave, quase um sussurro. — Mas deve ter sido muito difícil para você.
Antes que eu pudesse responder, ela se aproximou. Seus dedos tocaram de leve meu rosto, me desarmando, e então, num gesto que me pegou desprevenido, seus lábios encontraram os meus. Foi um beijo doce, diferente das provocações usuais de Selune. Tinha um toque de ternura, algo quase protetor.
Quando se afastou, seus olhos ainda brilhavam com lágrimas contidas.
— Agora você tem a gente, meu querido. — Sua voz estava firme, mas carinhosa, carregada com uma promessa silenciosa.
Foi a primeira vez que ela não fez nenhuma brincadeira, nenhum comentário sarcástico foi quando me beijou de verdade.
Ela se levantou, respirou fundo, enxugou os olhos rapidamente, como se quisesse esconder a emoção que havia deixado escapar. Sem dizer mais nada, saiu da sala, deixando-me sozinho com meus pensamentos… e com o gosto dela ainda em meus lábios.
Fiquei ali, perdido entre as lembranças e o presente, o coração ainda acelerado. As memórias de Cass, minha mãe, dos anos de tormento… e agora Selune, Nix, Karlon. De alguma forma, o vazio que carreguei por tanto tempo parecia estar sendo preenchido, pedaço por pedaço.
O silêncio pesado da sala foi quebrado apenas pelo crepitar da lareira. E ali, sozinho, comecei a revisitar cada uma das memórias que me moldaram.
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