Capítulo 94: Uma luta na madrugada
Saí do bar, o ar frio da noite me envolvendo como um chamado de volta à realidade. O peso da canção ainda pairava sobre mim, como se as palavras estivessem presas em algum lugar entre minha pele e meus ossos.
Meus olhos percorreram a rua movimentada. Carroças passavam rangendo sobre o calçamento irregular, e homens cambaleavam de um lado para o outro, alguns rindo alto, outros murmurando entre goles de bebida. Mas não havia sinal dela.
Respirei fundo e avancei, deixando o bar para trás. A cidade nunca dormia, mas naquele momento parecia mais silenciosa, como se o próprio vento ainda carregasse as notas do alaúde.
Virei a esquina, os olhos atentos às sombras projetadas pelas lanternas presas às paredes das tavernas. Então, a vi.
Ela estava encostada contra uma parede de pedra, meio oculta entre os barris empilhados ao lado de uma estalagem. A luz pálida da lua acariciava seu rosto delicado, destacando a palidez de sua pele contra a escuridão da noite. Seus olhos, ainda mais intensos sob a fraca iluminação, me encararam por um instante antes de se desviarem para o chão.
Havia algo na sua postura, na maneira como abraçava o alaúde contra o peito, que sugeria cansaço. Não o cansaço físico de uma longa viagem, mas um desgaste mais profundo, o peso de algo que não se dissipava com o descanso.
Aproximei-me devagar, atento a cada movimento, tentando não assustá-la.
— Sua música… — comecei, mas as palavras morreram antes de ganharem forma.
Ela ergueu uma sobrancelha, esperando. Quando sua voz veio, foi mais baixa do que eu esperava.
— O que tem ela?
Havia um peso naquela pergunta, algo que me fez hesitar. Ela sabia a resposta antes mesmo de ouvir minha opinião, e ainda assim perguntava.
— Parecia real — respondi enfim. — Como se tivesse acontecido de verdade. Despertou algo em mim.
A garota soltou uma risada curta, sem humor.
— Talvez tenha acontecido. Talvez aconteça de novo.
Antes que eu pudesse responder, ela se afastou da parede, segurando o alaúde com mais firmeza. Queria passar por mim, desaparecer na noite como a névoa que se dissipava no vento. Meu corpo reagiu antes que eu pudesse pensar e bloqueei seu caminho.
— Ele não era um guerreiro, você sabe?
Ela parou. Seus olhos faiscaram e um sorriso zombeteiro se formou em seus lábios.
— E se eu souber?
Foi nesse momento que algo aconteceu. Algo que nos fez congelar.
Um som abafado cortou o ar. A garota deu um solavanco para trás, seu corpo pequeno sacudido pelo impacto. Seu vestido vermelho contrastava com o negro das penas de uma seta de besta, agora cravada em seu ombro.
Vozes ecoaram da entrada do beco.
— Achamos ela!
— Não deixem que escape…
Meu olhar se virou instintivamente na direção do perigo. Ouvi atrás de mim um gemido contido e um murmúrio irritado:
— Mas que droga…
Quatro homens emergiram da escuridão. Estavam envoltos em túnicas negras, os rostos cobertos por um tecido que deixava à mostra apenas os olhos. Dois seguravam bestas, um portava uma adaga longa e o último, uma espada ornamentada, cujo brilho frio reluziu sob a luz da lua.
O barulho seco de uma segunda besta sendo disparada me alertou a tempo. Dessa vez, a seta vinha certeira, visando diretamente o coração da garota.
Minha mão se moveu antes que minha mente compreendesse o que fazia. Um movimento que tempos atrás seria impossível tornou-se trivial. Peguei a seta em pleno voo.
Os homens hesitaram, surpresos. Usei essa fração de segundo para circular minha mana e disparar contra eles. Estavam perto demais agora, e não desperdicei a oportunidade. O besteiro mais próximo sequer teve tempo de reagir antes que eu transpassasse sua garganta com a própria seta que havia disparado.
O líder, o homem da espada, reagiu rápido.
— Não deixem ele se equilibrar! — bradou, enquanto o homem da adaga se lançava contra mim.
Seu ataque era rápido, traiçoeiro, mirando pontos vitais em meu tronco. Mas eu já estava em movimento. Meu corpo se ajustou instintivamente, desviando o golpe ao mesmo tempo que minha mão se fechou sobre o pulso do atacante. Um estalo ecoou no beco quando o osso de seu punho se partiu. Ele gritou e a adaga passou para a minha mão. Agora, eu não estava mais desarmado.
