Capítulo 51: A Rosa
Acordei mais cedo do que o habitual, uma sensação de disposição incomum em meu corpo. Ao meu lado, Nix murmurava suavemente em seu sono, mexendo-se de forma quase imperceptível. Seu rosto estava escondido pelos cabelos que caíam sobre o travesseiro, um contraste encantador entre a suavidade de sua expressão e a cauda que se movia preguiçosamente ao pé da cama.
Levantei-me com cuidado para não despertá-la. O quarto estava imerso em uma penumbra reconfortante, com os primeiros raios de sol filtrando-se pelas cortinas pesadas. Shade, como de costume, observava tudo silenciosamente das vigas do teto, seus olhos brilhando das sombras.
Chamei-o com um pensamento, e ele desceu graciosamente, pousando diante de mim com um movimento quase sobrenatural.
— Se é miasma que você quer… — murmurei, estabelecendo a conexão com minha ave.
O fluxo começou quase instantaneamente. Shade absorveu o miasma com avidez, como se estivesse faminto há dias. A sensação era estranha, uma tontura leve se espalhando enquanto eu sentia minha mana ser convertida e sugada em um ritmo acelerado. Era uma troca bastante desconfortável.
De repente, o fluxo cessou. Shade inclinou levemente a cabeça, me observando com um olhar penetrante. Pela nossa conexão, entendi que ele entraria em um estado de hibernação. Sem demora, ele alçou voo de volta às vigas, escolhendo um canto onde as sombras eram mais densas. Lá, encolheu-se, envolvendo-se em um casulo de trevas que parecia pulsar levemente. Senti sua mente se acalmar até desligar por completo, um silêncio profundo substituindo sua presença usual em minha consciência.
Foi então que vozes do lado de fora do quarto chamaram minha atenção. Selune conversava com alguém, sua voz melodiosa e levemente rouca ecoando pelo corredor. A porta se abriu logo em seguida, com ela trazendo o habitual café da manhã equilibrado em uma bandeja. Atrás dela, Joaquim, Joana e Claire entraram em fila, conversando animadamente.
A visão deles juntos arrancou um sorriso de mim. Era reconfortante vê-los interagindo tão naturalmente. Nix, no entanto, resmungou algo incompreensível, puxando o travesseiro para cobrir o rosto, claramente não compartilhando da minha disposição matinal.
Chamei um dos serviçais da mansão, que apareceu rapidamente.
— Traga Gérard — pedi, meu tom firme, mas sem pressa.
Enquanto aguardava, aproveitei para me sentar com os outros e compartilhar o café da manhã. Claire estava especialmente animada, fazendo piadas à mesa que arrancavam risadas até mesmo de Selune. Joaquim parecia mais introspectivo, enquanto Joana observava tudo com um sorriso contido.
Quando Gérard finalmente chegou, não perdi tempo. Ele entrou no quarto com o semblante desconfiado, cruzando os braços enquanto me lançava um olhar inquisitivo.
— Tenho uma proposta para todos vocês — anunciei, minha voz ressoando pelo ambiente.
Expliquei meu plano em detalhes, descrevendo cada etapa e destacando o que esperava de cada um. Fiz questão de enfatizar como todos sairiam ganhando: treinos intensos, experiência real de combate e ainda a chance de ganharmos algum dinheiro.
— Isso não é só pra mim — finalizei. — Vocês vão se tornar melhores, mais fortes, mais preparados.
O duelo com Roderick havia me ensinado uma lição valiosa: uma luta real vale mais do que cem sessões de treino.
Quando terminei, voltei-me para Gérard com um olhar firme.
— Você não tem escolha — declarei, cruzando os braços. — Você vai.
Ele me encarou, os olhos semicerrados, ponderando a firmeza na minha voz. Por fim, suspirou e assentiu com relutância.
Os outros demoraram um pouco mais, trocando olhares incertos antes de concordarem. Mesmo assim, era claro que algumas dúvidas ainda pairavam no ar.
