Capítulo 86: Dividindo minha história
O vazio me envolvia, sem peso, sem tempo, sem direção. Era como estar à deriva em um oceano sem superfície, sem fundo, sem fim. Então, uma voz surgiu na escuridão, carregada com uma tristeza profunda, quase palpável.
— Lior? Ganimedes? Quem é você?
Era estranha, mas ao mesmo tempo familiar, como um eco esquecido de algo que eu deveria lembrar.
— Quem está aí? — perguntei, minha voz soando abafada, como se o próprio vazio tentasse engoli-la.
— Sou um amigo. E acredito que sou sua única esperança. Venha na direção da luz, venha rápido, antes que ele se recupere.
Ao longe, um feixe de luz brilhou, tênue e distante, como a aparição de uma estrela solitária numa noite sem lua.
Comecei a me mover, sem saber como, apenas seguindo um instinto primordial. A luz crescia, sua presença quase reconfortante, como se um fio de realidade estivesse tentando me puxar de volta.
A voz se tornou mais urgente.
— Rápido! Ele está se recuperando! Ele vai me prender de novo!
Acelerei, sentindo a proximidade daquela luz. Ela estava logo ali, ao alcance da minha mão. Mas então algo me puxou para trás, como se correntes invisíveis tivessem se enrolado ao meu redor. O brilho piscou, oscilou… e então desapareceu.
Continuei flutuando no escuro, sozinho de novo. Mas não sem antes ter visto algo.
Um rosto.
Não era um estranho. Eu já tinha visto aquele rosto antes, refletido nos olhos de Malena, gravado nos fragmentos de sonhos que me assombravam. Uma feição que parecia minha e, ao mesmo tempo, não era.
Mahteal.
Dessa vez, ele não apenas me mostrou flashes dispersos de sua vida, não me forçou a reviver suas memórias como se fossem minhas. Dessa vez, ele tentou falar diretamente comigo. Tentou me alcançar.
Antes que eu pudesse refletir sobre o que isso significava, uma força me puxou para longe. A sensação de peso tomou conta do meu corpo como uma âncora repentina, esmagadora. Meus sentidos voltaram ao presente de maneira abrupta, e o choque foi tão intenso que minha respiração falhou por um segundo.
Meus olhos se abriram de súbito, e a primeira coisa que vi foi o céu acima da arena. Meu corpo estava afundado na areia quente, como se eu tivesse sido atirado ali sem cerimônia.
E então senti o peso sobre mim.
Pandora estava literalmente sentada no meu peito, suas mãos espalmadas contra minha pele desnuda. O calor da mana dela ainda circulava em meu corpo, pulsando em ondas irregulares, como se estivesse tentando estabilizar algo dentro de mim.
Seus olhos estavam fechados em concentração, os lábios movendo-se em murmúrios rápidos e ansiosos.
— Merda, merda, merda…
Pigarreei alto, tentando aliviar a tensão — e talvez, confundir um pouco a situação.
— Bem… não era assim que eu imaginava…
Não pude terminar a fala pois os olhos dela se abriram num instante, primeiro arregalados em choque, depois estreitados em pura fúria. Em menos de um segundo, sua mão se moveu, e um estalo ecoou pela arena quando um tapa atingiu meu rosto.
— Nunca mais faça isso comigo! Seu coração tinha parado! — A voz dela tremeu, e antes que eu pudesse formular uma resposta, Pandora, de maneira totalmente inesperada, me puxou para um abraço apertado.
Por um momento, fiquei congelado. O calor do corpo dela, a força de seu aperto, a respiração irregular contra meu ombro… aquilo não era um gesto impulsivo. Era desespero.
Lentamente, dei tapinhas em suas costas, sem saber exatamente o que fazer.
— É… pode me soltar agora… — falei baixinho.
Ela me largou como se tivesse sido queimada, afastando-se de imediato. Suas bochechas estavam coradas, e ela se virou de costas para mim, tentando recompor a postura.
Sentei-me devagar, sentindo o formigamento estranho em meu corpo. Foi só então que percebi que algo ainda estava… errado.
Minha pele. Minhas mãos. As mutações estavam ali. Minhas unhas ainda tinham o tom escurecido, meus braços as estranhas marcas e escamas, e eu conseguia sentir pequenas quantidades de mana se movendo pelos meus braços, resquícios de algo que havia sido despertado.
Fechei os olhos e me concentrei. Inspirei profundamente, sentindo minha carne se ajustando, os traços anômalos se dissolvendo conforme eu forçava meu corpo a voltar ao normal.
Quando abri os olhos novamente, Pandora já tinha se virado para mim. Seu rosto ainda estava tingido pelo rubor do constrangimento, mas agora sua expressão era séria. Seus olhos verdes me estudavam como se eu fosse algum tipo de enigma a ser desvendado.
Então, sem rodeios, ela disparou:
— Que porra que você é? O que aconteceu?
O silêncio pairou entre nós por um momento. Eu ainda sentia o eco daquela escuridão dentro de mim, o peso da voz de Mahteal, a urgência em suas palavras. Mas o presente exigia minha atenção.
Pandora me encarava, os olhos verdes fixos em mim como lâminas afiadas. Seu rosto ainda estava corado, mas agora a expressão era de puro questionamento, misturada com algo que parecia… preocupação genuína.