— Esqueçam ele! Peguem a garota! — ordenou o líder, apontando para ela.
O besteiro remanescente correu na direção da garota. Lancei-me para impedir, mas o líder já se movia para bloquear meu avanço. Sua postura, a maneira como se movia, revelava anos de treino. Ele sabia que não precisava me vencer, apenas me atrasar.
Seu primeiro golpe veio de cima, forte e direto. Interceptei com a adaga, desviando a lâmina para o lado. O segundo foi mais veloz, um corte lateral visando meu flanco. Me afastei do caminho da lâmina, estudando seus movimentos.
Queria que ele me mostrasse do que era capaz antes de me lançar ao ataque.
Ele percebeu. Seu olhar endureceu e senti sua mana se agitar. De repente, seus ataques tornaram-se mais rápidos, mais precisos. Havia força neles, a força de alguém de quarto círculo.
E, ainda assim, não me senti pressionado. Meu corpo reagia com naturalidade. Cada golpe que ele desferia, eu respondia com um contra-ataque. O equilíbrio da luta mudou. Ele percebeu. O medo começou a se espalhar em seus olhos.
O homem que perdeu a adaga tentou outra investida, sacando uma faca curta e vindo pelas minhas costas. Girei o corpo em um movimento rápido e o golpeei no estômago com um chute seco. Ele tropeçou para trás, arfando, antes que minha adaga deslizasse pela sua garganta.
O líder aproveitou minha distração e golpeou novamente. Me abaixei no último instante, sentindo o vento do corte passar acima da minha cabeça. Rolei para o lado e, ao me erguer, vi que ele também recuara um passo, ergueu a mão livre e senti a mudança.
Sua mana se corrompeu. O fluxo antes controlado tornou-se um turbilhão negro. Um miasma pútrido emergiu de seus dedos, avançando contra mim como uma maré de podridão.
Por um instante, um resquício dentro de mim se agitou. O pequeno ponto de corrupção em meu núcleo de mana reagiu antes mesmo que eu o controlasse. O miasma foi absorvido por ele, dissipando-se no ar antes que pudesse me afetar.
O homem congelou.
— Como? — balbuciou. — Impossível…
Ri, tanto pela situação quanto pelo horror estampado em seu rosto.
— Parece que escolheu a presa errada.
Antes que ele se recuperasse, minha adaga atravessou seu coração.
Um grito veio de trás de mim.
— Chefe!
Girei no mesmo instante. O besteiro havia retornado, mas não por muito tempo. A adaga que acabara de matar seu líder deslizou para fora do corpo e, em um único movimento, foi lançada com precisão mortal. Ele desabou antes mesmo de compreender o que o atingira.
O silêncio caiu sobre o beco.
Corri até onde a garota estivera. Ela se fora. A única coisa que restava era seu alaúde, esquecido perto da parede.
Meu olhar se voltou para o corpo do líder caído. Rápido, revirei suas vestes. Quando puxei o tecido que cobria seu rosto, reconheci suas feições. Já o tinha visto antes, em algum lugar.
Então, encontrei o distintivo.
O brasão da Casa Cális.
Uma casa vassala dos Elden.
Que, por sua vez, serviam aos Umbrani.
Voltei onde o alaúde jazia e o segurei com cuidado, sentindo seu peso e o significado de seu abandono. Um nome estava gravado na madeira lisa: Alana. Quem era ela, realmente? E por que queriam sua morte?
Minha mente fervilhava com perguntas, mas não havia tempo para longas reflexões. O uso do miasma, a tentativa de assassinato, os nomes Mahteal e Malena… Havia algo maior por trás daquela noite.
Passei os dedos pelas cordas do alaúde. Não era um instrumento comum, jogado fora sem valor. Ela se fora, mas este alaúde era um rastro, um fio que poderia me levar até ela.
Olhei para os corpos espalhados pelo chão do beco. Precisava sair antes que alguém começasse a fazer perguntas. O brasão da Casa Cális ainda queimava em minha mente. Se eles estavam envolvidos, então essa história ia muito além do que eu imaginava.
Guardei o alaúde com cuidado e desapareci na escuridão. Eu encontraria Alana. Algo me dizia que tudo estava interligado.
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