— Eu nunca lutei antes… — Claire admitiu, hesitante, a ansiedade visível em sua voz.
Sorri, tentando aliviar a tensão.
— É exatamente por isso que estamos fazendo isso. Quando tudo terminar, vocês vão ser máquinas de combate.
Minha brincadeira arrancou um sorriso tímido dela, mas o nervosismo ainda não havia desaparecido por completo.
Sem perder tempo, fui buscar Marcus para nos levar à arena, conforme combinado com Rosa. Desta vez, apenas Selune foi conosco, Nix ficou na mansão.
Fomos levados até a arena, ao centro da areia, onde Rosa nos aguardava. Ela segurava duas espadas e vestia uma armadura de couro simples.
— Estes são seus amigos? — perguntou, avaliando-nos com um olhar penetrante.
Assenti com a cabeça, mas antes que pudesse fazer as apresentações, Joaquim se adiantou e estendeu a mão.
— É um prazer, sou Joaquim.
Rosa olhou para a mão estendida, olhou para suas mãos, cada uma segurava uma espada, e o momento ficou desconfortavelmente longo até que ele recuasse, sem jeito.
Ela então apontou para Claire.
— Vamos começar por você. Venha.
Claire me lançou um olhar nervoso, gaguejando:
— E-eu? Espera!
Aproximei-me dela e murmurei:
— Relaxa. Ela só quer te testar. Não vai te machucar. Não precisa ganhar, apenas dê o seu melhor.
Claire assentiu, ainda visivelmente nervosa. Vi o mana em seu corpo se agitar, sinal de que ela estava se preparando.
Quando Rosa se moveu, Claire reagiu com uma enxurrada de feitiços ofensivos, tentando mantê-la à distância. Mas cometeu o mesmo erro que eu havia cometido antes: subestimou a velocidade de Rosa. Embora seu arsenal fosse variado e poderoso, não foi o suficiente. Claire conseguiu acertar um míssil mágico no peito da mulher antes de Rosa colocar a lâmina de uma das espadas na sua garganta.
Rosa avaliou Claire por um momento, os olhos percorrendo-a como se pesasse cada fraqueza. Então virou-se para nós, desaprovando com um estalar de língua.
— Me dê uma semana para treiná-la — intervi antes que ela pudesse dizer mais. — Claire não tem experiência de combate, mas posso torná-la apta.
Apontei para Gérard.
— Ele também é um mago. Posso preparar os dois em uma semana, se nos permitir usar a arena nesse período.
Rosa estreitou os olhos, ponderando minha proposta. Após alguns instantes, balançou a cabeça, ainda cética.
— Está bem, eu permito. Mas se, no final da próxima semana, eles não forem capazes de se apresentar, vou cobrar o aluguel da arena, integralmente.
Ela então se voltou para Claire e Gérard, sua expressão séria e calculista.
— Só que tudo isso depende de você — disse, apontando para mim. — Me impressione hoje. Se eu não gostar do que vir, não tem acordo para ninguém.
Rosa apontou para Joaquim, o sorriso predador ainda estampado em seu rosto.
— Agora é a sua vez, bonitão.
Joaquim arqueou a sobrancelha, tirando dois socos ingleses dos bolsos.
— Só se você não for pegar leve.
Ela riu baixo, espetando suas espadas na areia.
— Não vou usar isso. Vou te dar uma chance de durar mais de um minuto.
Ela estalou os nós dos dedos, assumindo uma postura descontraída, mas cheia de confiança. Joaquim respondeu com um sorriso de canto e avançou, sem medo.
De longe, assisti à colisão de duas forças completamente opostas. Joaquim era técnico, cada movimento milimetricamente calculado, enquanto Rosa exalava uma ferocidade quase selvagem. Seus olhos brilhavam, refletindo algo primal, como se estivesse se divertindo mais do que deveria.
Os golpes ecoavam como marteladas no ar. Joaquim tinha melhorado muito desde a nossa luta, mas Rosa era uma muralha. Ela absorvia os socos com o corpo, protegendo apenas o rosto, como se estivesse esperando o momento certo.
