Capítulo 63: A marreta
Gérard entrou no camarim com o rosto rígido, uma mistura de ódio e confusão transparecendo em seus olhos. Ele estava visivelmente abalado, como alguém que tentava encontrar lógica em uma derrota tão avassaladora.
— Relaxe — disse, tentando acalmar sua tensão enquanto o encarava diretamente. — Você lutou bem. Ela surpreendeu a todos nós. Além do mais, você nunca teve uma chance… estava enfeitiçado desde antes da luta.
Ele me olhou incrédulo, como se recusasse a acreditar no que acabara de ouvir.
— Sim — reforcei. — Tudo em você estava estranho antes da luta: suas atitudes, sua postura… Eu percebi que havia algo errado, mas não imaginei o quê. Já mandei um recado à Rosa para que ela investigue.
— Mas eu não senti nada… — Gérard murmurou, franzindo o cenho. — Eu me sentia confiante, mas… — Ele hesitou, tentando alinhar as peças em sua mente.
— Eu só vi uma pessoa fazer feitiços assim, silenciosos e insidiosos… — comecei a explicar, mas fui interrompido por Claire.
— Elizabeth? — ela perguntou, adiantando-se.
Assenti, surpreso pela intuição dela. — Elizabeth. Ela usou algo muito semelhante no baile de máscaras.
Antes que pudéssemos prosseguir, nossa conversa foi interrompida pela mulher robusta que coordenava os combates. Sua voz grave ecoou no ambiente.
— Vamos, Sombra. Chegou sua hora.
Engoli em seco. Mesmo me sentindo preparado, sabia que Rosa certamente havia planejado algo especial para minha luta. Senti em meus ombros os tapinhas de encorajamento dos meus colegas enquanto ajustava a máscara e caminhava em direção à arena.
Ao subir os degraus que levavam à areia, fui imediatamente bombardeado por sensações. A primeira foi a claridade, intensa, vinda de refletores mágicos, que me fez piscar algumas vezes até meus olhos se ajustarem. A segunda foi o som: uma onda de ruído ensurdecedor, indistinto, que parecia vir de todos os lados, impossibilitando distinguir qualquer voz. Rosa estava certa ao dizer que, na arena, nada do mundo exterior seria ouvido. Por fim, senti a mistura de cheiros e adrenalina, uma tensão palpável no ar. Era como se a arena fosse um mundo à parte, mais real do que a própria realidade. E, por um momento, pensei: “Eu poderia me acostumar com isso.”
Minha roupa era simples, toda preta, com uma armadura de couro escondida por baixo. Meus braços, mãos, rosto e pescoço estavam envoltos por fitas de linho cinzentas, deixando apenas meus cabelos pretos espetados visíveis. Na cintura, eu carregava uma espada negra e discreta. Estava decidido a mostrar a Rosa e aos espectadores que eu não era apenas um mago, mas um guerreiro completo.
Ainda estava me ajustando ao ambiente quando o som da multidão se intensificou. Olhei para o outro lado da arena e vi meu adversário surgir.
Ele era imponente. Devia ter mais de dois metros de altura e possuía a pele acinzentada, característica de um orc. Seu rosto estava escondido por um capacete fechado, mas o peso de seu olhar atravessava o metal, me encarando como se já tivesse vencido.
Vestia proteções de couro com detalhes dourados nos ombros e pernas, mas o torso estava nu, exibindo músculos esculpidos que pareciam feitos para o combate. Em suas mãos, segurava uma marreta dourada gigantesca que exalava uma aura de destruição.
Por um instante, engoli seco enquanto o analisava. Não pude evitar o pensamento sarcástico que cruzou minha mente: “Claro, porque não bastava ele ser enorme. Tinha que ser aterrorizante também.”
O sino ecoou pela arena, marcando o início do confronto. Um rugido profundo escapou do meu adversário, que avançou com passos pesados, mas estranhamente calculados. Ele não era apenas força bruta; era estratégia também.
Saquei minha espada e ativei a circulação de mana pelo corpo. O fluxo de energia percorria meus músculos, reforçando-os e afinando meus sentidos. Adotei uma postura defensiva, ajustando meu equilíbrio enquanto ele se aproximava.
— Vamos ver o que você tem, garoto — ele rosnou, a voz grave reverberando pelo capacete.
— Mais do que você pode aguentar, monstrengo. — Respondi, tentando esconder meu nervosismo atrás de um sorriso desafiador.
Quando ele entrou no alcance, avançou com um salto inesperado para alguém do seu tamanho. A marreta desceu em um arco mortal, e eu rolei para o lado, escapando por pouco. O impacto rachou o solo onde eu estivera, levantando areia e pedras.
— Rápido demais para você? — provoquei, tentando recuperar o fôlego enquanto recuava alguns passos.
Ele riu, um som grave e ameaçador.
— Isso é só o aquecimento, garoto. Não vou nem precisar usar toda minha força.