Suspirei, passando a mão no rosto onde ela havia me acertado.
— Você sempre reage assim quando alguém volta da beira da morte? — tentei brincar, mas minha voz saiu mais cansada do que pretendi.
Ela cruzou os braços, claramente sem paciência.
— Não muda de assunto. O que diabos aconteceu? E o que você é? — Repetiu ela.
O tom dela não era acusador, mas eu sabia que ela exigia uma resposta.
Olhei para minhas mãos, buscando palavras. Senti o peso dentro de mim, aquele poder estranho ainda pulsando sob a superfície. Meu corpo sempre foi um campo de batalha, mas agora eu sentia que a guerra tinha se intensificado.
Respirei fundo.
— Eu… não sei exatamente.
Ela estreitou os olhos.
— Isso não é suficiente, Lior.
Engoli em seco. Eu podia contar a verdade? Podia confiar nela o bastante para revelar o que realmente acontecia dentro de mim? Quem era minha contraparte sombria? O que Mahteal era para mim? O que eu era? O que era meu corpo?
Apenas fiquei ali, parado, encarando Pandora, sem saber como responder.
O silêncio entre nós se alongou, carregado de tensão. Eu via a impaciência crescendo no rosto de Pandora, mas também percebia algo mais profundo, algo que ela tentava esconder sob sua expressão dura: preocupação.
Eu não sabia o que dizer. A verdade era um labirinto que nem eu mesmo conseguia atravessar.
Ela deu um passo à frente, inclinando a cabeça para me olhar mais de perto.
— Lior… — sua voz agora era um pouco mais baixa, menos cortante. — Seja lá o que aconteceu, você quase morreu. Sua mana ficou uma bagunça, seu corpo tentou se transformar em sei lá o quê, e eu tive que te estabilizar antes que você explodisse. Seu coração parou, cara!
A maneira como ela falou não era um exagero dramático. Era um fato, embora eu tivesse passado por outras situações similares, sem perigo de morte, daquela vez tinha sido diferente.
Apertei os punhos, sentindo um arrepio percorrer minha espinha. Ainda podia lembrar da sensação da explosão dentro do meu oceano de mana, da luz se apagando, da voz de Mahteal me chamando na escuridão.
Pandora suspirou, massageando as têmporas.
— Olha, eu não sou do tipo que faz perguntas à toa. Mas agora você precisa me dar alguma coisa, porque, francamente, eu já tô de saco cheio de lidar com mistérios envolvendo você.
Ela falava com a impaciência de quem já tinha acumulado perguntas demais e respostas de menos. E eu não podia culpá-la por isso.
Respirei fundo e tomei uma decisão.
— Mahteal — murmurei, sentindo o nome pesar na língua.
Pandora franziu o cenho.
— O quê?
Encarei-a, sentindo algo se revirar dentro de mim.
— Esse é o nome. O nome da consciência que existe dentro de mim.
Ela cruzou os braços, me analisando como se tentasse decidir se eu estava brincando ou simplesmente louco.
— Dentro de você? — repetiu, a voz carregada de descrença. — Invés de responder, você complica mais as coisas.
Suspirei, passando a mão pelo rosto.
— Não sei explicar direito, mas… ele é parte de mim. Ou talvez eu seja parte dele. Sempre achei que Mahteal só me mostrava memórias, pedaços de um passado distante, mas hoje foi diferente. Ele tentou falar comigo. Como se precisasse de mim. Como se estivesse preso.
Pandora ficou em silêncio por um momento, digerindo o que eu dizia. Seus olhos me estudavam, avaliando se eu acreditava naquilo ou se estava apenas delirando.
— E esse negócio que aconteceu com o seu corpo?
Hesitei, olhando para minhas próprias mãos. A pele já havia voltado ao normal, mas eu ainda sentia os resquícios da transformação, como um calor dormente sob a pele.
— Meu corpo foi alterado — confessei, a voz mais baixa. — Alterado severamente.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Como assim?
Respirei fundo antes de continuar.
— Eu fui… modificado, de certa forma. Para que pudesse abrigar essa consciência dentro de mim. Pode-se dizer que tenho um corpo artificialmente aprimorado, mais forte, rápido e resistente. Mas isso tem um preço.
Pandora me observou por um longo tempo antes de soltar um suspiro exasperado.
— Bom, que ótimo. Agora, além de ser um pé no saco, você também pode ser uma bomba ambulante. Que maravilha.
Sorri, um sorriso cansado, mas sincero.
— Parece que sim.
Ela revirou os olhos, mas, para minha surpresa, seu tom suavizou um pouco.
— Você precisa descobrir exatamente o que está acontecendo, Lior. Porque, da próxima vez, pode não ter ninguém por perto para te trazer de volta.
Havia um peso naquelas palavras, uma preocupação genuína mascarada pelo sarcasmo.
Senti que poderia confiar nela.
Me sentei na areia e fiz sinal para que ela fizesse o mesmo.
— Vou lhe contar tudo. Desde o início. Mas prometa que isso ficará entre nós.
Pandora hesitou por um instante, depois se abaixou, sentando-se diante de mim.
— Tudo bem — respondeu, cruzando as pernas. — Mas essa história tem que valer a pena.
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