— Vai precisar de mais do que isso, querido — provocou ela, desviando de um golpe certeiro com uma rapidez surpreendente.
Joaquim apertou o passo, forçando-a a recuar. Por um momento, parecia que ele havia encontrado um ritmo para dominá-la. Foi então que ela fez algo inesperado: fingiu um tropeço, cambaleando para trás.
Joaquim, vendo a abertura, investiu com tudo.
— Erro clássico… — murmurou Selune ao meu lado, intuindo o que viria.
Rosa se endireitou no último segundo e o golpe direto no estômago foi brutal. O ar foi expulso dos pulmões de Joaquim, que caiu de joelhos, ofegante.
— Estou satisfeita. — Rosa declarou, oferecendo-lhe a mão com um sorriso de satisfação.
Ele aceitou a ajuda, ainda segurando o estômago.
— Sua prima é tão boa quanto você? — Rosa perguntou, avaliando Joaquim como se fosse um quebra-cabeça interessante.
Joaquim sorriu, apesar da dor.
— Melhor. Ela luta com bastão… e vive me derrotando.
Joana, de onde estava, corou profundamente, desviando o olhar. Rosa, no entanto, apenas sorriu com um brilho de satisfação nos olhos.
— Agora é a sua vez, terror dos Vulkaris. — disse Rosa, me olhando, com uma expressão zombeteira.
O tom zombeteiro, e o uso da alcunha, arrancou risos de todos, menos de mim, que cocei a cabeça.
Ela me olhou, desta vez séria.
— Magos, principalmente cheirando a leite igual vocês são fracos em combate direto. Vou te dar uma chance por conta do que ouvi do duelo. Se não me impressionar, só vou abrir vaga pra esse moreno bonitão e sua prima. Então faça o seu melhor.
— Vou usar espada de mana e não vou facilitar, pelo menos, não muito. — avisou Rosa, já assumindo posição.
Ativei o feitiço da pequena esfera protetora. O brilho azul começou a girar ao meu redor, criando uma camada de resistência. Também usei feitiços de reforço corporal. Assenti para ela, estava pronto.
— pode vir.
— Espero que seja mais interessante que os outros — Rosa provocou, avançando sem hesitar.
Manipulei a areia ao redor dela, tornando o terreno traiçoeiro com pequenas armadilhas. Lanças de areia e pilares subiam em direção a ela e ao teto. Eram táticas que eu tinha aperfeiçoado contra Roderick, mas Rosa era diferente. Cada passo que ela dava desmontava minhas estratégias, ela se esquivava e se movia como se soubesse de onde o ataque viria, mas o objetivo disso tudo era apenas atrasá-la. Consegui deixá-la um pouco mais lenta que o normal, mas ela continuava a avançar com passos firmes em minha direção, seus reflexos rápidos e experiência mostravam que o que tinha feito no duelo não iria me ajudar.
— Isso é tudo, Lior? — Ela sorriu, desviando de mais uma armadilha.
— Ainda não. — rosnei, enquanto me esforçava para mantê-la longe.
Comecei a me movimentar, com meu corpo mutante, reforçado por meus feitiços eu era muito mais veloz que um mago de terceiro círculo comum. Mas isso era apenas um subterfúgio para ganhar tempo.
Cerrei os dentes, liberando minhas chamas fantasmas modificadas. A energia vermelha dançou pelo ar, a magia a cercou, mas Rosa não hesitou. Com um golpe firme de sua espada revestida em mana ela dissipou as chamas antes que pudessem alcançá-la.
— Previsível, vai ter que se esforçar um pouco mais.
Bufei de raiva. Rosa estava conseguindo entrar em minha cabeça e me desorientar. Respirei fundo e me acalmei, enquanto mantinha meu plano.
Ela continuava avançando, seus ataques precisos e implacáveis. Cada movimento meu era lido, cada falha explorada.
Minha mente acelerada buscava uma solução. Eu precisava deixar ela impressionada, não apenas por mim, mas por Gérard e Claire. Rosa havia sido clara: só nos aceitaria se eu fosse bem.