Frustrado, conjurei uma chama fantasma e a arremessei em sua direção. Ele ergueu a marreta, que brilhou intensamente, apagando a chama no ato. Linhas místicas na superfície da arma reluziam, drenando a mana ao redor.
Reconheci aquelas inscrições imediatamente. Era tecnologia Manaclaste, desenvolvida pela Casa Vulkaris, projetada para romper e absorver mana — tanto de magias quanto do ambiente. Apenas os engenheiros de mana dos Vulkaris tinham acesso a essa tecnologia, e ela era extremamente protegida.
Embora estivesse claro que a marreta era uma versão incompleta, ainda era mais do que suficiente para neutralizar meu arsenal mágico, especialmente dentro das limitações do meu terceiro círculo incompleto.
Enquanto recuava, minha mente corria. “Como diabos Rosa conseguiu uma arma dessas?” Não era mera coincidência. Era um teste. Ela queria me levar ao limite — ou além dele.
— Vai precisar de algo melhor do que truques baratos. — Ele balançou a marreta com desdém, como se estivesse lidando com uma criança.
Meu maxilar travou de raiva, mas sabia que ele tinha razão. Recuar não era uma opção, então avancei com tudo, diminuindo a distância antes que ele pudesse reagir.
Dei um golpe rápido, mirando por baixo de sua mão principal, na axila exposta. Ele moveu o cabo da marreta com agilidade, bloqueando o ataque. O impacto reverberou nos meus braços, quase arrancando minha espada das mãos.
— Isso foi patético. — Sua voz carregava um tom de zombaria enquanto girava a marreta em um arco destruidor.
Meus reflexos foram rápidos, mas não o suficiente. O golpe pegou meu ombro esquerdo de raspão, e senti os ossos estalarem enquanto era jogado ao chão.
— Está com medo? — gritei, cuspindo areia enquanto me levantava. — Ou é só assim que você luta? Atacando pelas costas?
— Medo? — Ele riu, aproximando-se devagar. — Estou tentando não te matar muito rápido. Rosa me pediu para pegar leve.
A menção de Rosa fez meu sangue ferver. Sem responder, rolei para o lado no último segundo enquanto sua marreta descia novamente, criando um buraco na areia. Quando tentei me levantar, uma dor lancinante percorreu meu braço esquerdo, me fazendo hesitar.
Foi o momento que ele precisou. Uma bota pesada colidiu com meu torso, jogando-me longe como se eu fosse um boneco de pano.
— Eu disse que isso seria fácil. — A voz dele ecoou, carregada de desprezo, enquanto eu lutava para recuperar o fôlego.
Minha visão estava turva, mas isso não importava. Ele podia ser mais forte, mas enquanto eu respirasse, ainda tinha uma chance.
Meu oponente me observava de longe, caminhando lentamente em minha direção. Sua risada ecoava dentro do capacete metálico, um som grave e provocador.
— Levante-se, garoto. Não é divertido esmagar algo que já está no chão.
Ele ergueu a marreta acima da cabeça com ambas as mãos, o peso da arma não parecia incomodá-lo. Eu me sentia colado no chão, incapaz de encontrar apoio. A areia fina não oferecia tração suficiente para me impulsionar, e cada tentativa de usar o braço esquerdo era interrompida por uma dor lancinante que latejava pelos ossos.
— Vamos lá, não vai nem tentar fugir? Que desperdício… — Ele zombou, aproximando-se mais.
Fechei os olhos e me concentrei na runa de cura. Senti o mana fluir pelo meu corpo, invadindo cada fibra, cada tendão esmagado. Era como uma onda quente e dolorosa, mas quase instantaneamente, os ligamentos começaram a se reparar.
Quando abri os olhos novamente, a marreta já estava descendo.
— Adeus. — Sua voz soou como uma sentença final.
Com um esforço explosivo, rolei para a frente, escapando por um triz, e passei por entre as pernas do gigante em uma cambalhota ágil. Antes que ele pudesse reagir, girei o corpo e desferi um golpe rápido com minha espada, mirando atrás de seu joelho esquerdo.
O corte foi preciso, e embora não tenha sido profundo o suficiente para inutilizar sua perna, ouvi o grunhido de dor quando ele cambaleou.
— Isso é tudo? — Ele se virou lentamente, com o peso da marreta balançando. Havia uma fúria contida na sua voz agora, misturada a algo mais perigoso: respeito.
— Mais do que você esperava, pelo visto. — Respondi, mesmo sentindo meu coração quase sair pela boca.
Ele riu novamente, mas dessa vez o som era menos despreocupado.
— Vamos ver quanto tempo você consegue me entreter antes de implorar para que eu acabe com isso.
Enquanto ele se preparava para atacar novamente, eu ajustei minha postura. Minha respiração estava pesada, mas uma fagulha de determinação queimava em meu peito. Ele podia ser mais forte, mais resistente, mas não era invencível. E agora eu sabia disso.
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