— Está começando a parecer uma perda de tempo… — disse Rosa, sua voz carregada de desafio, tentando me enfurecer novamente.
Pensei em usar ilusões para lhe desorientar, mas hesitei. Ela era uma pessoa direta; truques como esse poderiam custar minha credibilidade.
Vendo minha situação difícil, Selune gritou.
— Tente seus ataques mais rápidos. Use as lanças de gelo explosivas.
Rosa olhou feio para a elfa pela intromissão, mas sua ideia fazia sentido. As lanças de gelo explosivas além de serem velozes, poderiam gelar seus músculos, tornando-a mais lenta e me dar mais tempo de manobra.
— com a arena lotada, você não vai nem ouvir seus pensamentos. — Rosa disse, menosprezando a ajuda que Selune tinha me dado.
Lanças de gelo partiram em direção à guerreira, quando chegavam a um metro de distância aproximadamente, elas explodiam. As lascas de gelo atingiam Rosa, causando pequeníssimos cortes em seu corpo.
Então, tive uma ideia insana. Nos treinos com Selune, experimentei manipular a essência das runas mágicas de outras pessoas. O próprio fluxo de mana, se eu pudesse fazer o mesmo com o mana que recobria as espadas de Rosa? Era algo arriscado e sem nenhum teste, mas talvez fosse minha única chance.
A distância entre nós diminuía perigosamente. Praticamente estava dentro de seu raio de ação. Sua espada zunia. Fiz uma chama aparecer a queima-roupa. A pressão da explosão me deixou momentaneamente surdo e atordoado, mas ela também sofreu os efeitos e consegui ganhar uns poucos metros de distância. Ela estava muito próxima e saquei minha própria espada. Era uma chance de repelir um ou outro ataque.
Enquanto Rosa me perseguia implacavelmente, concentrei-me na mana que revestia sua espada. A energia era sólida e densa, refletindo sua força. Analisar aquilo era como encarar uma muralha intransponível.
A mana de um mago tinha que ser flexível e maleável, mas a mana de um especialista corporal tinha que ser o extremo oposto. Resistente a todo tipo de mudança, quanto mais rígida, maior seria seu efeito na realidade.
Alterar a mana dela era praticamente impossível. O desespero começou a tomar conta.
Rosa percebeu. Seu sorriso tornou-se mais afiado, e seus golpes mais rápidos.
— Está acabando, Lior. Não é nada pessoal.
Então, ouvi o sussurro familiar:
— Me deixe assumir…
Ignorei. Este era meu desafio, e eu precisava enfrentá-lo.
Rosa já estava à minha frente, sua espada prestes a descer sobre mim. O tempo parecia desacelerar. Minha mente frenética buscava algo, qualquer coisa que pudesse virar o jogo.
Foi quando vi.
Sua espada era uma espada comum, das que os gladiadores treinavam, usada e gasta. Sua lâmina cheia de pequenos dentes. A mana que a revestia refletia as imperfeições da lâmina, ali havia um ponto. Minúsculo, mas presente. Uma falha na trama de mana que revestia sua espada.
Conforme sua espada cortava o ar em minha direção, eu posicionei minha espada para receber o impacto. Como contra Roderick, fiz a esfera de proteção azul envolver minha espada, era a única maneira de receber um golpe tão violento, ainda por cima, recoberto de mana.
Concentrei-me naquele ponto e, com toda a minha energia, quebrei a conexão da mana.
Por um instante, sua arma tornou-se apenas aço comum.
O impacto foi devastador. Um estouro ensurdecedor ressoou quando sua espada explodiu. Estilhaços de metal cortaram o ar, atingindo meu rosto e peito. Rosa recuou, segurando o braço ferido, o rosto marcado pelos estilhaços.
— Que porra foi essa? — Ela me encarou incrédula, o sangue escorrendo por sua têmpora.
Respirei fundo, sentindo o gosto metálico do sangue nos lábios.
— Nem eu sei a ao certo.
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